ALÉM DAS BIBLIOTECAS


FLORES RARAS

Ao contrário do alarde que sempre cerca as grandes obras hollywoodianas, uma excelente produção do diretor brasileiro, Bruno Barreto, ”Flores raras”, chega devagarinho, sem muito alarde e sem muitas pompas às salas brasileiras de projeção no segundo semestre de 2013. Classificada como drama, fundamenta-se na biografia de Elizabeth Bishop, uma das maiores poetas norte-americanas de sua época (1911-1979), ganhadora de prêmios e homenagens, entre os quais o Prêmio Pulitzer (1956) e, mais adiante o National Book Award, além de constar como a única mulher, em 1976, a receber o International Neustadt Prize for Literature.

 

Amor. Paixão. Encanto. Desencanto. Encontro. Desencontro. O peso que sufoca relações intensas. O sonho da maternidade. Criatividade. Nostalgia. Imenso sentimento de solidão. Otimismo. Pessimismo. O sonho de um Brasil mais justo em meio à esperança insólita alimentada pelo Golpe Militar de 1964. O cenário e o enredo remetem ao Brasil dos anos 50 e 60. A Bossa Nova explode. Brasília surge imponente. A história das duas grandes mulheres segue adiante.

 

Tímida, arisca, asmática, aparentemente frágil e presa ao alcoolismo, Elizabeth (vivida pela australiana Miranda Otto) parte de Nova York para o Rio de Janeiro, aos 40 anos, 1951. Pretexto: livrar-se do vício e recuperar a inspiração que se esvai pouco a pouco. O ponto de partida é o reencontro com uma antiga colega de faculdade, Mary (no papel, está Tracy Middendorf) que vive maritalmente com Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (1910-1967), cujo papel está sob a responsabilidade da vigorosa Glória Pires. Não demora muito e a premissa que ronda as conversas corriqueiras se confirma: os opostos se atraem. Ao contrário de Elizabeth, Carlota ou Lota é uma mulher voluntariosa, decidida e que sabe exatamente o que deseja da vida.

 

“Despacha” Mary, mas realiza um sonho acalentado por anos pela excompanheira: uma criança adotada. As três seguem uma vida de rotina – Lota trabalha para Carlos Lacerda como arquiteta. Segundo suas palavras, “nascera arquiteta”, e é com profissionalismo e competência que idealiza e constrói o Parque do Flamengo. Mary dedica-se a casa e à filha. Beth, à sua poesia, acompanhada sistematicamente do uísque, que lhe escraviza pouco a pouco. Sem meias-verdades, a protagonista confessa, ao início e ao fim do filme, sua adesão ao pessimismo e sua possibilidade de enfrentar perdas no caminho da vida. Aprender a perder, segundo a poetisa, faz parte da viagem de todos nós. O difícil é aprender a conviver com as perdas. Decerto, trata-se de sentimento que lhe acompanha desde a infância. Aos oito meses, perde o pai. Quatro anos depois, sua mãe segue para um hospício (nunca mais se reencontram) e a criança fica com familiares, primeiro no Canadá e, posteriormente, nos Estados Unidos.

 

Aliás, a história de amor já fora documentada em livro biográfico intitulado na versão brasileira de “Flores raras banalíssimas”, além de dar origem ao monólogo teatral “Um porto para Elizabeth Bishop”. E é exatamente a partir do primeiro verso do poema “A arte de perder” do referido livro que Bruno Barreto tece sua obra.

 

E assim é. Levando consigo alegrias e mágoas, deuses e diabinhos, Beth retorna aos Estados Unidos em 1967 para ministrar aulas. Deixa no caminho Lota em depressão diante do quadro político do país, da perda de seus encargos e da saudade da companheira de 16 anos de convívio. O próximo reencontro lhe traz a verdade: a frágil Beth (carinhosamente Cookie para Lota) já tem novo amor. É quando a fortaleza chamada Lota desaba e se esvai numa tentativa de suicídio silencioso e sem estardalhaços...

 

O filme não exacerba a relação homoafetiva vivida, em grande parte, na suntuosa residência de Lota em Petrópolis em meio à alta sociedade carioca. Trata o tempo todo de uma relação de amor – sem dar muito crédito ao fato de este existir entre mulheres. É um filme terno e denso. Porém, comete um leve “pecadilho”. Confirma o estereótipo de que o artista precisa de inspiração para produzir. Inspiração precisa de álcool, fumo e muito mais. Este muito mais talvez seja a decantada arte de perder:


A arte de perder não é nenhum mistério;

Tantas coisas contêm em si o acidente

De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:

Lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita.

Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe.

Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas.

E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles.

Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada.
Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça muito sério!

Elizabeth Bishop


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”