ALÉM DAS BIBLIOTECAS


HELSINKI CENTRAL LIBRARY: A BIBLIOTECA QUE SONHEI!

O que ficou para trás

É sempre inesperado enfrentar lembranças perdidas no passado, mas impressas com “letras de fogo” no coração em meio ao que ficou para trás. Na realidade, não tão para trás como, ingenuamente, pensava eu. Entre dezembro de 2023 e janeiro de 2024, graças à vocação assumida de nômade ou de viageira incontida em desvendar povos e culturas, estive em países nórdicos, exatamente, na Finlândia, Noruega e Suécia. Os demais – Dinamarca, Islândia com as respectivas regiões autônomas – terão sua vez e sua voz! Um dia, talvez!

Segundo fonte renomada e credível, US News & World Report / University of Pennsylvania (responsável por divulgar o ranking das melhores nações do mundo para se viver), a Finlândia ocupa a sexta posição no continente europeu com melhor qualidade de vida e o quarto, em termos mundiais, de acordo com o Jornal NH, Novo Hamburgo – Rio Grande do Sul. Chegada à charmosa Helsinki ou Helsink ou Helsínquia ou Helsinque ou Helsingfors, capital e maior cidade do país, com cerca de 620 mil habitantes, permite vislumbrar, de imediato, critérios de países avançados: limpeza das ruas; trânsito organizado; segurança, e, adiante, comprovação, em esfera nacional, de itens, como: distribuição de renda equilibrada; acesso aos serviços básicos de saúde, educação, infraestrutura urbana e de saneamento; transportes públicos adequados; alta taxa de alfabetização; e elevada expectativa de vida.

E foi lá, em Helsinki, que vivi intenso e indescritível sentimento de lembranças perdidas no passado, ao descobrir uma das atrações mais conhecidas da capital. Refiro-me à Helsinki Central Library, cuja página eletrônica nos direciona para https://oodihelsinki.fi/en. Desde a entrada, uma mescla de espanto e de emoção infinda ao descobrir que parcela de meus sonhos de outrora ali estava. Para os demais do grupo de excursão, um choro inexplicado ou inexplicável, à medida que eu conhecia e desvendava a Biblioteca! As pessoas me olhavam e eu nem aí! Chorei convulsivamente sem me preocupar em explicar a ninguém o porquê. Éramos meros companheiros de uma viagem que se iniciava e nossos sentimentos são sempre intransponíveis. Chorava porque ali, pertinho de mim, a meu lado ou dentro de mim, estava a Biblioteca sobre a qual sempre sonhei: uma instituição com “cara e bunda” de gente!

Muito jovem, fui induzida por uma mãe severa a seguir um curso superior de “mulher direita” (seja lá o que isto signifique). E lá estava eu, aos 17 anos, fazendo o então chamado vestibular para o Curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco. Findo o Curso e laureada como a melhor aluna por esta responsabilidade que me fez anciã desde sempre, aos 20 anos, diploma na mão e pé na estrada rumo ao Piauí, ao lado de quem seria o pai de meus filhos. Por dois anos, como primeira profissional da área, lutei bravamente na esfera da Biblioteca Pública do Estado do Piauí, para esclarecer à mídia local e aos muitos desavisados que havia, sim, uma profissão de nível superior, chamada de Biblioteconomia. Concurso público para o cargo de bibliotecário (não biblioteconomista ou qualquer termo mais pomposo) me levou ao território quase virgem do campus da Universidade Federal do Piauí (UFPI), exatamente em 1972, para implantar, como a primeira colocada, o sistema centralizado de Bibliotecas Universitárias, então em voga nas demais instituições de ensino superior. Sobre a UFPI, muito a ser dito... Muito a ser silenciado... Mas isto é outro tema...

O fato é que lá vou eu. Do alto de minha sapiência de menina-mulher-profissional de 22 anos, criar algo completamente novo para mim, como confessei com a cara mais limpa para o Reitor de então, Hélcio Ulhôa Saraiva, era um desafio enigmático. Espantado por minha ignorância confessa, apesar de currículo invejável para a minha idade, mas, oxalá, admirado por minha coragem, me mandou estagiar na recém-inaugurada Biblioteca Central da Universidade de Brasília. E lá vou eu por 30 dias para a capital do país, apesar de dois filhos pequenos, muito pequenos. Mas era pegar ou largar...

