ALÉM DAS BIBLIOTECAS


É MAIS FÁCIL CULTUAR OS MORTOS QUE OS VIVOS *

“É mais fácil cultuar os mortos que os vivos.

Mais fácil viver de sombras que de sóis!

É mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro! [...]”

(Zeca Baleiro)

 

 

Novembro é o mês em que rememoramos nossos mortos. Isto me faz lembrar uma quase infinidade de canções, nacionais e internacionais, que falam sobre vida e morte. Por exemplo, Minha casa, de Zeca Baleiro, me remete à genialidade dos que, como ele, conseguem colocar de forma tão simples como é difícil viver e conviver com os vivos. Ele tem razão. É bem mais fácil cultuar os mortos. Com eles ou para eles, podemos sonhar o sonho da perfeição. Com eles ou para eles, podemos (re)construir uma vida de gramado sempre verde, de um sol sempre luzente, de um dia sempre iluminado, de uma convivência sempre harmônica, de um luar de extrema beleza. Verdade! Os mortos não cobram amor. Não incomodam. Não reclamam. A saudade infinda que sentimos dos que se foram – filhos, pais, avós, tios, sobrinhos, amigos, vizinhos – faz com que possamos esquecer mágoas remanescentes e dores por acaso vividas para lembrar e cultuar somente a ternura e os gestos de carinho. A dor se sobrepõe à realidade e todos se tornam amantes, amados e exaltados quase à exaustão. 

 

E o que dizer da frase tão cheia de significado – Mais fácil viver de sombras que de sóis! O sol nos traz luz. Com ela, a possibilidade de enxergar a verdade dos fatos, a inteireza do ser humano, que traz consigo, ao lado de qualidades e encantamentos, defeitos e falhas. Na sombra, enxergamos mal, e podemos nos dar ao luxo de resgatar somente as flores. Os espinhos, o que fazemos com eles? Doem, sangram, mas não os vemos, pois se perdem nas trevas da escuridão ou na obscuridade das sombras.

 

E vamos além: “é mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro!” Acalentando o passado e o repetindo em lamúrias, a gente esquece de construir o futuro (não falo em se preocupar com o futuro – o que vale é deixá-lo acontecer, é fazê-lo acontecer), até porque imprimir o futuro, tal como conviver com os que estão ao nosso lado, inquietos e irrequietos, é sempre trabalhoso, e, por vezes, cansativo. Nunca é um exercício fácil. Requer esforço contínuo, persistência, tolerância, complacência, respeito às diferenças, atenção às necessidades e às carências dos outros (que nem sempre coincidem com as nossas), solidariedade e, assim, quase infinitamente...

 

Mas, tudo contra a prática de esquecer os vivos. Falo por mim. Quero tudo o que tenho direito – agora, aqui e já. Não quero choro, nem vela... como diz aquela outra canção brasileira. Quando eu me for, não chorem por mim, não sofram por mim, não pensem em mim. Quero tudo agora. Tenho urgência de viver. Sem cobranças, sem imposições, e com o direito de ir e vir, para mim e para vocês. Por favor,


 

sorriam comigo,

errem comigo,

dancem comigo,

sonhem comigo,

cantem comigo,

leiam comigo,

viajem comigo,

chorem comigo,

assistam filmes comigo,

gritem comigo,

relaxem comigo,

orem comigo,

nadem comigo,

curtam comigo,

corram comigo,

pensem em mim,

façam coisas proibidas comigo,

exercitem sua paciência comigo!

 

 
 

Se tudo isto não for possível, aqui, agora e já, tentem um dos itens: qualquer um. E mais: olhem para mim e me vejam. Há muitos outros que estão definhando de solidão, estão pedindo colo, estão querendo nada mais além de uma vida para viver e não para morrer. E isto assombra as pessoas. Nossas carências afastam as pessoas. Há um medo quase insano de se envolver, de se doar, de sonhar, de se deliciar com momentos. É como se esquecêssemos de que, da mesma forma que não é salutar se perder sempre, não se pode ganhar sempre. Saudemos nossos mortos para que descansem em paz, mas lembremos do que Gabriel García Márquez, em sua sabedoria, coloca no preâmbulo do livro, Viver para contar: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.”

 

* Baseado em trecho do livro da autora: Palavra de honra. Palavra de graça.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”