ALÉM DAS BIBLIOTECAS


UM NOVO MUNDO

“O homem é um animal que vai mudando o mundo e depois tem de ir se reciclando para se adaptar ao mundo que fabricou.”

Flávio Gikovate 

Neste momento histórico, ainda nos sentimos atônitos diante da pandemia devastadora do coronavírus que deixou a salvo tão somente um único continente, a Antártida, onde habitam poucos seres humanos. Dados da BBC Brasil, subsidiária da British Broadcasting Corporation, na América Latina, dão conta de que cerca de 40 outros locais, em todo o mundo, pelo menos oficialmente, não registraram nenhuma infecção. Eles têm em comum o fato de não manterem significativo fluxo de pessoas e/ou serem regimes repressivos. No primeiro caso, está Tuvalu, Estado da Polinésia formado por nove ilhas remotas e com populações pequenas. Algumas delas: Samoa (Oceania); Micronésia (Pacífico Ocidental); Santa Helena (Atlântico Sul); e ilhas Marshall (Oceania). Dentre as ditaduras, citamos a Coréia do Norte. Mesmo vizinha de nações bastante afetadas, a exemplo da China, onde a pandemia começou, seu Governo não declarou uma única incidência da Covid-19 até os dias de hoje. O Turcomenistão (Ásia Central), um dos regimes mais duros do mundo, chegou a proibir a palavra coronavírus. 

Políticos em todas as instâncias, o pessoal da área da saúde, psicólogos, sociólogos, empresários, economistas, enfim, quase todo o mundo repete, sem cessar, como um bordão ou refrão que “nada será como antes.” A este respeito, o Papa Francisco lançou, ainda em maio de 2020, um livro editado pela Libreria Editrice Vaticana, com 68 páginas, intitulado “Vida após a pandemia”, disponibilizado no espaço virtual em diferentes línguas. O Pontífice, num dos trechos, lembra o quanto a perda do contato humano durante a pandemia nos empobreceu, quando fomos separados dos amigos, em especial, da família, “incluindo a crueldade total de não podermos acompanhar os moribundos em seus últimos momentos de vida e depois chorá-los [...] Não consideremos óbvio o fato de podermos retomar a convivência no futuro, mas redescubramo-la e encontremos formas de fortalecer [...] esta possibilidade”, diz Ele (p. 14).

Esta parte final da transcrição do Papa Francisco, quando diz ser preciso redescobrir as formas de convivência com o outro, é fundamental. Isto porque, a quarentena (restrição para quem pode ter sido exposto ao vírus, mesmo sem sintomas); o isolamento social (separação de quem está doente dos demais); o distanciamento social (medidas para reduzir a interação entre as pessoas); e o lockdown (bloqueio total das coletividades, com permissão única para sair para atividades essenciais) deixaram expostas nossas vísceras: debilidades e dificuldades no convívio familiar e/ou na convivência social mais duradoura. 

Verdade que as inovações tecnológicas ajudaram em muitos e variados momentos. Eis a variedade das lives, incluindo as produzidas nas favelas do Rio, que intercalam música com orientação em linguagem acessível à comunidade, embora distante do linguajar chulo adotado pelo presidente e seus ministros em reuniões governamentais. E o que dizer da avalanche de correntes de oração, novenas, memes, fake news, mil brincadeiras (grosseiras ou ingênuas) e vídeos? Tudo para abrandar o temor da Covid-19. 

Mesmo assim, é inquestionável que as relações familiares e afetivas estão sofrendo e sofrerão profundas transformações. Novos amores surgem. O corona parece estimular o sexo virtual e a troca de nudes, indiferente ao risco de vazamento de imagens. Reconciliações. Reencontros. Concessões mútuas nos relacionamentos. Maior tempo com os filhos. Maior compreensão com o mau humor dos adolescentes. Maior atenção aos vizinhos. Pausa para a criatividade. Busca de mudanças e oportunidades. 

Em contraposição, casamentos chegam ao ponto final. Registro de festas furtivas regadas a muita bebida alcoólica e sexo. A violência doméstica cresceu. Não obstante os esforços dos governantes para reduzi-la durante a pandemia, somente no Estado de São Paulo, segundo relatório do mês de maio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os atendimentos da Polícia Militar a mulheres majoraram em torno de 44,9%. Confrontando março de 2019 com março de 2020, o total de socorros prestados passou de 6.775 para 9.817; a soma de feminicídios subiu 46,2%: de 13 para 19 casos.

E mais, dizem ser recomendável ficar sozinho de vez em quando para autoconhecimento e reflexão. somente na solidão (você versus vocês), entendemos que a harmonia e a paz de espírito tão ansiadas estão dentro de cada um de nós e não a partir do outro, quem quer que seja. Mesmo assim, muitos não suportam o enfrentamento consigo. Casos de tristeza, depressão, surtos de ansiedade e/ou de pânico e até corpos nus foram vistos em ruas de algumas capitais, como Recife, Rio e São Paulo. De qualquer forma, resta-nos a esperança de nos tornar um pouco melhores, mais complacentes, parceiros, éticos, verdadeiros, misericordiosos e sensíveis!

Fontes:

AGÊNCIA BRASIL. SP [São Paulo]: violência contra mulher aumenta 44,9% durante pandemia. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/sp-violencia-contra-mulher-aumenta-449-durante-pandemia. Acesso em: 27 maio 2020.

BBC NEWS BRASIL. Que países e territórios ainda não têm casos confirmados de coronavírus? 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52136748. Acesso em: 27 maio 2020.

PAPA FRANCISCO. Vida após a pandemia. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020. 68 p.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”