ALÉM DAS BIBLIOTECAS


SOBRE A DESPAMONHALIZAÇÃO DA VIDA

Maria das Graças Targino

Renata Santos

 

Pressa: esta é a palavra em voga atualmente. Tudo que fazemos, consumimos e planejamos é em função desta pequena palavra que consegue ser o guia de milhares de pessoas. Não temos tempo para pensar ou refletir sobre o que nos é de grande valia ou estima. Não temos tempo para sair com os amigos, namorar, admirar a vida e / ou ficar à toa curtindo o ócio criativo, tão apregoado desde a edição do livro do cientista italiano Domenico De Masi. Sempre e sempre, temos muitas coisas para fazer, muitos planos e metas a cumprir e, principalmente, muito dinheiro a ganhar...

 

Em texto do filósofo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mário Sérgio Cortella, surpreendentemente veiculado em publicação popular, “Brasil. Almanaque de Cultura Popular”, São Paulo, ano 2012, que, em geral, não edita teores mais complexos, o status quo da sociedade é tratado sob ótica extremamente inovadora. Intitulado “É preciso rejeitar a despamonhalização da vida”, o artigo discute exatamente a pressa inerente às coletividades, advinda, em grande parte, da evolução das tecnologias de informação e de comunicação (TIC). Para tanto, a princípio, Cortella diferencia pressa de velocidade, em diferentes instâncias, ou seja, desde o acesso às informações até o atendimento médico ou o ritual das refeições:

 

Acessar uma informação velozmente não significa que o estudo sobre ela deva ser apressado [...] Quero velocidade na hora de ser atendido por um médico, mas não quero pressa na consulta. Quero velocidade na hora de sentar para comer quando estou faminto, mas não quero ter de comer apressadamente (CORTELLA, 2012, p. 13).

 

Para ilustrar tal diferenciação, o paranaense Mário S. Cortella, autor do livro “Qual é a tua obra?”, que trata de liderança, gestão, ética e comportamento do indivíduo no contexto social, mescla os mais distintos tópicos. Chama a atenção para a importância da prática de uma filosofia que possibilite indagar e questionar sistematicamente o próprio viver. Macarrão instantâneo, batatas fritas e Lady Gaga convivem em harmonia com Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia ou Platão. O clássico infantil “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll, e que constitui verdadeira aula de filosofia com colocações sábias que se perdem em suas linhas e ilustrações, se une à epistemologia, à antropologia filosófica e até ao Matrix... É um texto realmente surpreendente!  

 

E mais, o discípulo do imortal Paulo Freire aponta a filosofia como um recurso para pensarmos de maneira crítica e aprofundada sobre a realidade, de afastarmos as obviedades e nos concentrarmos no que realmente importa na vida. Quando fala de filosofia, refere-se a uma filosofia viva, trazida para o dia a dia, em contraposição à filosofia “formol” ou à filosofia estática, que “congela cadáveres” (p. 13) e, por conseguinte, enterra o pensamento de grandes filósofos, como Platão e Sócrates, cujo pensamento é vivo e atual.

 

Porém, o exemplo mais significativo adotado por Mário Sérgio Cortella para discutir a urgência frenética que caracteriza nossa sociedade, à semelhança das marcas impressas com ferretes de brasa em bois mansos ou bravios, é a preparação da gostosa e tradicional pamonha. Comprar pamonha pronta é muito mais prático do que todo o ritual de fazê-la, mas é despido de significados. O ato de fazer pamonha em casa é uma bem-humorada e verdadeira metáfora sobre o prazeroso ato de conviver, de estar junto e compartilhar momentos com aqueles a quem amamos. Porém não temos tempo... Por que perder tempo se podemos bater papo no intervalo de uma tarefa e outra pelas redes sociais; se podemos mandar um e-mail ou postar mensagens; ou, ainda, se podemos curtir comentários e fotos nos facebooks dos “amigos”?

 

Tudo é e tem que ser instantâneo. Numa sociedade onde literalmente “tempo é dinheiro” e, por isso mesmo, não podemos desperdiçá-lo com “futilidades”, enfrentamos a crescente “miojização da vida”:

 

A ideia da pamonha é evitar aquilo que chamo de miojização da vida, a vida miojo. O namoro miojo, o sexo miojo, a pesquisa miojo (grifo nosso). Hoje um jovem imagina que para fazer uma pesquisa ele dá uma “googleada” e pronto. Não. A internet é um poderoso meio de começo de pesquisa, não de término. A ideia do “ficar”, comum entre os jovens, representa [...] a miojização das relações. Há também casamentos miojo. Relação de casamento e também de vida. E até relação religiosa miojizada – o sujeito vai apenas à missa das 10 no domingo, porque é mais curtinha. Enfim, essa miojização do mundo corresponde a uma despamonhalização da vida, que é preciso rejeitar (grifo nosso) (CORTELLA, 2012, p. 13).

 

Na “sociedade da pressa”, chamada por incautos de sociedade da informação ou sociedade do conhecimento (na realidade, sociedade da aprendizagem), precisamos encontrar tempo para parar e refletir sobre a velocidade que imprimimos ao cotidiano, pois a praticidade da vida pode torná-la superficial. Na era das decantadas TIC, na qual celeridade e aparentes facilidades de comunicação se acentuam, devemos lançar mão da capacidade de pensar, sem indolência e preguiça, para impedir que a interação virtual substitua as relações pessoais, o contato, a convivência com amigos, colegas e familiares.

 

FONTES:

 

CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. 2. ed. São Paulo: [s. n.], 2000. Disponível em: <http://drikamath.files.wordpress.com/2011/02/alice-no-pac3ads-das-maravilhas.pdf >. Acesso em: 11 mar. 2012.

 

CORTELLA, Mário Sérgio. É preciso rejeitar a despamonhalização da vida. Brasil. Almanaque de Cultura Popular, São Paulo, n. 153, p. 12-14, jan. 2012.

 

CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a tua obra? Petrópolis: Vozes, 2008.

 

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.  

 

Renata Santos - Jornalista e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Piauí


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”