MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO


  • Reflexões sobre a Mediação da Informação, englobando aspectos teóricos e práticos.

MÁRIO DE ANDRADE E MEU ESPÍRITO PAULISTANO

A abertura da última edição do CBBD – Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, foi diferente das tradicionais. Estas, quase sempre, seguem um mesmo ritual: uma apresentação musical ou dança folclórica – ou algo parecido – antes ou depois de uma mesa composta de pessoas entendidas pela organização do evento como autoridades, representando entidades relacionadas ao temário central ou pessoas de interesse dos promotores.

 

Desta vez, no entanto, a abertura seguiu uma estrutura calcada em uma apresentação teatral. A partir de um roteiro, músicas se mesclaram com poesias entremeadas com as falas dos componentes da mesa. Mesa essa que não existia, as pessoas convidadas falaram em pé, em uma marcação típica de peças teatrais.

 

Apesar de ter gostado, não é da abertura em si que gostaria de direcionar meu texto, mas da feliz escolha do personagem que, via um ótimo ator (Pascoal da Conceição), protagonizou o “espetáculo”: Mário de Andrade.

 

Quando vi Mário de Andrade personificado no palco confesso que me emocionei. Sou paulistano da gema – e da clara também, pois paulistano que se preza é do centro e da periferia. Clara e gema se imbricam; o ovo só existe com gema e clara. São Paulo é um todo.

 

Sou paulistano nascido no Brás (na rua Almirante Barroso). Com um ano meus pais foram morar na Rua Santa Rita (no Pari, bairro ao lado do Brás, tão ao lado que muitas vezes não sabemos se o lugar que estamos é um ou outro). Do Pari fui morar no Bixiga (Bela Vista). No meu currículo paulistano faltou a Barra Funda, como postulava um dos nossos maiores escritores, Antônio de Alcântara Machado (que possui um livro, entre outros, chamado “Brás, Bixiga e Barra Funda).

 

O Bixiga foi cantado por Adoniran Barbosa, que nunca morou no Bixiga.

 

Embora nunca tenha morado na Barra Funda, como quase todo paulistano tive várias relações com o bairro, entre elas, por exemplo, o uso da estação do Metrô, do terminal rodoviário, do Memorial da América Latina, do Ponto Chic. Mas, meu principal envolvimento com o bairro foi ter ministrado um curso em um Centro Cultural. Quando recebi o convite perguntei onde seria o curso e quando soube o lugar, aceitei sem pensar no trabalho que teria, no tempo que gastaria elaborando o curso, no pequeno valor que receberia: o tal Centro Cultural ficava na Rua Lopes Chaves, casa onde viveu Mário de Andrade.

 

Hoje a casa foi reformada. Não a vi depois da reforma. O que quero partilhar com vocês foi a emoção de entrar na casa de Mário de Andrade, entrar na vida de Mário de Andrade.

 

Chegava um pouco antes do curso e subia as escadas, ansioso por ver, e sentir, a parte superior da casa. Os degraus da escada de madeira rangiam e eu me perguntava se Mário prestava atenção naquele barulho, ou se em sua época a escada ainda não fazia ruídos. Na parte superior o quarto em que Mário dormia e trabalhava.

 

Um dia me perguntei se Mário de Andrade já morava na Lopes Chaves na época da Semana de Arte Moderna de 22. Essa era uma questão menor, o que valia era que me senti participante daquele movimento, daquela rebeldia; me senti antropofágico; me vi escrevendo para a Klaxon, andando pelas ruas do velho centro, participando de reuniões nas casas de amigos, ou na boemia; me senti tão subversivo como o rio Tietê, que ele cantou em poesia e que, ao contrário dos rios, segue do mar para o interior, meio bandeirante, mas um bandeirante rebelde, contrário aos colonizadores. No espelho, me vi com um chapéu para me resguardar da garoa. Ao meu lado passou um macunaímico e imaginário garoto que correndo alcança um bonde que passava na São João.

