ALÉM DAS BIBLIOTECAS


ENFIM, AGORA EU SOU GRAZIA!

 

 

No momento em que a classe intelectual do Piauí e de muitos outros Estados busca resgatar a literatura produzida na esfera das Unidades Federativas, reintroduzindo a produção local no ensino fundamental e médio de ensino, com sistematicidade e constância, eis que explode no meio literário, no caso do Piauí, o romance de Albino Veloso, sobre quem há muito a ser dito e redito. Natural de Barra D'Alcântara, além de biólogo, é especialista em Docência Superior, percorrendo os caminhos múltiplos da bioética, da parasitologia, da vigilância sanitária e epidemiológica, o que atesta, a priori, a diversificação de sua formação e seu interesse no ensino, na pesquisa e na extensão, o célebre tripé das instituições de ensino superior. Como face da mesma moeda, nutre desavergonhada paixão (na acepção de amor confesso) pela literatura, como poeta, contista, cronista e romancista. Neste último gênero, ao longo do recém-findo 2023, lança “Grazia: uma mulher!”

Grazia não é, porém, uma mulher uníssona! Representa muitas mulheres que, desde cedo, não obstante a educação machista a que são submetidas, vislumbram na educação a possibilidade de exercitar sua cidadania e, sobretudo, sua feminilidade. Contrariando as expectativas que afrontam uma jovem mulher, negra, pobre e até então analfabeta, além de vivenciar o cotidiano da zona rural, liberta-se de uma união conjugal, em que o marido José, como tantos outros josés, pedros, antônios, etc., perdidos na vida, determina à mulher “[...] imediato afastamento dos estudos e assunção das tarefas domésticas, que conferem e legitimam a condição de senhora dona de casa: faxina, lavagens, engomagem, cozinha e alegria ao marido [...]” (p. 15).

Enfrentando mil preconceitos, sua libertação se dá, pouco a pouco, mediante a força do sistema escolar e seu empoderamento como mulher que se apoia em outras mulheres visando ao fortalecimento de lutas, dentre as quais ganha destaque a violência doméstica, a negação da sexualidade e muitos outros itens. Juntas, numa cumplicidade que pretende resgatar o valor da fêmea como cidadã que nutre desejos, anseios e imensurável vontade de ocupar um lugar ao sol no universo do ser humano, longe de discriminações e de posições inferiores, Grazia parte em busca de sua realização pessoal e de seus sonhos moribundos.

O marido desacredita em sua decisão. Junto com os colegas “de cachaça”, zomba, desmerece e deprecia o atrevimento da mulher. Mas quando vê que é para valer, foge para São Paulo, onde enfrenta, de início, o risco que ronda tantos e tantos nordestinos – o trabalho escravo – até encontrar empregadores justos e honestos. José ainda pensa na mulher a quem enxotou com bebida e desamor. Volta ao município de Candeia Nova à busca de reconciliação! Grato susto! Inesperado susto! Da criação da Associação Estadual para Defesa dos Direitos das Mulheres, tateando dentre preconceitos e entraves, Grazia candidata-se ao cargo de vereadora, e por sua atuação irrepreensível e coerente, mais adiante, ocupa o cargo de prefeita, pondo a baixo a hegemonia de um esquema político que já perdura por 30 anos. Nesse ínterim, o marido transfigura-se sob o modelo de uma mulher batalhadora. Volta a estudar até alcançar a universidade e concluir o Curso de Direito.

“Grazia: uma mulher!”, sob a responsabilidade editorial da UICLAP Editora e Distribuidora Ltda, São Paulo, ao longo de suas 187 páginas, destaca-se por ser uma obra que incorpora uma sucessão de temáticas que se entrelaçam – ensino como libertação; confronto entre a posição dos gêneros na sociedade, com tendência odiosa para privilegiar o homem em detrimento da mulher; risco e a existência até os dias de hoje de trabalho escravo; remissão de homens que ainda mantêm acesa a luz da esperança e a força das transformações sociais em pleno século 20 ou 21: chances (ainda que remotas) de mutações no universo da política, quando a honestidade ocupa o espaço da trapaça e da trambicagem e emergem, aqui e ali, atos dignos em prol da sociedade em vez de falcatruas de diferentes naturezas.

Neste espaço de tempo literário, Albino brinca com o leitor: as mudanças de José e sua reaproximação com a mulher como consultor ou assessor permitirão o recomeço de uma união antes fadada ao fracasso? Há volta? Há reconciliação ou tudo ficou para trás? Aqui, como resenhista provocadora, deixo para cada um de vocês a resposta – erros são remediáveis? Afinal, acertos e falhas fazem parte do ser humano em sua infinitude e em sua benevolência! Mas lembrem, de uma forma mais acentuada ou não, EU SOU GRAZIA; VOCÊ É GRAZIA; SOMOS TODAS GRAZIAS!

Fonte

VELOSO, Albino. Grazia, uma mulher. São Paulo: UICLAP, 2023. 187 p.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”