ONLINE/OFFLINE


TORONTO: A CIDADE DO NOVO ILUMINISMO NA CATALOGAÇÃO BIBLIOGRÁFICA – PARTE II

Prosseguindo sobre as mudanças na catalogação, que teve como marco simbólico a Internacional Conference on the Principles and Future Development of AACR, realizada na cidade de Toronto (Canadá), em outubro de 1997, segue-se com este texto, baseado no relato de Barbara Ann Barnett Tillett, e que ressalta fatos ocorridos no evento, bem como marcaram as práticas e os fundamentos da catalogação bibliográfica, como:

O segundo dia da Conferência, iniciou com a exposição de Lynne C. Howarth que abordou o 'Conteúdo versus Suporte' (Content vs. Carrier) questionando a regra 0.24 do AACR2r [que foi reformulada para dar ênfase à importância de ressaltar todos os aspectos do item que está sendo descrito], mas que a Professora interpretou como uma orientação para catalogar a partir do item físico que se tivesse em mãos. Propôs um modelo que denominou de “4 camadas”, mas que em realidade eram quatros componentes de informação interligados, e não uma hierarquia de níveis, a saber:

o "Camada 1": nível da Obra de conteúdo comum (título, indicação da responsabilidade, conteúdo bibliográfico genérico, conteúdo artístico genérico, conteúdo intelectual genérico, cabeçalhos e descritores de assunto, palavras-chave, e número padrão de classificação)

o "Camada 2": Nível da autoridade (para autores, títulos (uniformes e outros), séries, assuntos, classificação e registros de autoridade para acesso numérico, ISBN, ISSN, ISMN, URN, etc.)

o "Camada 3": nível da manifestação (para os detalhes do formato, GMD, edição, área 3 para designação dos tipos de materiais, publicação, distribuição, etc., descrição física, notas relativas ao formato físico, números relevantes para o formato (ISBN, ISSN), pontos de acesso específicos para o item em questão, pontos de acesso vinculados a registros de autoridade e vínculos orientados a objetos, por exemplo, para texto completo atual)

o "Camada 4": nível do item, cópia específica, definido por, embora não necessariamente limitado, as estruturas de dados do formato MARC (replica o nível de cabeçalhos da proposta de Múltiplas Versões. [Multiple Versions Forum Report: report from a meeting held December 1989, Airlie, Virginia.-[Washington, D.C.]: Network Development and MARC Standards Office, Library of Congress, 1990.]

Ela sugeriu desconstruir o AACR2 e colocá-lo de volta com o Capítulo 1, na camada de Obra (conteúdo), como foco principal e capítulos subsequentes para os elementos da manifestação exclusivos do formato físico, com fontes prescritas para as informações relevantes, e depois os capítulos 22-25 (respectivamente: cabeçalhos para pessoas; nomes geográficos; cabeçalhos de entidades; e títulos uniformes) reconstruídos para registros de autoridade. Ela reconheceu, na ISBD, a estrutura para descrição, e no MARC, a estrutura de suporte subjacente, como oportunidades. Por outro lado, os desafios incluem a necessidade de realizar alterações no MARC e o fato dos ambientes automatizados variarem muito. Crystal Graham (1952-2000) questionou a maneira como o registro da “camada 1” de Obra iria lidar com os seriados que não possuem dados estáveis. Também Martha M. Yee questionou o valor da transcrição, porque já se tinha iniciado a organização a partir do uso de metadados fornecidos pelo editor do recurso. 

Michael Gorman e Pat Oddy apresentaram o trabalho “The Anglo-American Cataloguing Rules, Second Edition: Their History and Principles”. Destacaram aspectos como o do AACR ter possibilitado que os registros, em inglês, criados em todo o mundo tivessem o mesmo conteúdo. Lembraram que as regras progrediram desde os códigos pessoais de Panizzi e Cutter para os códigos corporativos que derrubaram as políticas em favor de compromissos. Os princípios que eles identificaram foram:

§ qualquer descrição de qualquer material da biblioteca, tangível ou intangível, será de acordo com a ISBD;

§ todas as mídias são tratadas da mesma forma;

§ a descrição é baseada no item bibliográfico; e

§ os pontos de acesso são derivados da natureza da Obra, não da natureza da entidade bibliográfica que está sendo descrita.

