ALÉM DAS BIBLIOTECAS


“AMOR CEGO” ÀS TECNOLOGIAS E DESINFORMAÇÃO

Ano 1998. Capítulo nosso intitulado The social impact of the Internet: does it promote diversity, access and participation? (Os impactos sociais da internet: promove a Rede diversidade, acesso e participação?), publicado no livro Cultural ecology: the changing dynamics of communications (Ecologia cultural: a dinâmica de mudanças das comunicações), editado pelo International Institute of Communications, Londres, à época, já fazia alusão ao sonho ou ao devaneio que as inovações tecnológicas podem representar. Era a década de expansão das redes eletrônicas de informação e de comunicação. A internet começava a reinar soberana. Desde então, mais e mais, discute-se por toda parte o fim dos impressos e a hegemonia da virtualidade.

 

Transcorridos 13 anos, nosso presságio se confirma: o princípio de acesso universal, segundo o qual a infraestrutura global de informação está à disposição de todos aqueles que tradicionalmente permanecem marginalizados (como underclass), é um sonho remoto. Isto é, tal como se dá em cidades do interior do Brasil, ênfase para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, há rincões mundo afora, onde a Rede é um tema repleto de enigmas. Por exemplo, mesmo em meio à explosão das bibliotecas virtuais, é preciso lembrar que o Brasil é constituído de mil brasis, infinitamente distintos. Em 2002, por exemplo, revendo um município paraibano (Conceição do Piancó), onde minha mãe nasceu, sentimos, de forma concreta, como é devaneio a crença de que a internet alcança o País, de Norte a Sul: uma cidade, dois computadores. Um deles locado na única agência do Banco do Brasil; o outro, no Fórum de Justiça. Ao final de 2005, em nossa estada num pequeno município maranhense, Poção de Pedras, vivenciamos a dificuldade de acesso à Rede.

 

Hoje, porém, referimo-nos especificamente à realidade de Myanmar, antiga Birmânia, país com 676.578 km² e segundo estimativa de 2009, com 55.400.000 habitantes. As estatísticas oficiais, leia-se, estatísticas governamentais, dizem que menos de 1% da população tem acesso à internet, incluindo os mandatários e a pequena classe economicamente privilegiada, capaz de assumir o alto custo que isto acarreta. Em hotéis quatro ou cinco estrelas (“ilhas de ilusão”), em teoria, o acesso é possível. Na prática, enviar uma mensagem de urgência ou ler o que há nos correios é uma doce tortura. Além do atraso tecnológico – nação onde o celular constitui objeto de luxo, a TV plana inexiste e o computador pessoal está em menos de 2% dos lares – há a censura imposta pelo governo militar (que se apresenta como República presidencialista) em direção a numerosos portais e sites. Rememorando: é o que ocorre em Cuba, China e em outras nações, onde a democracia é somente uma palavra a mais no dicionário...

 

A constatação é irrefutável: se as tecnologias agilizam as ações cotidianas, com a presença do computador em todos os setores, incluindo agências de viagem, transportes, bancos, consultórios, academias de ginástica, atividades circenses, agências de publicidade e de propaganda e assim quase infinitamente, os que se extasiam com as potencialidades da evolução tecnológica não podem perder a dimensão da civilização como um todo. Devem lembrar que há gente (e muito mais do que se pensa) fora desse circuito. Paradoxalmente, é arriscado afirmar se são pessoas mais, ou menos felizes. Sobrevivem. Conservam muito da simplicidade e, quiçá, da inocência. A criatividade se faz essencial para sobreviver. Por exemplo, os brinquedos das crianças de três escolas visitadas são verdadeiras maravilhas construídas com latas usadas, pneus imprestáveis e o que mais a capacidade imaginativa de cada um pode alcançar.

 

Em direção oposta, o atraso tecnológico da nação é o visível responsável por deixar as coletividades distantes de uma vida digna. Saúde, saneamento, educação, transporte público etc. são precários. Em pleno centro de Yangon, a cidade mais populosa e excapital do país, é possível encontrar nas calçadas datilógrafos (máquinas manuais) à disposição do grande público para deixar prontos textos de diferentes naturezas. A princípio, pensamos estar frente a Dora, personagem vivida por Fernanda Montenegro no filme Central do Brasil, que se dispunha a escrever cartas para os analfabetos brasileiros... Não: é uma atividade do dia a dia birmanês.

 

Por tudo isto, os fanáticos, que insistem em visualizar as tecnologias como salvação da humanidade, devem levar em conta a existência de outra realidade, onde estas persistem como devaneio ou sonho distante. São dois universos completamente distintos. Porém, são universos que perfazem o século XXI. A civilização transnacional e igualitária ainda se nega a aparecer. A força da informação científica e tecnológica acentua a divisão entre nações que produzem informações e aquelas que somente as consomem (ou nem isto). É a desigualdade contínua entre povos e o que é pior, às vezes, entre diferentes segmentos sociais do mesmo país.

 

Além do mais, tais apaixonados devem ter em mente, sempre, o que a revista Veja, em matéria recente de 7 de dezembro, tão bem sintetiza: “Se a disseminação do conhecimento é a mola propulsora da humanidade, a propagação da ignorância às vezes também funciona” (p. 140). Refere-se, especificamente à desinformação propagada a galopes via vídeo com cinco minutos de duração (em duas semanas, visto 3,2 milhões de vezes) sobre Belo Monte, usina em construção no Rio Xingu, Pará. Desta vez, 19 atores globais, entre os quais estão Marcos Palmeira, Claudia Ohana, Maitê Proença, Juliana Paes e Ingrid Guimarães, se expõem ao ridículo com opiniões estapafúrdias acerca do tema... É a tecnologia atuando em detrimento do aprofundamento das informações e dos conhecimentos. Decerto, o amor “cego” às inovações tecnológicas pode concorrer para banalizar nossos valores culturais. Informações desvirtuadas e deformadas, além de flagrantes mentiras se espalham a passos de gigante, reiterando a premissa do ex-primeiro-ministro britânico James Callaghan, segundo a qual “uma mentira pode dar a volta ao mundo antes que a verdade tenha a chance de calçar as botas” (KEEN, 2009, p. 22).

 

Fontes:

ELER, A.; DINIZ, L. Nocauteados pela lógica. Veja, São Paulo, ano 44, n. 49, p. 140-146, 7 dez. 2011.

 

KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MySpace; YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 207 p.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”