ALÉM DAS BIBLIOTECAS


242 MORTOS E 636 FERIDOS

Totais paralisantes – 242 mortos e 636 feridos. São números que refletem a grande tragédia que assolou o município de Santa Maria, no centro do Estado do Rio Grande do Sul e o Brasil como um todo, no primeiro mês do ano de 2013, exatamente 27 de janeiro, quando um incêndio desproporcional ceifou vidas na Boate Kiss, em sua maioria, jovens universitários com um futuro à sua frente. Isto porque, a celebração “Agromerados” marcaria a formatura de cursos, como Agronomia, Veterinária e outros da Universidade Federal de Santa Maria.

Quem acompanha meus escritos, sabe que sou extremamente cuidadosa nos dados que propago. Neste caso, logicamente, não tive acesso ao processo nem aos autos. E mais, não sou jurista. Escrevo, aqui, como cidadã mais do que jornalista. Sofro pelas famílias enlutadas. Revolto-me, mais uma vez, com a lentidão da Justiça, que, apesar do caso de repercussão internacional e com cifras para lá de dolorosas, vem à tona para julgamento dos réus após longos oito anos e 11 meses de agonia dos sobreviventes e das famílias dos que partiram.

O julgamento, iniciado no dia 1 de dezembro, com sorteio dos jurados (seis homens e uma mulher), conduziu grande parte de familiares e amigos das vítimas, fatais ou não, para Porto Alegre, onde ocorrem as sessões, numa tentativa de mitigar os ânimos na cidade de Santa Maria, quinta cidade mais populosa do RS e a maior da região, com população estimada em 285 159 habitantes e significativa influência em todo o Estado. Não há data para terminar, talvez 15 dias, uma vez que o desfecho depende da condução do Tribunal do Júri ao longo das próximas semanas, tanto pela complexidade do ocorrido quanto pelos ritos e protocolos que não podem ser relegados, incluindo os interrogatórios de elevado número de envolvidos, com a ressalva de que, como previsto no universo jurídico, testemunhas e jurados ficam incomunicáveis, sem acesso à mídia, às redes sociais, ao celular e sem contato entre si, As sessões iniciam todos os dias às 9h e prosseguem até as 23h, inclusive aos fins de semana.

Estão no banco dos réus os empresários-sócios da Kiss, Elissandro Spohr ou Kiko e Mauro Hoffmann; o produtor musical Luciano Bonilha Leão; e o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, de sertanejo universitário; e o músico Marcelo de Jesus dos Santos; sob acusação pelo Ministério Público (MP) por crime de homicídio simples de 242 pessoas e tentativa de homicídio de outros 636 jovens. Elissandro argumenta que não teve qualquer ação direta com o ocorrido. Na Kiss, no momento do sinistro, chegou a ser hospitalizado, mas sobreviveu. Mauro Hoffmann alega que não possuía envolvimento na operacionalização da casa noturna, atuando apenas como investidor. A Luciano se atribui a compra e a ação de ativar o fogo de artifício, ponto de início da ocorrência funesta. Marcelo direcionou o fogo de artifício aceso até o teto. As chamas encostaram na espuma acústica e o incêndio propagou com velocidade incrível.

Porém, mais do que tudo, sem quaisquer resquícios de acusação ou de defesa, crendo nos dados da mídia de que a Boate estava com 800 a mil pessoas, embora sua capacidade fosse de 690, incomoda-me o fato de nenhum dolo ser atribuído às instituições. De início, refiro-me à Prefeitura Municipal, responsável mor pelo funcionamento de casas públicas. Acerca da responsabilidade civil do Prefeito Cezar Schirmer, apontada em inquérito policial, o MP inferiu que a edição e a coexistência de diplomas legais vigentes não configuram improbidade administrativa a ser a ele atribuída, haja vista que o Decreto Executivo Municipal n. 32 / 2006, que regra a expedição do alvará de localização, inclusive o alusivo à Boate Kiss, é de gestão administrativa anterior ao primeiro mandato de Schirmer no Poder Executivo, ano 2009. E mais,  o Código de Obras do Município de Santa Maria, embora seja Lei Complementar municipal editada em 2009, no trecho alusivo à “Circulação e Sistemas de Segurança, Prevenção e Combate a Incêndio”, é uma transcrição quase literal do previsto no Código de Obras anterior: Lei Complementar Municipal n. 32 / 2005, o que exime Schirmer de negligência. Consequentemente, o MP optou pelo arquivamento do inquérito referente à atuação dos agentes e servidores municipais desde 8 de março de 2016.

Eis o momento de analisar a atuação do Corpo de Bombeiros Militar. No caso específico da Kiss, com base em inquérito policial militar da Justiça Militar Estadual, a Ação Penal n. 1429-79.2013.9.21.0003, instaurada em 19 de agosto de 2013, denuncia oito bombeiros, não pelas mortes, mas, por crimes perpetrados na concessão de alvarás em Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio, o nomeado PPCI, o qual prescreve os elementos formais que todo proprietário / responsável por áreas de risco de incêndio e edificações deve encaminhar ao Corpo de Bombeiros. Além do mais, ao lado das provas evidentes de fraudes no processo administrativo na tramitação dos PPCIs, constata-se prevaricação do comandante local / regional por justificar a conduta de um policial militar bombeiro proprietário de empresa privada com atividade ligada à prevenção de incêndios.

Por fim, reitero, com veemência, que minhas colocações não tendem a defender os que estão no banco dos réus ou acusar quem quer que seja, até porque reforço meu desconhecimento jurídico, mas minha pergunta não pode calar: onde estão as outras pessoas também envolvidas neste mar de dor, tensão e morte? Perderam-se nas largas trilhas da impunidade?  


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”