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O JUBILEU DA RAINHA E O PERCURSO DA CATALOGAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Acompanhamos, na primeira semana do mês de junho, as comemorações do jubileu de 70 anos de reinado da rainha Elizabeth. Fato sem precedente na monarquia britânica. As virtudes que a Rainha representa, de continuidade e consenso, não são qualidades pequenas no Reino Unido dos tempos modernos. Ela é tema recorrente na vida de milhões de britânicos, cuja maioria nunca conheceram outro chefe de Estado. Aos 96 anos, a sua longevidade é um símbolo da constância do Estado, mesmo quando outras instituições oscilam.

Na catalogação, comparada a este reinado, nos deparamos com várias mudanças na busca de um consenso pelas normativas e padrões aplicados aos processos catalográficos. Nos últimos 70 anos, na perspectiva da catalogação brasileira, transitamos pelo uso de vários códigos de catalogação, por exemplo: ALA, Vaticano, AACR (1967), ISBDs, AACR2 (1988), AACR2r (2002), ISBD consolidada e RDA (original e 3R).

Havendo a ocorrência de normas descritivas embargadas por outras, caso do AACR2 que incorporou as diretrizes da ISBD, na edição norte-americana de 1978, que corresponde a edição brasileira de 1988.

Mas as coisas não seguem calmas no universo catalográfico, abalado com as mudanças geradas pelo ecossistema digital. Se nas comemorações inglesas a frase de saudação expressa: God save the Queen, Para os bibliotecários, a expectativa com todas as mudanças que ocorrem no campo é que as mudanças normativas e de codificação na catalogação ainda possa ser uma alternativa viável ao tratamento bibliográfico.

No livro de Richard e Rachel Rubin “Foundations of library and information Science”, publicado em 2020, encontra-se um comentário ao percurso das regras de catalogação do AACR à RDA; e dos Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos (FRBR) ao Modelo de referência de Biblioteca da IFLA (LRM).

Ressaltam que as regras da AACR evoluíram a partir das propostas feitas por Antônio Panizzi para a biblioteca do Museu britânico, em 1841. Historicamente, a criação dos registros bibliográficos foi orientada pela AACR, incluindo a pontuação e a ordem preferencial para os elementos de conteúdo.

Em 1908, a ALA – American Library Association promoveu suas próprias regras para catalogação descritiva. A Library of Congress - LOC utilizou as suas próprias regras até a década de 1960, quando surge um maior interesse em desenvolver padrões internacionais como resposta ao uso de computadores. Ressalte-se que ela coordenava o desenvolvimento do formato MARC.

Em 1967, o AACR expandiu-se para tornar-se o primeiro código projetado para a recuperação eletrônica seguindo os Princípios de Paris. E, embora o código fosse destinado a fornecer padrões internacionais, na realidade as práticas catalográficas norte-americanas, canadenses e britânicas variavam significativamente. Consequentemente, em 1974, um comitê internacional composto por representantes de várias associações nacionais de bibliotecas e representantes do Canadá, Grã-Bretanha e os Estados Unidos promoveram uma revisão do AACR. O resultado da revisão gerou o Código de Catalogação Anglo-Americano (Anglo-American Cataloging Rules), 2ª edição (AACR2), que incorporou os padrões da Descrição Bibliográfica Internacional Normalizada (International Standard Bibliographic Description – ISBD).

Na época, a AACR2 se estabeleceu como um padrão internacional para descrição bibliográfica. No entanto, com o surgimento da internet e a diversidade dos recursos digitais, rapidamente a adequação da AACR2 é desafiada. Em 1997, o Joint Steering Committee for Revision of AACR (JSC), composto de representantes da ALA, Canadian Library Association e de outras agências bibliográficas nacionais, promove em Toronto, uma conferência para revisar os princípios básicos da AACR2. [MODESTO, nov. 2018; MODESTO, dez. 2018; MODESTO, jan. 2019].

A partir do qual, o JSC começa a trabalhar na atualização do código sob o codinome: AACR3. Em abril de 2005, o JSC divulga o primeiro esboço para revisão. No entanto, naquela data, ganha evidência o modelo FRBR, estimulando a discussão sobre a necessidade de uma abordagem dos processos catalográficos mais próximos ao ambiente digital emergente. Como resultado, o JSC abandona a AACR3 e, direciona-se ao desenvolvimento do Resource Description and Access (RDA – Recurso: descrição e acesso). O Projeto passa a ser descrito como uma nova normativa catalográfica destinada a suceder a AACR2 como o padrão preferido para a catalogação bibliográfica.