Retornei e comecei a dar vida à então Biblioteca Central (BC) / UFPI. Fiz loucuras. A princípio, retirei as odiosas placas de silêncio que soavam como alerta para um comportamento sombrio e apático de “meus meninos”. Como uma pedinte desavergonhada e sorridente, acostumei a “catar”, de setor em setor, tudo que julgasse útil para dar um ar criativo às instalações da BC, mas, sobretudo, máquinas de escrever em condições de uso para colocá-las à disposição de quem não contasse com o equipamento em casa. Mero adendo: os computadores viriam depois. Os porteiros assombrados quase corriam de volta quando, após relatarem beijos e amassos dos universitários por entre as estanterias, encontravam em mim uma aliada dos amores loucos ou juvenis. Os lanchinhos também eram permitidos desde que “meus meninos” cuidassem de sua BC como se fora seu ninho. Conquistei o carinho ou, no mínimo, o respeito de uma equipe de uma secretária querida até hoje (Rezinha) e poucos bibliotecários então contratados. De início, Margô, Cé, Fatinha, Geraldo, Antônia (os apelidos dão o tom de carinho que rolava sem freio entre a equipe) e mais de quase 50 auxiliares, dentre os que cuidavam da limpeza ou do público, incluindo os auxiliares de biblioteca e os denominados bolsistas, alunos oriundos de famílias de poder aquisitivo limitado, muitos dos quais se aposentaram na UFPI em segmentos de suas áreas de estudo ou mesmo na BC.

Porém, havia ordem na aparente desordem. Algumas regras rígidas, mas sempre justificadas: pontualidade; nada de fofoca ou de leva e traz; reuniões constantes mas quase instantâneas para conseguir eficiência e eficácia; recomendação para manter o sorriso nos lábios quando do atendimento ao público; transparência total – nunca mantive gavetas ou portas fechadas; abertura para ocupação do espaço da BC com exposições, saraus, cursos, lançamento de livros, disseminação seletiva da informação (envio de listagens dos títulos adquiridos a cada mês para os setores possivelmente interessados) e com qualquer outra atividade prazerosa e atraente ao leitor. Grandes tragédias, como o corte com estilete, por universitários, de atlas de anatomia de valores elevados e de imensa utilidade para a área de saúde, transformavam-se em exposições com o intuito de que os demais testemunhassem o caminho que não deveriam seguir. Os livros surrupiados soavam como uma lástima, mas, então, exercitava minha crença de que os fatos em si possuem uma faceta nefasta e implacável que se contrapõe ao lado luminoso. Para surpresa de muitos, defendia com a voz mais doce possível: “o livro roubado provavelmente será lido.”

As feirinhas de livros, planejadas com o apoio de editores de regiões, como o próprio Nordeste mais Sudeste e Sul, tentavam suprir a falta de livrarias. Afinal, a capital Teresina mantinha, à época, uma só livraria, porque a segunda se negava a comercializar com a Universidade. Assim, as feirinhas, realizadas por três anos – de 1974 a 1976 – representavam o único meio para que alunos e professores tivessem livros atualizados a seu dispor por preços acessíveis, além da chance de intercambiarem suas publicações usadas. O frete elevado levou embora a adesão das grandes editoras. Aliás, no canal YouTube, o endereço https://youtu.be/ TC-L8_EHlOU?si=D6HqKzso3pt-nNVG traz um relato acerca do feito “glorioso” das feiras de livros dos anos 70, em entrevista concedida ao grande poeta e escritor piauiense Cineas Santos, com atuação cultural desde os anos 70, durante o “Programa Feito em Casa”, TV Assembleia, Teresina – PI, o que o faz me chamar de “avó” do SALIPI [Salão de Livros do Piauí], do qual, provavelmente, serei a Patrona da 24a edição neste ano de 2024.

A esta altura, é evidente que o pouco que fiz visando inovar e renovar a concepção da Biblioteca, lhe concedendo um lugar ao sol para incentivar a leitura e a escrita como recursos essenciais para a descoberta desavergonhada do mundo, não o fiz sozinha. Além da solidariedade irrestrita do então Reitor José Camillo da Silveira Filho, a quem devo muito o que sou ou o pouco que consegui construir como profissional ávida para oferecer às comunidades desfavorecidas e à sociedade como um todo um recanto acolhedor e atraente, havia a equipe que crescia e estava sempre comigo para desmistificar a Biblioteca como mera estanteria e prestadora de serviços mínimos, como consulta e empréstimo domiciliar.  

Eis a Oodi... Aí está ela...

A Helsinki Central Library resultou de proposta do então Ministro da Cultura da Finlândia, escritor, psiquiatra, músico e político, Claes Andersson, ainda em 1988. Em 2015, o Governo deu início à construção, de modo que a Oodi tornou-se o Projeto emblemático do 100o aniversário do país, expondo ao grande público, exatamente às vésperas do Dia de sua Independência, 5 de dezembro de 2018, uma estrutura arquitetônica magnífica com soluções de vanguarda, como dois imensos arcos de aço sobre os quais se assenta todo o edifício, além da utilização maciça do abeto finlandês, madeira leve, fácil de trabalhar e muito utilizada em estruturas de telhado, painéis, molduras e móveis devido à sua estabilidade dimensional e às propriedades isolantes.

 

Fonte:

Coleção pessoal, 2024  

E mais, algo inimaginável numa nação subdesenvolvida ou em desenvolvimento: ao longo da edificação, os cidadãos foram consultados sistematicamente para expressar seus anseios. Daí, feitos “heroicos” tornam a Oodi única. Por exemplo, não cede somente material informacional e tecnológico! Martelos, escadas, varas de pescar e outros itens podem ser emprestados a domicílio ao grande público!  O sentimento de pertença tem início a partir da escolha do nome: certame público e aberto a qualquer cidadão colheu cerca de 1.600 sugestões! Oodi foi o ganhador, significando Ode = poema lírico! Eis o prolongamento da casa dos cidadãos e há estímulo contínuo para tal. Espaço para crianças, muitas crianças. Lugarzinho para adolescentes, jovens, adultos, velhos e anciões. Relaxamento tem seu espaço. Idem para meditação. Os namorados são acolhidos. Quaisquer crenças, etnias, cores, vestimentas... Há de tudo para todos num ambiente de respeito incrível ao momento e ao espaço do outro.

Quer fazer uma pequena pausa ou passar o dia inteiro fazendo alguma coisa? Lanchar? Bater papo? Jogar conversa fora? Informar-se sobre a União Europeia ou outras nações? Oodi é um espaço aberto à cultura e à criação onde você pode fazer as duas coisas, seja ou não portador de alguma deficiência, uma vez que a acessibilidade está ao alcance de quem quer que necessite. Aqui, pode experimentar óculos para enxergar a realidade virtual e estudar música em diferentes gêneros, compor e tocar instrumentos musicais! Aprender a costurar e a cozinhar! Cumprir tarefas escolares ou da comunidade. Organizar eventos gratuitos para todos ou alugar espaços para festas particulares. Aderir a jogos de vídeo ou de tabuleiro, como xadrez. Assistir a filmes em salas muito bem equipadas que comportam 250 pessoas. Saraus, lançamento de livros, concertos, palestras, rodas de conversas, tudo sempre grátis e à disposição da comunidade.

 

Fonte:

Coleção pessoal, 2024  

Que tal usar um cortador a laser ou conhecer de pertinho um robô. A este respeito, a Biblioteca conta com três robôs para o deslocamento de materiais e livros. Desta vez, os nomes dos “meninos” foram escolhidos pelo staff: Tatu, Patu e Veera, personagens da literatura infantil finlandesa. Há, ainda, a chance de pintar a aurora boreal numa parede de conto de fadas ou de se extasiar com a gigantesca e incrível obra de arte do finlandês Otto Karvonen, simulando uma escadaria em formato de espiral, na qual é possível conhecer a quem o povo dedica a Oodi.  

Claro que você também pode ler aqui – no cantinho de um sofá; numa sala de contação de histórias ou até mesmo numa varanda ou na sombra de uma árvore [em pleno verão ou em meio à neve], quase sempre, a bucida buceras, planta ornamental própria para ambientes internos, com a ressalva de que nove unidades florescem no terceiro andar. Este também comporta imensa tranquilidade, atribuindo-se ao guitarrista e multi-instrumentista sueco-finlandês Thomas Toivonen a crença de que se você é capaz de se manter tranquilo e concentrado poderá ouvir o doce som das árvores.

 

Fonte:

Coleção pessoal, 2024  

Na realidade, “de cara”, logo na entrada e por toda parte, o lema “Oodi é para todos nós” reforça a intenção dos idealizadores desde a forma como o edifício foi pensado. Localizado na Praça Kansalaistori, fica bem em frente ao Parlamento Finlandês como símbolo do reconhecimento da Biblioteca e de seus profissionais como promotores da igualdade, além de que um dos blocos do terceiro andar e o Parlamento ficam no mesmo nível para simbolizar a conjunção democracia x diálogo. Além do lema, há a divulgação maciça de quatro recomendações básicas por toda parte: (1) igualdade – todos têm o direito de estar na Oodi, sem tolerância a qualquer forma de racismo ou discriminação; (2) respeito – deferência aos demais; (3) conforto – como a Oodi é uma sala de estar compartilhada por todos, logo, todos são responsáveis ??por mantê-la confortável e aconchegante; (4) promessa – a equipe está sempre à disposição para cumprir o juramento de informar e de acolher.

Aos mais pessimistas, podem soar como meras palavras ou promessas. Mas a dinamicidade da Oodi é visível de imediato. Verdade pura e absoluta. Sua originalidade e seu vanguardismo lhe concederam o cobiçado título de Biblioteca Pública do Ano, já em 2019, tanto pela adesão maciça da população quanto pelo exemplo imposto a outros países. Seus 10 mil metros de área construída, com coleção de 70 mil títulos em 23 diferentes línguas, sem hegemonia do finlandês, recebem, por ano, uma média de dois milhões e meio de visitantes dos mais diferentes recantos durante todos os dias do ano, ou seja, todos os dias da semana, de manhã até a noite. É espantoso! Lá estão adeptos de profissões diferentes. Motivações variadas. Gêneros distintos. Etnias diversificadas. Hábitos divergentes.

Pasmem! A Finlândia, em seu território total, possui 800 Bibliotecas espalhadas em suas localidades ou municípios, mas uma única lei rege seu funcionamento, de modo que todas elas, como instituições essencialmente sociais, mantêm-se abertas a qualquer segmento populacional, obrigatoriamente, e todos os serviços são totalmente grátis! Sonha Brasil!

 

Fonte:

Coleção pessoal, 2024  

Em tom de lamento...

Por fim, se sempre refutei a tal “inveja branca”, sob o argumento de que é desculpa esfarrapada de quem não consegue admitir o próprio mal, diante da Oodi “dou o braço a torcer.” Confesso que, tal como sou capaz de sentir amor, paixão, saudade, ternura, vergonha, raiva, consegui inserir inveja na minha espiral flutuante de sentimentos, ao lado de qualquer outro. Deixando de lado a cor da inveja – amarela, multicolorida, vermelha, negra, etc. – admito minha admiração sem limites a todos os que pensaram numa Biblioteca verdadeiramente vocacionada à sociedade.

Se, nos dias atuais, me dedico, de corpo e alma, a uma outra grande paixão, o jornalismo, confesso ser ela a Biblioteca de meus devaneios! Se não em sua plenitude, face às sérias distinções entre os dois países, Finlândia e Brasil, até porque nosso país ocupa a posição do vigésimo melhor país do mundo para se viver, de acordo com as mesmas fontes antes citadas, gostaria de ter conseguido fazer uma Biblioteca bem melhor do que a que construí com minha equipe nos longínquos anos 70. Mas, em meio a esta autocrítica, confesso que fiz o melhor que pude e me doei tanto quanto fui capaz! Descobrir tão recentemente que meus sonhos ainda caminham comigo foi um ato de dor, mas de total remissão!

Indulto concedido ou não, a minhas eventuais vítimas, peço perdão!

Fontes

CINCO melhores países do mundo para se viver. Jornal NH, Novo Hamburgo – RS, 29 nov. 2022. Disponível em: https://www.jornalnh.com.br/informe_especial/2022/11/29/os-5-melhores-paises-do-mundo-para-se-viver.html. Acesso em: 9 fev. 2024.

HELSINKI CENTRAL LIBRARY. Welcome to Oodi. Helsinki: Oodi, 2024. 19 p.  

TARGINO, M. das G. Maria das Graças Targino: depoimento [13 jan. 2024]. Entrevistador: Cineas Santos. Teresina: TV Assembleia, 2024. Entrevista concedida a Cineas Santos. Programa Feito em Casa. Disponível em: https:// youtu.be/TC-L8_EHlOU? si=D6HqKzso3pt-nNVG. Acesso em: 13 jan. 2024.

US NEWS & WORLD REPORT. Países da Europa com melhor qualidade de vida: top 7. Disponível em: https: // www.eurodicas.com.br/paises-da-europa-com-melhor-qualidade-de-vida. Acesso em: 12 fev. 2024.

WHAT is Oodi? Disponível em: https://oodihelsinki.fi/en. Acesso em: 9 fev. 2024.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”