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EM CARTAZ: AACR2, ISBD & RDA

Este texto é um breve comentário sobre uma das tipologias documentais contidas nos códigos de catalogação bibliográfica, e que, na atualidade, passa por transformação. O objetivo é destacar a complexidade do trabalho do catalogador afetado pelas transformações dos suportes e formas documentais. O comentário baseia-se em artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo”, do dia 12 de junho de 2014, no caderno “Ilustrada”, sob o título “Fora de Cartaz”, que aborda a situação do “pôster impresso” utilizado em divulgações de filmes, e que perde espaço físico nas salas de cinemas, mas que ganha sobrevida, transformado em arquivo digital de divulgação.

 

Esse recurso impresso nasce com a indústria cinematográfica, e serviu para a popularização da sétima arte, que ao longo do tempo também ganhou status de arte, ou seja, artes gráficas. Na atualidade, segundo a matéria, “agoniza” substituído por versões de imagens digitais projetadas. O que não é totalmente verdade.

 

O considerado “definhamento” deste tipo de pôster tem início a partir do desaparecimento das locadoras de vídeos, populares décadas atrás, mas que acabaram afetadas pelos serviços de vídeo streaming, alguns dos modelos de negócio proporcionado pela Internet. Assim, as modernas salas de cinema optam, agora, por pequenos monitores para a exibição de pôsteres em versão visual menor. A opção decorre, também, das distribuidoras cinematográficas interessadas em entregar o recurso na forma digital, aspecto que acelera a logística da divulgação do filme, em todo o país.

 

Outro motivo, citado na matéria, para a extinção dos pôsteres impressos, foi o desejo do público por ambientes menos poluídos de publicidade. Entretanto, algo estranho, por ser comum ao público tirar fotos diante destes cartazes, quando apresentado algum personagem de destaque do filme. E, nos dias atuais, com o modismo dos selfies, surge uma atitude até divertida e atrativa que ocorre nestes espaços. Recordo-me dos desaparecidos cinemas de rua, em Campinas (SP), nos anos de 1960 e 1970, como: Windsor, Ouro Verde, Brasília, Regente, Jequitibá etc., e nos quais o pôster era atração à parte, além de subsidiar na escolha do filme, em especial nas matinês da domingueira. Hoje, na maioria das cidades brasileiras, os cinemas residem nos shoppings, tendo em comum o saquinho de pipoca de sabor pasteurizado e o refrigerante globalizado.

 

A mudança de cartazes impressos para o digital, não se restringe apenas à sobrevida. Como todo suporte de informação que desmaterializa seu conteúdo para o ambiente digital, gera algumas manifestações de saudosismo, de certa perda cultural, e mesmo emocional. Entretanto, questionamentos a parte, o pôster enquanto documento e independente de seu formato (impresso ou digital), encontra acolhida no trabalho do bibliotecário de tratar a informação, elaborar a sua representação descritiva e temática. Aspectos que envolvem o estudo das suas características para bem inseri-lo ao sistema bibliográfico de informação.

 

A matéria jornalística é ilustrada por cenas recorrentes na fórmula de produção dos cartazes para a divulgação de filmes. Cita, como exemplos: a cena dos heróis solitários e justiceiros que aparecerem sempre de costas em uma mesma posição, sejam eles revolucionários (V de Vingança, 2005), pistoleiros do faroeste (Os indomáveis, 2007) ou espadachins (Gato de Botas, 2011). Pôsteres de filmes melodramáticos costumam colocar o rosto dos atores principais no céu, acima de uma praia, caso de “Íntimo & Pessoal” de 1996, “Cidade dos Anjos” de 1998, e “Tempo de Recomeçar” de 2001. As comédias, em especial as escrachadas, costumam apresentar pôsteres contendo longos pares de pernas, caso de “Austin Powers – O Homem do Membro de Ouro” de 2002, “Kinky Boots – A Fábrica de Sonhos” de 2005, e “Sex Drive: Rumo ao Sexo” de 2008.

 

Também, um único filme pode ter diversos pôsteres de divulgação. Salienta-se uma característica da produção e divulgação cinematográfica que interessa aos bibliotecários ao tratar tais materiais. Aliás, este tipo de documento é encontrado em bibliotecas especializadas (artes-cênicas, cinematecas e artes-gráficas). Porém, pouco comum em outras categorias de bibliotecas, mesmo naquelas que contam com bons acervos de audiovisual.

 

O termo “Pôster” não está limitado à designação de cartazes de filmes, mas refere-se também a outras produções artísticas (por exemplo: peças teatrais, livrarias e lançamento de livros etc.), além de trabalhos acadêmicos apresentados em eventos. Há, ainda, um tipo de pôster utilizado em contextos específicos, no caso do futebol, com a imagem fotográfica do time campeão, em outro caso, nas amplas e interessantes imagens pregadas em borracharias e oficinas mecânicas do Brasil. Documentos da cultura nacional que mereceriam um olhar técnico do bibliotecário.

 

O termo, no dicionário, é definido como “Cartaz impresso, de tamanho médio ou pequeno, usado em decoração, publicidade etc.”. Também definido como “Fotografia ampliada e transformada numa espécie de cartaz, de pôster”.

