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SIENA: PALIO É RELIGIÃO!

Para quem esteve na Itália alguma vez na vida ou quem escutou falar da cidade medieval de Siena, na região da Itália central, Toscana, província do mesmo nome, capital Florença (Firenze, em italiano), de imediato, ouviu a palavra palio. Siena, com tão somente 52.775 habitantes que se distribuem em 118 km², o que corresponde à densidade populacional de 447 habitantes / km², é uma cidade medieval, cuja beleza é estonteante. Está literalmente situada e sitiada entre muralhas, e não obstante a beleza de sua arquitetura, chama atenção por seu palio, termo oriundo do latim pallium (manto, em italiano) e sem tradução para o português.

Trata-se, nada mais nada menos, do que uma corrida de cavalos na Piazza del Campo, bem no coração da cidade. Figura como sua maior atração e ocorre tão somente na estação de verão (por sinal, escaldante), exatamente, nos dias 2 de julho e 16 de agosto. O palio está tão inserido à vida da população que, muitas vezes, quando perguntamos aos mais jovens o porquê da escolha das datas, as respostas sempre conduzem ao susto de não o conhecerem. 

Dois de julho é o 183º dia do ano no calendário gregoriano (184º nos anos bissextos), o que significa dizer que faltam mais 182 dias para o ano acabar. Isto é, por haver 182 dias antes e 182 depois, este é o dia do meio do ano, o que é fácil de entender 182+1+182 = 365. Numericamente e/ou astrologicamente, é uma oposição da passagem do Sol entre os dias 31 da noite de Ano Novo e o primeiro dia do ano que “mostra a cara”, quase sempre, trazendo esperanças a quem mantém vivos seus sonhos e a esperança. Rememoramos que o calendário gregoriano, de origem europeia, é adotado, oficialmente, por grande parte das nações, desde sua promulgação pelo Papa Gregório XIII, em 1582, em substituição ao calendário juliano, implantado em 46 a.C. pelo ditador romano Caio Júlio César, considerado, ainda hoje, como um dos grandes militares de todos os tempos. 

Em se tratando do dia 16 de agosto, é ele o 228º dia do ano no citado calendário (229º nos bissextos), restando 137 para um novo recomeço. Para justificar o fato de que o palio se dá desde o século XVII (1601 a 1700), os historiadores são unânimes em afirmar de que se trata de um século pleno de grandes acontecimentos. No continente europeu, estende-se até a Idade Moderna. É o momento do movimento cultural Barroco, do denominado Grand Siècle francês (domínio de Luís XIV) e da chamada revolução científica. Registra-se, nesse período, ainda, a Guerra dos Trinta Anos, a Grande Guerra Turca, o fim da Revolução Holandesa, a desintegração da chamada República das Duas Nações, quais sejam, Polônia e Lituânia, e a Guerra Civil Inglesa. Há pesquisadores que ampliam a extensão da crise geral para abranger o mundo em sua quase totalidade. Por exemplo, com o colapso demográfico da Dinastia Ming, é a vez de a China perder quase 30% de sua população. E há muito mais. É quando a colonização europeia nas Américas inclui a exploração das riquezas do Peru e do México, trazendo abastança para a Europa e pobreza para outros povos.

Enfim, em meio a uma série de outras grandes mudanças mundo afora, aqui, no território sienês ou senês ou senese (gentílicos controversos), como símbolo dos grandes combates, se instituiu o palio de Siena. Reúne gente de toda parte da Itália e do continente europeu, como também de outros recantos do mundo, como dos Estados Unidos, do Japão e do Brasil, além de habitantes das comunas da própria Siena, como Asciano; Castelnuovo Berardenga; Monteriggioni; Monteroni d'Arbia e Sovicille. Sua origem, ao que tudo indica, remete às consociações populares, que tomam forma, aproximadamente, em 1450, coexistindo com as milícias da cidade e que segue regulamentos datados do longínquo 1644, ano do primeiro palio

Há quem discorde. Algumas fontes documentais afirmam, com veemência, que a organização do palio, nos moldes de hoje, ocorreu um pouco adiante, em 1656, ano em que o dia 2 de julho homenageia a Madonna de Provenzano, a “Advocata Nostra”, Virgem, Padroeira e Rainha de Siena. Se antes a disputa se realizava ocasionalmente, desde então, ganhou caráter permanente sem nenhuma interrupção, o que contribui para que o primeiro palio oficial seja considerado como 2 de julho de 1656, com a conquista do primeiro lugar pela contrada de Torre.

