INFORMAÇÃO E SAÚDE


O PRONTUÁRIO DO PACIENTE ENQUANTO FONTE DE INFORMAÇÃO PARA PESQUISA EM SAÚDE: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA

Maria Cristiane Barbosa Galvão

Camila de Luca Zambonini Gimenes

 

Introdução

 

Embora muitas fontes de informação bibliográficas sejam usadas em pesquisas do campo da saúde, muitas vezes a informação a ser levantada para pesquisa é coletada em prontuários de pacientes – fato que constitui uma problemática interessante para o campo da ciência da informação. Este texto apresenta o prontuário como fonte de informação para pesquisa, especificamente, como os pós-graduandos da área de patologia utilizam tais prontuários e quais são as principais dificuldades por eles encontradas.

 

A International Organization for Standardization (ISO) define o prontuário como a coleção de informação relativa ao estado de saúde de um sujeito, armazenada e transmitida em completa segurança, acessível a qualquer usuário autorizado. O prontuário do paciente tem por objetivo assegurar serviços de saúde integrados de forma contínua, eficiente e com qualidade, juntamente com informação retrospectiva (que contempla o histórico clínico do paciente e de sua família), informação corrente (por exemplo, condição de saúde atual do paciente e de sua família), e prospectiva (por exemplo, registros dos desejos e visão do paciente acerca de que tratamentos deseja ou não receber em situações onde sua consciência esteja comprometida) (INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION, 2005).

 

Grosso modo, não seria errado afirmar que, embora sendo um documento legal de grande importância para o paciente, para seus familiares, para unidades de saúde e para todos os atores de um sistema de saúde, nem sempre a produção dos registros no prontuário segue padrões adequados de qualidade. Geralmente, o conteúdo do prontuário do paciente é marcado pelas condições de trabalho dos profissionais de saúde, pelas condições tecnológicas existentes na unidade de saúde, pelos treinamentos dados ou não pela unidade de saúde ao profissional de saúde e mesmo pelo ensino de graduação em saúde. É fato que muitos gestores e mesmo docentes do campo da saúde entendem que o registro no prontuário seja um processo cognitivo natural e imediato que pode ser facilmente apreendido por meio da prática clínica e observação empírica, não exigindo maiores esforços de ensino-aprendizagem dos profissionais da geração “nativa digital”. Disso resulta que muitos profissionais da saúde não recebem uma educação sistematizada sobre como efetuar registros nos prontuários de pacientes, ou seja, possuem formação deficiente sobre o assunto e muitos não entendem o registro no prontuário como uma atividade profissional, intelectual e necessária, mas como uma atividade burocrática, técnica e desmerecedora de atenção.

 

De toda esta complexidade de ensino-aprendizagem e formação continuada, as irregularidades encontradas em prontuários de pacientes podem ser de várias ordens, tais como: rasuras, omissões ou incompletezas de dados ou informações; ausência de identificação ou assinatura do profissional de saúde que prestou assistência; uso de linguagem inapropriada ou registro de conteúdo informacional não relacionado ao paciente; erro na identificação do paciente; registro realizado em prontuário errado; apropriação indevida de informação de paciente; acesso indevido ou não autorizado ao prontuário, etc. Assim, embora importante para a pesquisa, podem ser encontradas no prontuário informações de baixa qualidade (GALVÃO, RICARTE, 2011 e 2012). Isso posto, como seria usar prontuários de pacientes em pesquisas de caráter científico?

 

Metodologia

 

Para se entender melhor esta questão, realizou-se um estudo de caráter qualitativo e exploratório composto por 30 entrevistas com mestrandos e doutorandos de um programa de pós-graduação em patologia de uma universidade pública brasileira, a partir de um roteiro de entrevista previamente testado com dois sujeitos de pesquisa. A metodologia para composição da amostra foi por saturação de respostas ou até o máximo de 35 entrevistas, considerando que este era o número total de alunos matriculados no programa no ano de realização do estudo. O projeto foi submetido e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa. As entrevistas e as suas respectivas transcrições na íntegra foram realizadas entre agosto e outubro de 2013. Foram, então, realizadas 3 leituras das transcrições realizadas para a análise dos temas recorrentes nas falas dos entrevistados. A metodologia de análise qualitativa dos dados seguiu a proposta de Bardin (1977).