A RDA fornece diretrizes sobre a descrição de recursos para uma variedade de mídias e ampla variedade de conteúdo. Se propõe ir além dos códigos de catalogação anteriores enquanto fornece diretrizes sobre a catalogação de recursos digitais e coloca uma forte ênfase em ajudar os usuários a encontrar, identificar, selecionar e obter as informações desejadas. [MODESTO, jun. 2017; MODESTO, nov.2017]. Ela, ainda orienta a descrição de dados analógicos e digitais independentemente de qualquer banco de dados específico. E tem o potencial de ser usada por outras instituições do patrimônio cultural. Atualmente, a norma é desenvolvida pelo RDA Steering Committee (RSC), sob a supervisão do RDA Board composto por representante da: American Library Association, Canadian Federation of Library Associations, CILIP: Chartered Institute of Library and Information Professionals, Deutsche Nationalbibliothek, Library of Congress, Library and Archives Canada, British Library, e National Library of Australia.

Tendo como base o uso do modelo de entidade-relacionamento estabelecido pelo FRBR, a RDA inclui orientações para descrever os atributos de um recurso (título, editora, edição, etc.) e os relacionamentos (por exemplo, entre conceitos, pessoas e obras). A RDA se concentra apenas na descrição do recurso. É compatível com MARC 21 e Dublin Core. Ao refletir as mudanças promovidas pelo ambiente das redes, a RDA é descrita como um pacote de elementos de dados, diretrizes e instruções para criar metadados de recursos bibliográficos e do patrimônio cultural. A mudança do AACR2 para a RDA não é sem controvérsia. Nas preocupações amplas estão incluídas as implicações financeiras da mudança e o impacto nos processos de trabalho e nos sistemas automatizados de suporte bibliográfico. No entanto, a RDA vai ampliando a sua utilização em distintos ambientes, com desempenho significativo.

Quanto aos requisitos funcionais, notadamente FRBR e LRM, esses surgem como alternativa de superação das práticas e aplicações de catalogação inconsistentes, resultantes da complexa evolução do universo bibliográfico, ao longo dos anos. Inicialmente, na tentativa de estabelecer um modelo conceitual conciso, a IFLA criou um grupo de estudos em 1992 para fixar um entendimento comum sobre o propósito das informações fornecidas em um registro bibliográfico. [MODESTO, jun. 2016].

Em 1998, o grupo desenvolveu o modelo “entidade-relacionamento”, denominado Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos. O modelo propôs uma estrutura unificadora e uma terminologia comum para a discussão dos padrões catalográficos, ainda que não associado a nenhum código de catalogação. As regras e princípios catalográficos passaram a ser examinados sob uma nova perspectiva. Saliente-se que o FRBR não especifica como estruturar elementos de dados e nem como devem ser exibidos. Em realidade, o modelo oferece uma estrutura intelectual para tipificar elementos de dados e mostrar como eles estão inter-relacionados entre registros bibliográficos distintos.

O FRBR ao desviar a atenção da catalogação para si mesma, promoveu a visualização do catálogo bibliográfico na totalidade. Desde os seus registros e aspectos de sua navegação. O modelo abordou como os dados bibliográficos, incluindo dados de autoridade e assunto, atendem às necessidades dos usuários. Os usuários podem ser tanto os profissionais responsáveis pela organização de informações, como bibliotecários-catalogadores; pessoas envolvidas no desenvolvimento de sistemas bibliográficos; ou os usuários de bibliotecas. O FRBR deu maior ênfase no conteúdo de um recurso e menos ênfase no suporte. O foco passa a estar em como os elementos de dados, contidos no registro bibliográfico, ajudam o usuário a realizar quatro tarefas, na consulta do catálogo: encontrar, identificar, selecionar e obter recursos ou entidades desejadas. [MODESTO, fev. 2016].