 

No quarto de Mário fiquei pensando como foi ter tido a oportunidade de dirigir o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo; mais do que dirigir, construir as bases que geraram as políticas culturais formais no país. Lembrar de Sérgio Milliet e convidar Rubens Borba de Moraes para se responsabilizar pelas bibliotecas públicas municipais que, de fato, basicamente não existiam. Como foi estruturar as ações culturais da cidade? Mário ficou exultante e todos nós, paulistanos ou brasileiros, também exultamos com ele. As propostas eram geniais. Que tal trabalhar com discos, com o patrimônio público, com artes plásticas, com literatura?

 

Esse talvez tenha sido o grande momento da vida de Mário de Andrade.

 

Fiquei decepcionado, junto com Mário, quando foi ele exonerado do cargo de Diretor. Talvez tenha sido dessa época a frase: “Quero que ele vá para a reputa e triputa que o pariu”.

 

Segui com Mário para o Rio de Janeiro. Não quis ele o cargo oferecido por Capanema, o Ministro da Educação do governo Getúlio; preferiu algo menor. No entanto, suas ideias foram básicas para toda a estrutura da cultura no Brasil naquele momento e marcam muito do que existe até hoje (ao menos o que há de melhor).

 

Mesmo com muitos amigos, Mário não estava à vontade no Rio. Imaginei que estivesse ao seu lado quando dizia que não sentia solidão, pois vivia com muitas pessoas que o queriam bem, mas em seu peito parecia existir um deserto.

 

Todos nós sentimos pela destruição de um sonho, não só de Mário de Andrade. Destruído pela visão de um prefeito que optou por marcar sua administração, engenheiro que era, por obras de concreto. Para isso, precisando de dinheiro, o retirou da cultura, acabou com a grande obra que Mário comandava.

 

Triste saber que hoje, aquele prefeito, Prestes Maia, insensível para as coisas da cultura, dá nome, incoerentemente, à uma das bibliotecas públicas municipais de São Paulo.

 

Quando terminava minha aula, boa parte das vezes, deixava os alunos saírem e ficava um pouco mais naquele espaço. Ao sair, me imaginava carregando alguns segredos; algumas histórias; alguns textos não escritos, mas elaborados ou sendo elaborados por Mário. Ficava imaginando por que teria ele, por tanto tempo, considerado Oswald de Andrade um desafeto, apesar das tentativas do outro em se aproximar, em reatar a velha amizade.

 

Saindo da casa da Lopes Chaves, Mário seguia comigo pela Paulicéia Desvairada. Aliás, Mário segue com quiser conhecer seus escritos, seu dicionário de música, seu Macunaíma, seu Amar, Verbo Intransitivo, seu Lira Paulistana.

 

Não vou morrer como Mário (nem queria), pois já passei da idade em que ele morreu. Mas, quando morrer, talvez queira que meu corpo seja enterrado, aos pedaços, em cantos de São Paulo. Se não for possível, que minhas cinzas se misturem com a terra, o asfalto, o ar e o céu do Brás, Bixiga, Barra Funda e, claro, do Pari.

 

Quando saia da Lopes Chaves, recordava da poesia que Mário fez para São Paulo. De fato, para mim, Mário de Andrade faz uma grande declaração à cidade que ele amou. Ele quer permanecer nela mesmo depois de sua morte. E Mário permanece nela e em nós.

 

Quando eu morrer quero ficar 

Mário de Andrade

 

Quando eu morrer quero ficar, 
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade, 
Saudade. 

Meus pés enterrem na rua Aurora, 
No Paissandu deixem meu sexo, 
Na Lopes Chaves a cabeça 
Esqueçam. 

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano: 
Um coração vivo e um defunto 
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido 
Direito, o esquerdo nos Telégrafos, 
Quero saber da vida alheia, 
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade. 
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

 

(Publicado na Infohome TV - http://youtu.be/BuNEXeBg4jY)


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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.