 

Resultados

 

Alguns entrevistados declararam não confiar plenamente no prontuário do paciente como fonte de informação, conforme os seguintes relatos:

 

Sujeito 9: “Muitas vezes, quem preenchia os dados nos prontuários eram os estagiários. As informações não eram completas, eram confusas. Então, eu sempre tinha que reabordar o paciente. Aí eu tinha que perguntar tudo de novo. Os pacientes até reclamavam. A gente tinha que começar tudo de novo, fazia outro inquérito.”

 

Sujeito 10: “Depende. Porque o paciente pode mentir, e isso acontecia bastante lá. Por exemplo, se perguntava se ele fumava, e ele falava que não. Mas você sentia cheiro de cigarro no paciente. Então, depende do tipo de informação, se é informação que você consegue ou que é passada pelo paciente. Por exemplo, exame, não tem como ele mentir num exame, pois é você quem avalia o paciente. Mas informações dadas pelo paciente podem ser enganosas, porque ele pode fazer uma coisa e falar outra, por medo de ser repreendido. Isso eu via bastante...”.

 

Sujeito 12: “Geralmente, ele é mal preenchido. Eu não sei como é que funciona. É o médico que preenche? É. Não tem padrão. Às vezes, eu pegava um que passava pela cabeça e pescoço e não preenchia nada. Aí, ele passava pela fonoaudiologia vinha tudo certinho, a idade, qual o problema que o paciente tinha.”

 

Alguns dos entrevistados declararam que no prontuário de paciente faltam muitas informações necessárias para a pesquisa, conforme os seguintes relatos:

 

Sujeito 1: “Eu na minha pesquisa, eu uso como sendo confiável sim. Mas é difícil trabalhar com dado do prontuário porque muitas vezes ele é incompleto, né? A gente pesquisa, por exemplo, a história de alcoolismo do paciente. Às vezes, nem tem essa informação ou, às vezes, tem a informação, mas não a quantificação e a especificação: É pouco? É muito? É social? Bebe o que: cerveja, whisky? Que tipo de bebida é? A informação, geralmente, é incompleta.”

 

Sujeito 3: “Olha, o que consta lá pode até ser confiável, mas falta informação. Foi problemático, assim, porque a gente precisava saber: o peso e a altura do paciente. Muitas informações a gente precisava e não tinha, mas as que tinham a gente considerava confiável.”

 

Sujeito 5: “Eu acho que ele é mais ou menos confiável. Nem todo mundo escreve todas as informações.”

 

Alguns dos entrevistados declararam que a organização no prontuário de paciente nem sempre ajuda o processo de busca por informação, conforme os seguintes relatos:

 

Sujeito 1: “É, a dificuldade depende de quem preencheu o prontuário. O problema é que, são várias pessoas que preenchem: médicos e não médicos. E cada um vê aquilo que acha que é mais importante. Ou então, dependendo da correria do dia-a-dia não escreve ou escreve pouca coisa, né?”

 

Sujeito 4: “Falta de organização. A letra é horrível. Nos prontuários que foram digitalizados, tem uma hora que você já pega na primeira página a informação que precisa, tem outros prontuários que você tem que procurar lá na última página, ou a informação que você precisa está lá no meio do prontuário. Às vezes, tem que ler todo o prontuário, pra ver se algum médico escreveu em algum relatório a informação que precisamos.”

 

Sujeito 5: “Essa falta de padronização. Ela ocorre porque está relacionada pela objetividade do profissional que atendeu e na formação dele. Se ele é mais objetivo, ou se ele é menos objetivo, é um fator pessoal individual, tem pessoa que é mais objetiva, tem pessoa que é menos. Alguns detalham mais, outros são mais sucintos, é fator individual.”

 

Com relação às informações que faltam no prontuário de paciente, algumas foram citadas, tais como:

 

Sujeito 3: “O peso, por exemplo, nessa pesquisa que eu fiz, era fundamental, para saber como o médico calculou a dose do fator de coagulação e não tinha. Às vezes, não tinha a altura, que também é um item importante. O próprio motivo, a razão por ele estar recebendo o fator. Às vezes, fala assim: “o paciente está com dor, mas não fala se ele está com dor espontânea, se ele teve um traumatismo, se foi uma briga, se arrancou um dente”. E a localização do sangramento, que a gente queria estar colocando na pesquisa, e algumas vezes, faltava. Então, foram muitas informações que faltaram.”

 

Sujeito 4: “Nem sempre coloca, no meu campo de pesquisa, né? A gente trabalha com tamanho do tumor, o estadiamento, TNM. Para você achar isso, às vezes, está específico, às vezes, não está. A sobrevida, o que aconteceu, se sobreviveu, se morreu...”

