COTIDIANO INFORMACIONAL


A PROVOCAÇÃO DE CHARLIE HEBDO E O “CARÁTER SOCIAL DA INFORMAÇÃO”

Muito do que vivemos hoje já foi antecipado em várias obras de ficção, no cinema ou na literatura, principalmente no que se refere ao surgimento do que chamamos de “ciberespaço”. Com a popularização do termo “ubiquidade”, os limites entre o material e o digital, por exemplo, têm se tornado cada vez mais fluidos. Isto significa que, numa proporção jamais vista, os espaços interpenetram-se, propiciando aos indivíduos vivências híbridas, nas quais práticas são produzidas com base tanto no “dentro” como no “fora”.

 

Cada vez mais somos interpelados por experiências mediadas pela informação. Experiências estas que são produto de uma realidade transformada por signos e imagens transmitidas principalmente pela mídia, mas também produtoras de contextos sociais agenciados pelos próprios indivíduos. Quer dizer, vive-se num mundo em que a informação está assentada sobre uma base material, de origem tecnológica, mas que depende também da capacidade humana de engendrar diferentes práticas culturais e sistemas simbólicos. Nesse sentido, cabe lembrar de Bernd Frohmann e sua defesa do “caráter social da informação”, uma vez que, segundo o autor, “os pesados aparatos tecnológicos disponíveis hoje em dia para coletar, processar e utilizar informação exercem profundos efeitos na textura, andamento, ritmo e estruturas do dia-a-dia”.

 

O caso que me motivou a escrever este texto foi uma charge publicada pelo periódico francês Charlie Hebdo acerca da “crise migratória”, abordando a diáspora de cidadãos sírios para fugir da guerra civil que tem assolado o país. Charlie Hebdo é um jornal francês, com circulação semanal, que tem como proposta publicar sátiras acerca de temas que envolvem a política, a economia e mais recentemente a religião, direcionando suas críticas tanto ao ocidente, como ao oriente. Em decorrência disso, o semanário já foi alvo de dois ataques. O primeiro em 2011, que não deixou feridos; e, o segundo, em 2015 com doze mortos. Este causou comoção mundial, onde mensagens de apoio divulgadas nas mídias sociais diziam: “Je suis Charlie”.

 

Recentemente o semanário francês voltou a ser destaque na imprensa mundial por publicar mais uma vez charges bastante provocativas. Duas charges ironizaram a morte do garoto sírio Aylan Kurdi, de apenas 3 anos de idade, numa praia da Turquia. O caso de Aylan chamou atenção para o drama enfrentado por milhares de cidadão sírios, afegãos e iraquianos que protagonizam atualmente uma verdadeira diáspora para fugir da guerra vivenciada em seus países e tentar recomeçar, com alguma esperança, suas vidas na Europa.

 

Na fotografia divulgada pela imprensa, o garoto se encontra de bruços, já sem vida, enquanto seu rosto é banhado pelas ondas do mar. Charlie Hebdo publicou duas charges sobre o caso, onde numa há o corpo de uma criança na praia e um outdoor da rede de fastfood McDonalds. Na segunda, é possível observar uma figura que lembra o episódio relatado na Bíblia em que Jesus caminha sobre a água, enquanto há o desenho de um garoto mergulhando de cabeça. Nela, há uma mensagem que diz: “os cristãos andam na água e as crianças mulçumanas afundam”. Como legenda a charge traz, ainda, a frase: “a prova de que a Europa é cristã”.

 

As charges repercutiram negativamente, gerando críticas em todo o mundo. Algumas pessoas até lembraram do apoio que ofereceram ao semanário quando este sofreu um ataque, no entanto, decidiram manifestar sua indignação através da frase: “Je ne suis pas Charlie”. O semanário sofreu ainda acusações de racismo e xenofobia. Por outro lado, houve quem defendesse as publicações, chamando a atenção à crítica que o semanário estaria dirigindo para a Europa.

 

As imagens suscitaram diversas questões relacionadas ao “problema” da identidade individual e coletiva e suas novas configurações resultantes dos fluxos de informações que são produzidos, consumidos e mediados diariamente. Fluxos estes que envolvem questões tecnológicas, mas também culturais, econômicas e políticas. Fluxos que afetam a subjetividade e que tocam ainda na relação cada vez mais ambígua entre ocidente e oriente. Os “documentos digitais”, como se refere Bernd Frohmann, representam um novo tipo de documentação, que tem a possibilidade de produzir textos, imagens e sons, circulando com grande “velocidade, força e energia”. Ou, para citar ainda outro termo, a polêmica envolvendo as charges de Charlie Hebdo sobre o afogamento do garoto sírio podem ser exemplos de “regimes de informação” (GONZÁLEZ DE GÓMEZ) na medida em que envolvem processos relacionados a conflitos entre diferentes grupos sociais, bem como ordens discursivas através das publicações do semanário.

 

Assim, o dentro e o fora, o familiar e o estranho ou o material e o digital – como dito no início deste texto – são categorias bastante úteis nesse esforço de interpretar parte de nossos rituais diários relacionados à informação. O caso do pequeno Aylan Kurdi, bem como as charges veiculadas pelo Charlie Hebdo tocam em questões sensíveis, que chamam a atenção para o “caráter social da informação”. Isto envolve a necessidade de se estudar a informação enquanto elemento importante do cotidiano, como algo que afeta diretamente a organização da ação individual e coletiva.


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JEFFERSON VERAS NUNES

Mestre em Sociologia pela UFC, doutor em Ciência da Informação pela UNESP e professor do Departamento de Ciência da Informação da UFC