O primeiro modelo de entidade-relacionamento desenvolvido foi para as entidades contidas no Grupo 1 do FRBR, ou seja, os produtos da atividade intelectual e criativa divididos em quatro tipos: item, manifestação, expressão e obra. Tillett (2004) explica como esses quatro tipos estão relacionados:

Quando dizemos o “livro” para descrever um objeto físico que possui páginas de papel e encadernação [. . .] O FRBR chama isso de “Item”. Quando dizemos “livro” podemos também significar uma “publicação”, como quando vamos a uma livraria para comprar um livro. Podemos saber seu ISBN, mas a cópia em particular não importa [. . .]  O FRBR chama isso de “Manifestação”. Quando dizemos “livro”, como em “quem traduziu esse livro”, temos um texto específico em mente e um idioma específico. O FRBR chama isso de “Expressão”. Quando dizemos “livro”, como em “quem escreveu esse livro”, podemos nos referir a um nível mais alto de abstração, o conteúdo conceitual subjacente a todas as versões linguísticas. [. . .] O FRBR chama isso de “Obra”.

Dois modelos suplementares foram desenvolvidos. Os Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade (FRAD), em 2009, concentrado nas entidades do Grupo 2: agentes ou instituições sociais responsáveis pela criação, produção e distribuição das entidades do Grupo 1 do FRBR. Os Requisitos Funcionais para Dados de Autoridade de Assunto (FRSAD) desenvolvidos em 2011, com abordagem no Grupo 3 do FRBR, ou seja, qualquer coisa que pudesse ser objeto de uma fonte de informação.

Para Tillett (2004), estas coisas podem ser conceitos, objetos, eventos, lugares e qualquer uma das entidades do “Grupo 1 ou Grupo 2 do FRBR”. Por exemplo, podem ser obras sobre outras obras ou sobre uma pessoa, ou entidade coletiva ou corporativa. Os assuntos foram relacionados ao nível da obra. Juntos, os três modelos ficaram conhecidos como a “família de modelos FR ou FRBR”. Para o FRBR, o relacionamento entre as entidades foi fundamental; quanto mais as pessoas entendessem as relações dos três grupos, maiores as possibilidades de encontrar toda a família de materiais que atendesse às suas necessidades.

Ainda, segundo explica Tillett (2004), uma família de obras está ao longo de um continuum. Em uma extremidade do continuum estão as obras que eram expressas da mesma maneira, como em uma reimpressão, edição fac-símile ou cópia. Essa mesma obra movendo-se ao longo do continuum pode ser modificada de alguma forma para produzir uma nova expressão da obra, como em um resumo, um arranjo (no caso de uma composição musical), uma revisão ou uma tradução. Em algum momento, no entanto, uma obra inteiramente nova poderá ser criada com base na obra original, mas transformada em algo novo – por exemplo, se um romance fosse parodiado ou transformado em peça, ou filme.

Obras que eram muito diferentes, mas ainda membros da mesma família, residiam na outra extremidade do continuum. Exemplos podem ser revisões, críticas ou comentários sobre uma determinada obra. As regras de catalogação sobre como um item deveria ser catalogado dependiam, em parte, de onde ele se encaixa nesse continuum. O modelo conceitual FRBR permitiu aos catalogadores colocar um determinado item em um continuum e forneceu uma importante ferramenta para uma tomada de decisão consistente na ordenação do universo bibliográfico.

O FRBR possui benefícios potenciais: busca aprimorada à equipe da biblioteca e usuários, navegação fácil no catálogo, inserção eficaz de dados nos registros bibliográficos e a catalogação e o compartilhamento de registros facilitados. Como o FRBR é particularmente sensível às muitas manifestações e expressões de uma determinada obra, tornou-se especialmente útil para as coleções sofisticadas que possuem formas diferentes de uma determinada obra. Um exemplo simples de como o FRBR pode ser útil:

Uma base de dados “FRBR-izada” (construída com conceitos de FRBR) apresentaria resultados de forma hierárquica. Exemplo, uma pesquisa por Jane Austen, pode primeiro nos dar um resultado com duas opções: obras de Jane Austen ou obras sobre Jane Austen. Um clique nas obras de Jane Austen nos leva a uma lista de títulos, sem especificar edições particulares. Então, um clique em um título nos fornece a edições específicas dessa obra. Neste exemplo, informações detalhadas sobre publicações individuais são mantidas ocultas ou até serem necessárias ao usuário. Neste hipotético banco de dados FRBR, uma busca por Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice) pode primeiro exibir uma lista dos vários formatos das obras de Jane Austen. Um clique em filmes nos levaria a uma lista de todos os filmes. E, um clique na versão de 2005 resultaria em uma lista de todas as edições e tipos de material (por exemplo, VHS, DVD) disponíveis para um filme baseado na obra. (DUDLEY, 2006 apud Rubin & Rubin, 2020).