Na realidade, fiel às tradições de luta entre os povos no longínquo século XVII, a cidade medieval de patrimônio artístico e harmonia estilística de seu centro histórico inarrável, o qual é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, promove uma “batalha” entre as contradas, para nós, correspondente ao que chamamos de bairro. As contradas caracterizam-se por nomes, emblemas e, em especial, por rígida delimitação de território, reforçado pela promulgação de documento oficial, ano 1729, emitido pela princesa Iolant Beatrice da Baviera, Princesa da Toscana. Esposa de Ferdinando de Medici, príncipe herdeiro do trono da Toscana, ao se tornar viúva, ano 1713, lhe coube a função de governar Siena, entre 1717 e 1731, ano de sua morte. Sob seu comando, nova divisão das fronteiras das contradas consolidou-se, determinando a subdivisão do centro histórico da cidade toscana, por incrível que pareça, ainda vigente.

Hoje, cada uma das 17 subdivisões históricas da cidade espalham-se pelas belíssimas muralhas medievais – Aquila, Bruco, Chiocciola, Civetta, Drago, Giraffa, Istrice, Leocorno, Lupa, Nicchio, Oca, Onda, Pantera, Selva, Tartuca, Torre e Valdimontone. Cada contrada é como um pequeno estado, ainda que de forma extraoficial, administrado por um prefeito e assessores. Todas elas mantêm, com rigoroso cuidado, seu patrimônio: as vestimentas usadas, as bandeiras e tudo o que se relaciona à vida da comunidade. A cada ano, as contradas encontram-se bem no centro de Siena, ou, mais precisamente, na Praça do Campo (Piazza del Campo). Seus representantes participam de majestoso cortejo, com trajes tradicionais (monturas) e bandeiras, em cores e hinos próprios. A disputa já começa desde aí, tal como se dá com nossas escolas de samba... No caso, por toda parte ou no centro da Praça, os apoiantes ou contradaiolos, ostentando lenços de seda decorados nos pescoços nas cores das contradas e de suas bandeiras, organizam-se para ganhar a adesão da multidão. 

Em vez de belos e belas sambistas, a vez é de garbosos animais. Isto porque, o ápice da festividade é exatamente a corrida, em que apenas 10 cavalos, cada um de uma contrada de três regiões da cidade, são sorteados. Ganha o cavalo que chegar primeiro, após três voltas ao redor da praça, momento em que a multidão vai à loucura com gritos, palmas, vaias, fogos de artifício, buzinas, apitos, etc. Tudo vale para conquistar o estandarte (o pallium ou o “Drappellone”), sempre em pano precioso e exclusivo para cada ano, sob o encargo de um artista local ou, eventualmente, de fora. O palio é a única corrida do mundo onde tudo é permitido: golpes baixos, obstáculos aos adversários, mudanças de lugar... Quer dizer, toda a ação dos jóqueis é minuciosamente planejada em busca da vitória! O palio, surpreendentemente, é um acontecimento que divide a pequena cidade! E é óbvio que os turistas, desavisados ou “inocentes”, em suas variadas procedências e seus idiomas entram na onda de animação total, sem no entanto, paradoxalmente, esquecer, o celular! 

Agora, 2019, no primeiro palio, 2 de julho, o vencedor foi a contrada de Giraffa – 35ª vitória (a última, 2017), graças à atuação do cavalo Tale e Quale e de seu jóquei Giovanni Atzeni (“O Tittia”), que conquistou o prêmio por seis vez, embora, desta vez, por um triz. Dá pena porque é impossível obter fotos que enfatizem a beleza do espetáculo. A balbúrdia é tamanha que o ângulo fotográfico pede misericórdia. Os mais abastados pagam valores imensuráveis para assistirem ao palio das sacadas dos edifícios que contornam a Praça e, quiçá, obterem fantásticos registros fotográficos. Tudo é festa! A intenção é manter a tradição, antes que se esvaia, o que justifica a participação de famílias inteiras, incluindo bebês e crianças de todas as idades! É comum, sobretudo, entre os mais velhos, repetir e insistir no refrão: o palio de Siena é muito mais do que uma simples corrida de cavalos. Para um sienês, o palio é uma religião! É uma questão de vida ou de morte!

 

 

 

 

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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”