Salientaram o uso do item bibliográfico para obter indicações sobre a natureza da obra. O AACR2 poderia ser a base para as mudanças graduais e evolutivas, e um meio de padronização para aumentar os benefícios econômicos da catalogação por cópias. Criticaram a decisão da Library of Congress sobre reproduções de microformas que contradiz a regra, e a qual eles consideraram uma decisão infeliz. Também, observaram a necessidade de se resolver a questão das microformas para textos equivalentes, impressos e eletrônicos, e que a abordagem da LC seria um desastre (ainda nas sessões de abertura, a supremacia do conteúdo sobre o suporte foi um consenso geral). 

Alertaram contra a simplificação que gestores das bibliotecas adotavam, particularmente, na eliminação do controle de autoridade, porque essa simplificação não torna a catalogação adequada. Recomendaram abolir a jurisprudência em questões legais, religiosas, cartográficas e musicais, optando para que os especialistas definam os seus próprios manuais ajustados ao nível desejado de detalhes. Sugerem que os manuais fossem criados para catalogação em ambiente eletrônico, combinando o AACR com o MARC. 

Observaram que não lidamos bem, com a questão dos itens não publicados e que as bibliotecas precisam decidir quais recursos eletrônicos valem a pena catalogar. Caracterizaram os metadados como uma catalogação feita de maneira ruim pelas pessoas. 

Recomendaram o acréscimo de novos capítulos para as novas mídias, conforme a necessidade. E a Parte 2 do AACR2, deveria ser revista com o conceito do registro de autoridade em mente e o vínculo nos catálogos. Também recomendaram a incorporação de ideias aplicadas em outros países que usam o AACR2 como base da sua catalogação.

Em seguida, ocorreu o painel dos participantes de países não membros do comitê AACR. Na oportunidade, Helena Coetzee (Deptartment of Information Science at the University of Pretoria in South Africa) abordou o uso da AACR2, na África do Sul, em especial no catálogo coletivo e no SABINET, a rede nacional de bibliotecas. Enfatizou a falta de condições ao desempenho técnico e a aplicação pouco coerente das regras. No país, existiam 11 línguas oficiais a dificultar os esforços de normalização, além do Inglês não ser o idioma utilizado para catalogar e usar o AACR2 e a LC Subject Headings. Portanto, havia o desejo por regras claramente definidas e simplificadas; com opções e exceções reduzidas ao mínimo; qualificadores acrescentados para todos os países, não apenas os enumerados no Capítulo 23 [Nomes Geográficos]; e um endereço na Web para receber sugestões. 

Stuart Ede (British Library) abordou a perspectiva de o Reino Unido adotar um banco de dados nacional para melhor compartilhamento de recursos bibliográficos e maior benefícios e facilidade no intercâmbio dos dados. Como exemplo, citou o projeto UK-US-Canada, um esforço na harmonização do MARC, e do qual o Reino Unido optou em continuar com o seu UKMARC para fornecer, automaticamente, conteúdo sob a pontuação da ISBD. Considerando a sua experiência de gestor, recomendou que qualquer mudança nas regras mostrasse benefícios óbvios e quantificáveis, e que simplificassem o processo da catalogação sem cortar o conteúdo. Também, que o catalogador tivesse a opção de decidir no processo catalográfico, além de se considerar o custo da mudança. Sugeriu evitar a mudança para o AACR3, em vez disso, reconstruir o AACR2 e o esforço de manter compatibilidade com versões anteriores. Foi favorável ao modelo das entidades orientadas a objetos, para reforçar o entendimento de seus princípios e ajudar a estendê-los às novas áreas catalográficas.

Monika Miinnich (chefe do departamento de catalogação descritiva da Universitätsbibliothek Heidelberg) falou sobre as regras da catalogação alemã e russa, no que se refere as instruções da Prussianas que eram seguidas no passado e que optaram pelo uso da ISBD. Destacou o reconhecimento do AACR como um código internacional para países de língua inglesa e os seus benefícios econômicos na redução dos custos catalográficos, com a cooperação bibliográfica, e a importância de aumentar a padronização. Suas recomendações visaram: rever as ISBDs para fornecer uma descrição consensual; padronizar as categorias dos pontos de acesso, para usar os mesmos termos para títulos de transcrição; usar arquivos comuns de autoridade para as entidades claramente definidas. Também se referiu ao artigo de Irina Klim sobre a situação da Rússia, o relatório final do Projeto REUSE, e sua postagem para o listserv AACRCONF como contribuições ao tema. Informou que as bibliotecas alemãs mudaram para o uso de banco de dados relacional no intento de fornecer todos os links usados no Dynix. Sugeriu entre outros:

  • o redesenho das regras direcionadas para a era do computador, acompanhando o FRBR na catalogação orientada a Obra;
  • modernização da ISBD;
  • beneficiar e melhorar o uso de links da Web;
  • promover acordo internacional na definição da forma de alguns pontos de acesso, tais como títulos coletivos;
  • acordo no cabeçalho para obras sobre lei, religiosas, músicas, e para documentos literários; e
  • a adoção do tratamento de datas e de idiomas em forma codificada, para facilitar o uso internacional.

Advertiu sobre a urgência das medidas, antes que os gestores de bibliotecas passem, eles mesmos, a criar as normas.

Ingrid Parent (National Library of Canada), tratou das oportunidades surgidas com a Internet e a importância dos padrões de compartilhamento. Ao contrário de Michael Gorman, ela foi mais pragmática ao indicar que no Canadá era seguindo o tratamento das reproduções de microformas da LC, ao invés de dedicar esforços para seguir estritamente a regra. Questionou o sentido de liderança, se ninguém está seguindo? Recomendou mudança na regra 0.24 da AACR, como a remoção da palavra "físico" para lidar com recursos intangíveis. Observou que as LC Rule Interpretations servem a um propósito útil de esclarecer as regras que são ambíguas e tornar explícito o que pode estar implícito no código [A atualização das regras foram descontinuadas, mas o conjunto de atualizações realizadas estão disponíveis em: https://goo.gl/46Q293]. 

Ainda, com relação a palestra de Gorman, ela concordou que a mudança deveria ser evolucionária, não revolucionária. O processo de revisão das regras deve ser realizado para garantir que as alterações apropriadas sejam aprovadas em tempo hábil e assim evitar diretrizes provisórias onerosas. Deveria avaliar a mudança em termos de impacto na carga de trabalho dos catalogadores. Por exemplo, é realmente necessário um registro de autoridade da Obra para todos os casos? Existe alguma economia de custos? Ela ressaltou que o custo da catalogação pode ser reduzido por meio do compartilhamento e de um melhor suporte técnico. Alertou que não devemos vincular as regras a um formato ou a uma exibição bibliográfica, mas precisamos de uma apresentação consistente dos dados. É preciso, ainda, trabalhar em parceria para o benefício de nossos usuários finais.

Verna Urbanski (Carpenter Library na University of North Florida), apresentou considerações sobre a catalogação na atualidade e perspectivas futuras. Comentou que, nos Estados Unidos, a LC tem definidos prioridades, mas as suas decisões estão muito além do que outros possam usar. Recomendou que nós tratamos os LCRIs como a LC faz, e não como fazemos. Expressou sua frustração com a nossa incapacidade de implementar mudanças, e deu exemplo do Multiple Versions Forum, em 1989 [organizado pela LC, teve finalidade de identificar procedimentos para a comunicação dos dados bibliográficos sob diferentes versões, isto é, itens com conteúdo artístico e intelectual equivalentes, mas de diferentes formatos físicos], no qual destacaram a identificação das relações bibliográficas identificadas, mas e daí? Não houve direcionamento claro de modelo ou procedimento. Sugeriu dar-se permissão aos catalogadores de materiais especiais, desenvolverem manuais para os seus grupos e que o JSC coordenasse esses manuais, deixando o AACR2 como padrão ou guia. 

Andrew Wells (National Library of Australia) comentou sobre a rede bibliográfica australiana, iniciada em 1981/82, baseada no AACR2 e com um grande espírito de cooperação, no qual mais de 300 bibliotecas ajudaram a criar registros para uso dos demais. A comunidade sentiu que a regra 1.0D1 – primeiro nível de descrição era adequado ao uso, como o padrão, na Austrália. O Australian Committee on Cataloguing, no processo, cumpriu funções de um JSC. Com relação aos formatos de comunicação, a decisão foi pragmática, abandonou-se o formato AUSMARC, em favor do USMARC. O arquivo de autoridade assumiu o arquivo de autoridade da LC, suplementado com títulos australianos. Wells sugeriu que a Parte 2 do AACR, contém muitas regras especiais que poderiam ser reduzidas para melhorar a produtividade. Visualizou no Dublin Core uma reinvenção do código de catalogação, e indagou se o DC seria o modelo de caso? Ressaltou que as ferramentas conceituais são muito valiosas e observou que Multiple Versions Forum, reconheceu problemas reais e que era preciso dar continuidade aos trabalhos apontados.

Na seção de perguntas e respostas, Michael Gorman concordou com a retirada do termo “físico” da regra 0.24, mas salientou que no momento da elaboração das regras era apropriado tê-lo. Também observou que o processo de revisão das regras deve, intencionalmente, ser demorado para assegurar que as mudanças serão boas. O ideal do processo deveria ser deliberativo e considerar as consequências da mudança. Na sua perspectiva, de ter sido editor do AACR2, afirmou que deveria existir um editor responsável pelas regras, em vez de um comitê.

O orador seguinte foi Jean Hirons (Library of Congress), que analisou as recomendações que ela e Crystal Graham, 1952-2000 (University of California, San Diego) apresentaram sobre uma abordagem tridimensional para o código de catalogação no trabalho “Issues Related to Seriality”, ao trazer o fator de tempo ou da natureza dinâmica das publicações 'em curso' (que utilizam o termo ‘publicações’ para ambos os materiais: publicados e não publicados). Há uma necessidade de redefinir o olhar do “seriado” sob o potencial de um item em mudança. Elas examinaram vários modelos e recomendaram seguir o seu 'Modelo B' para definir seriados como uma continuidade indefinida. Os princípios recomendados para publicações em curso foram:

  • considerar toda a publicação, não um único fascículo (por exemplo, corrigir erros nos títulos);
  • se concentrar na frequência em vez das variáveis; e
  • enfatizar a identificação não a transcrição.

Outras recomendações foram relativas a existência de um capítulo conceitual na AACR; de se criar um capítulo único de atualização para obras adicionadas; uma regra para o Capítulo 21 destinado a acomodar materiais acessados remotamente; e reexame da definição de mudança de título. Jean mencionou que também temos de levar em conta o impacto no ISSN, MARC, ISBD(S), e publicações legais (folhas soltas em especial).

Na seção de perguntas e respostas, o termo 'publicação' foi desafiado, comentando-se que a publicação implica “fisicalidade” [qualidade do que é físico, corporalidade] e que precisaríamos de um novo termo.

Lynne Lighthall apresentou o texto de Ron Hagler sobre "Access Points for Works", onde obras, expressões e manifestações podem ser facilmente identificados nos pontos de acesso para Obras – e no qual deve haver registros de acesso à citação. Ele recomendou:

  • ter regras para a apresentação;
  • mudar a terminologia da AACR para distinguir uma obra;
  • usar o ponto de acesso principal de uma obra no lugar de “entrada principal”;
  • identificar a obra nos registros de autoridade (ter um arquivo de autoridade de obra em separado); e
  • acesso requerido para a obra como um todo.

Stuart Ede observou que seria desejável haver mais conteúdos incluindo os índices, para os principais seriados, mas que também seria dispendioso fornecer isso, bem como não deveria ser um requisito para todas as bibliotecas, mas que pelo menos as agências bibliográficas nacionais devessem fornecer esse acesso a todos as obras.

O segundo dia findou, com uma recepção no Royal Canadian Yacht Club, no centro de Toronto, oportunidade em que os participantes brindaram com vinho e boa música executada ao piano por Andrew Wells e acompanhado por um coral de catalogadores cantores, estimulados pelo deus “Baco”. Afinal há momentos que a catalogação, ainda que descritiva, deixa de ser cognitiva para se tornar, saborosamente, palatável.


   811 Leituras


Saiba Mais





Próximo Ítem

author image
TORONTO: A CIDADE DO NOVO ILUMINISMO NA CATALOGAÇÃO BIBLIOGRÁFICA – PARTE III
Janeiro/2019

Ítem Anterior

author image
TORONTO: A CIDADE DO NOVO ILUMINISMO NA CATALOGAÇÃO BIBLIOGRÁFICA – PARTE I
Novembro/2018



author image
FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.