O FRBR ao mudar o foco do registro bibliográfico na totalidade para dentro das suas partes componentes; visto que o registro foi desagregado, cada componente pode ser pesquisado ou novamente agregado, aumentando a oportunidade de compartilhamento e para a reutilização dos dados.

O FRBR representa uma contribuição revolucionária para a prática e teoria de catalogação. No entanto, os três modelos (FRBR, FRAD, FRSAD) foram desenvolvidos ao longo de mais de uma década por três grupos de trabalho diferentes, na IFLA. Como resultado, houve inconsistências consideráveis que tornaram problemática a adoção do FRBR.

Esses problemas podem ser resumidos da seguinte forma. Os três modelos FR, apesar de criados em uma estrutura de modelagem entidade-relacionamento, adotaram perspectivas distintas e diferentes soluções para problemas comuns. Embora os modelos sejam necessários em um completo sistema bibliográfico, tentar adotar os três em um único sistema requer resolver questões complexas de maneira improvisada com pouca orientação dos modelos. Assim, ficou claro a necessidade de combinar ou consolidar a família FR em um único modelo coerente em esclarecer o entendimento do modelo geral e remover barreiras à sua adoção.

Desta forma, em 2013, a IFLA estabeleceu o Consolidation Editorial Group (CEG) para integrar e dar consistência aos três modelos. O novo modelo integrado, Modelo de Referência de Biblioteca da IFLA, foi publicado em 2017. A IFLA o descreve como um modelo conceitual de alto nível e, como tal, pretende ser um guia ou base para formular regras de catalogação e implementar sistemas bibliográficos. O LRM pretende ser um modelo único e abrangente que engloba todos os aspectos do universo bibliográfico. Isso inclui os elementos de autoridade e de assunto, bem como os bibliográficos. Ele não é um sistema bibliográfico ou de catalogação, mas pode fornecer a base conceitual para tais sistemas. Foi projetado para ser aplicado a todos os tipos de materiais e para uso na Web Semântica. Como o FRBR, o LRM é orientado ao usuário. Nele, as cinco tarefas genéricas do usuário são:

Localizar: Reunir informações sobre um ou mais recursos de interesse pesquisando sobre qualquer critério relevante.

Identificar: Compreender claramente a natureza dos recursos encontrados e distinguir entre recursos semelhantes.

Selecionar: Determinar a adequação dos recursos encontrados e aceitar ou rejeitar recursos específicos.

Obter: Acessar o conteúdo do recurso.

Explorar: Descobrir recursos utilizando os relacionamentos entre eles e, assim, contextualizá-los.

As primeiras quatro tarefas são as mesmas identificadas no FRBR. A tarefa explorar, recém-adicionada, reconhece que alguns usuários não estão procurando informações específicas, mas podem estar navegando para descobrir conhecimento ao acaso.

Existem muitas diferenças entre o LRM e o FRBR, mas é importante observar que o LRM mantém as entidades: item, manifestação, expressão e obra, do Grupo 1 do FRBR, preservando a ênfase na identificação dos relacionamentos entre eles e os criadores dessas entidades. O LRM também é generalista para não só acomodar as relações estabelecidas no FRBR, mas realizar conexões adicionais e criar contextos, razão pela qual é acessível e ajustado ao ambiente digital.

Bibliotecários envolvidos com a organização da informação no âmbito local ou nas redes digitais precisam acompanhar o desenvolvimento e a implementação do LRM, especialmente o seu efeito aplicado na RDA.

Indicação de leitura:

Rubin, R. E.; Rubin, R. G. Foundations of library and information science. Fifth edition. Chicago: ALA Neal-Schuman, 2020.

Tillett, B. What Is FRBR? Washington, DC: Library of Congress, 2004. www.loc.gov/cds/downloads/FRBR.PDF.

 


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.