 

Alguns dos entrevistados fizeram críticas e sugestões de melhorias das informações registradas nos prontuários, conforme as falas abaixo.

 

Sujeito 1: “É. Teria que ter uma padronização pra você não esquecer, por exemplo, de anotar ou perguntar aquele dado. Ainda mais que é um hospital de ensino, que trabalha com pesquisa, não pode deixar de ter informação. Acho que se for fora, isso talvez não implique muito. Mas como aqui trabalha com pesquisa, acho que é bom ter essa padronização do prontuário.”

 

Sujeito 27: “Façam um tutorial de prontuários!”.

 

Sujeito 30: “Falta. Falta uma disciplina ou uma orientação prática com alguém que trabalha no hospital falando: ‘Esse é o prontuário do paciente’. Apresentando o prontuário, pra dizer onde esse prontuário fica, aonde esse prontuário vai. Se eu posso mexer nesse prontuário, se o paciente tem autonomia pra mexer no prontuário dele. Todas essas coisas você não tem. E outra coisa, muitos pacientes nem sabem o que é um prontuário. O paciente sabe que na ficha dele tem uma evolução, mas ele não sabe que ele tem um histórico médico.”

 

Conclusão

 

Em relação ao uso prontuário do paciente como fonte de informação para pesquisa, observou-se que os pós-graduandos do campo da patologia possuem bastante dificuldade para encontrar as informações e dados necessários aos seus estudos. Esta dificuldade parece resultar de quatro âmbitos: 1) a forma de produção dos registros nos prontuários dos pacientes realizados pela equipe multiprofissional de saúde; 2) as tecnologias empregadas na produção e disponibilização do prontuário do paciente para pesquisa, como, por exemplo, a digitalização do prontuário em papel sem a devida indexação de seus conteúdos para posterior recuperação; 3) a ausência de treinamento para o uso do prontuário do paciente para fins de pesquisa; 4) falta de conhecimento do paciente sobre os registros efetuados em seu prontuário e seus usos possíveis na assistência, no ensino e na pesquisa em saúde.

 

Observou-se que algumas das problemáticas citadas pelos entrevistados como falta de informação, informação incompleta ou imprecisa; uso de abreviações, falta de padronização do preenchimento do prontuário do paciente corroboram os estudos de Galvão e Ricarte (2011, 2012).

 

Disso decorre que as unidades de saúde que desenvolvem pesquisas e que promovem o ensino de graduação e/ou pós-graduação devem possuir uma política informacional específica para a produção, disponibilização e uso de registros nos prontuários dos pacientes. Também se faz necessário a oferta de treinamentos durante a graduação e durante a atuação profissional para todas as áreas de saúde sobre o ciclo informacional dos prontuários de pacientes que seja pautada pela qualidade informacional. Há ainda que se informar e se educar os pacientes sobre a importância dos registros efetuados em seus prontuários, bem como sobre a legislação brasileira vigente que lhes garante a privacidade e segurança dos dados registrados no prontuário. Dessa forma, talvez, os pacientes se sintam mais confiantes para relatar suas questões de saúde durante os processos de assistência.

 

Finalmente, entende-se que seja necessário desconstruir o pensamento que a geração “nativa digital” terá naturalmente mais facilidade para produção de registros sobre os pacientes, pois toda representação requer um profundo estudo do fenômeno a ser traduzido em linguagem verbal oral ou escrita, ou outra linguagem, constituindo-se em um processo intelectual complexo.

 

Referências

 

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

 

GALVÃO, M.C.B.; RICARTE, I. L. M. O prontuário eletrônico do paciente no século XXI: contribuições necessárias da ciência da informação. InCID: Revista de Ciência da Informação e Documentação, v. 2, n. 2, jul./dez. 2011. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/incid/article/view/42353/46024‎. Acesso em: 10 mar. 2015

 

____. Prontuário do paciente. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.

INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. Health informatics: electronic health record, definition, scope and context. ISO/TR 20514. Geneva: ISO, 2005.

 

Como citar este texto

GALVAO, M.C.B; GIMENES, C.L.Z. O prontuário do paciente enquanto fonte de informação para pesquisa em saúde: uma reflexão necessária. 6 de agosto de 2015. In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Londrina: OFAJ, 2015. Disponível em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=919


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MARIA CRISTIANE BARBOSA GALVÃO

Professora na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Sua experiência inclui estudos na Université de Montréal (Canadá), atuação na Universidad de Malaga (Espanha) e McGill University (Canadá). Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Comunicação e bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo.