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O MAR VIROU SERTÃO. O SERTÃO VIROU MAR

 

Não eu não sou do lugar dos
esquecidos.
Não sou da nação dos condenados.
Não sou do sertão dos ofendidos.
Você sabe bem.... 
(Antônio C. G. BELCHIOR)

 

O mar, ao longo de décadas, anos e dias, vem sendo cantado e decantado mundo afora. O sertão, ao longo de décadas, anos e dias, vem sendo cantado e decantado, sobretudo, Brasil afora. A literatura brasileira é um bom exemplo, com obras renomadas, a exemplo de Os sertões”, 1902, do escritor pré-modernista Euclides da Cunha, que conta a história da Guerra dos Canudos (1896-1897), sertão da Bahia, como observador atento e sagaz.

São três os elementos fundamentais: a terra, quando flora, relevo e clima do sertão são descritos; o sertanejo, atrelado ao naturalismo para denunciar os problemas sociais dos personagens; e a própria luta, quando o narrador detalha a Guerra. Eis, pois, os elementos que acompanham sertão e mar: terra, homem e luta. Mar e sertão entrelaçam-se. Sertão e mar fundem-se. A realidade atroz e dolorosa da seca do Amazonas, ao longo de 2023, possivelmente, superará a maior seca de até então, ano 2005.

A situação é trágica e deve impactar meio milhão de pessoas. Lagos e rios históricos por sua abundância d’água e sua importância para a população local, como os rios Negro, Solimões, Purus, Madeira e Amazonas estão secando de forma irremediável, impedindo o acesso de barcos com bens indispensáveis a Estados e cidades da região, provocando a escassez de alimentos (ênfase para o pescado), de energia e de combustível, e, ainda, de aconchego aos turistas.

                            Figura 1 – Fome e desesperança

 

                             Fonte: Amazônia Real

Porém, paradoxalmente e comprovadamente, desta vez ou, cada vez mais, a ação humana emerge como elemento o mais danoso possível, por suas ações infames de desmatamento e queima da Floresta Amazônica. São atos prejudiciais a terra, à coletividade e à saúde de quaisquer espécies, representando séria ameaça à biodiversidade. Agravam a situação de vulnerabilidade das populações mais impactadas e que, por ironia, são as que menos contribuem para a emissão de gases do efeito estufa. São os ribeirinhos, pescadores, negros e as comunidades indígenas e quilombolas.

A frase profética atribuída ao líder messiânico cearense Antônio Conselheiro, no século 19, ano 1833, quando ele fundou o Arraial de Canudos, palco histórico da citada Guerra de Canudos previa que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, provérbio comum entre os sertanejos até a atualidade. É a crença de que, num momento qualquer, a situação deplorável do sertão mudará: as terras inférteis se tornarão fecundas e, então, os sertanejos plantarão e colherão em abundância para superar a miséria de seu dia a dia e a disparidade social.

Indo além, pesquisa de doutorado em geologia pela Universidade de São Paulo (USP), empreendida por Alexandre Feitosa Sales sustenta que, na região do Araripe, entre os Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, os fósseis marinhos foram datados em 110 milhões. Ademais, o mar entrou, sim, pelo caminho aberto no meio de um antigo supercontinente meridional, chamado gonduana, que estava se partindo ao meio. A separação deu origem à América e à África, além de criar o Atlântico Sul. Durante intempéries, o mar depositava organismos marinhos, depois fossilizados. Além de ouriços-do-mar, eis a presença de mais de cinco tipos de gastrópodes (búzios) e mais de 10 bivalves / moluscos com duas conchas.

A fusão do mar e terra gera, ainda, poemas de extrema beleza, como um trecho do poeta, cantor, compositor e repentista cearense Patativa de Assaré, que exalta a bravura do sertanejo: “Vivo dentro do sertão. E o sertão dentro de mim. Adoro suas belezas que valem mais do que as riquezas dos telhados de Aladim”. A fusão mar e terra ou terra e mar também é retratada na canção “Sobradinho”, ano 1977, quando os compositores Guttemberg Nery Guarabyra Filho e Luiz Carlos Pereira de Sá discorrem lindamente sobre o sertão e o drama da população, obrigada a deixar suas casas quando para construção da barragem de Sobradinho, Bahia:

O homem chega e já desfaz a natureza 
Tira gente, póe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco, lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia lagar.
 

E o sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão

............................................................................

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-sé
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir
De baixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o gaiola vai subir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
O povo vai-se embora com medo de se afogar

............................................................................

E o sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão

Remanso, Casa Nova, Sento-Sé
Pilão Arcado, Sobradinho
Adeus, adeus, adeus, adeus, adeus.

Prosseguindo a discorrer acerca do homem do sertão, é preciso apreender que cada tribo social possui suas particularidades. Idolatrar os garotões que circulam pelas areias das belas praias ou pelas ondas do mar com suas pranchas coloridas e identificar o sertanejo como rústico, agreste, rude ou caipira é negar a beleza que sobrevive em cada cultura. Grupos sociais e recantos revelam, sempre, traços culturais únicos que se conservam ao longo do tempo, características que lhes fazem únicos e circunstâncias básicas de sobrevivência. Afinal, as lutas do sertanejo tais como as do homem da cidade são revestidas de significação. Em qualquer caso, mar e sertão transmutam-se. Sua gente sobrevive em meio a combates sem fim em busca de uma vida melhor e de sonhos fluidos em meio a secas cruéis e memoráveis...  

                Figura 2 – Secas cruéis e memoráveis

 

                           Fonte: CNN Brasil


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”