 

No glossário do AACR2r é designado como “Cartaz”, e, neste sentido, é entendido como “um item de papel publicado separadamente, impresso de um lado só e para ser lido desdobrado; geralmente destinado a ser enviado pelo correio ou distribuído publicamente. São exemplos de cartazes: avisos, volantes, folhas com canções, circulares”. Nota-se que a definição não contempla o formato digital.

 

A ISBD consolidada também nomeia o termo como “Cartaz”. Define como uma lamina ou pôster criado para ser exposto publicamente.

 

Já, a RDA, em seu glossário, remete o termo pôster para still image (imagem estática), definido como conteúdo expresso através de linha, forma, sombreamento, etc., destinado a ser percebido visualmente em duas dimensões. Inclui desenhos, pinturas, diagramas, imagens fotográficas (estáticas), etc. Para o conteúdo cartográfico destinado a ser percebido como uma imagem bidimensional. Para imagens percebidas por meio do tato ou toque, designa-se imagem tátil. Na RDA há uma definição dirigida ao objeto digital, mas ainda pouco clara.

 

No aspecto da descrição, no AACR2r, o Pôster se insere no Capítulo 8 – Materiais Gráficos. O preâmbulo do capítulo refere-se à descrição dos materiais gráficos de todos os tipos. Em especial os categorizados como opacos (exemplo: originais e reproduções de arte bidimensionais, quadros, fotografias, desenhos técnicos); os destinados à projeção ou visualização (exemplo: diafilme, radiografias, diapositivos); bem como coleções desses materiais gráficos. O pôster é uma peça de visualização, também considerada obra artística, como decorrência de quem a produz. Porém, ao ser convertido apenas ao formato digital preserva está característica peculiar?

 

Nos exemplos de cartazes de cinema, citado na matéria jornalística, é mencionado caso do filme realizado pelo cineasta austríaco Fritz Lang: “Metrópolis”, de 1927. Com traços expressionistas, o pôster criado pelo designer alemão Heinz Schulz-Neudamm (1899-1969), é tido como o cartaz de filme mais caro da história, com uma das suas quatro cópias originais leiloada por US$690 mil, em 2005. Será que algum “formato digital original” atingirá tal conceito de valoração? E de Digital Original?

 

No processo descritivo, o catalogador encontra na regra 8.1B3, as orientações para itens gráficos sem título, que deve ter o título fornecido pela forma na qual a coleção é conhecida ou por uma denominação que indique a natureza da coleção. O exemplo fornecido é [Pôsteres de dança].

 

No caso dos cartazes de filmes, geralmente há o título original do próprio filme. Entretanto, é comum haver o título traduzido e que nem sempre é fiel ao título original, exemplo: o filme “Enemy, no Brasil o seu título é “O homem duplicado”. Assim, para vários pôsteres de um mesmo filme, um título coletivo uniforme deve ser adotado para reunir fisicamente, no catálogo, o material.

 

Em relação a uniformidade do título, o termo aparece citado no Capítulo 25 – Títulos Uniformes. Especificamente na regra 25.10 – obras em uma única forma. A regra orienta o uso de títulos coletivos para item que consista das obras completas de uma pessoa, em uma determinada forma, ou que seja apresentada como tal. É listado sugestão de termos: Contos; Correspondência; Ensaios; Romances; Discursos; Poemas; Obras em prosa; Peças de Teatro. A mesma regra destaca que se nenhum dos termos listados for adequado, recomenda-se o uso de um título coletivo específico conveniente e dá como exemplo: Pôsteres, Fragmentos etc.

 

O termo pôster também aparece na regra 8.5B1, referente a descrição física do material. Recomenda registrar o número de unidades físicas de um item gráfico, com o fornecimento do número de partes em algarismos arábicos, podendo ser adotado um termo constante da lista apresentada, no caso: Pôster ou Cartaz.

 

A profa. Antônia Memória, em seu livro “Catalogação Recursos Bibliográficos: AACR2 em MARC21”, destaca quatro elementos descritivos peculiares a esse tipo de documento, ou seja, DGM = [Ilustração]; extensão: relativa ao número de unidades físicas; outros detalhes físicos: referente a indicação de cor (color. p&b, sérpia); e a dimensão altura X largura.

 

Como o recurso migra do impresso para o digital, observa-se claramente as limitações do AACR2 que não prescreve tal situação, mas a indica ao catalogador responsável fazer as adaptações no tratamento do material em novo contexto.

 

Isto a partir das possibilidades encontrada no Capítulo 9 – Recursos eletrônicos que abrange os dados (informações que representam número, texto, gráficos, imagens, imagens em movimento, mapas, música, sons etc.). Destaca que o Capítulo inclui, frequentemente, componentes cujas características são encontradas em diversas espécies de materiais, de modo que quase sempre será necessário consultar outros capítulos. Há uma mescla de regras a ser interpretada pelo catalogador, e que pode criar uma espécie de representação “Frankenstein”, pelas próprias contradições interpretativas.

 

O problema aparece na descrição física, se o pôster é digital não terá suporte físico, a não ser que o catalogador o receba ou o grave em alguma mídia, mas nos dias atuais, os recursos podem ser armazenados no repositório em uma nuvem da biblioteca. Nesta situação é o cuidado do bibliotecário em não transformar a nuvem em uma tormenta conteudística.

 

A regra 9.5B1 oferece uma “brecha” nesse sentido ao orientar “Quando novos suportes físicos forem desenvolvidos e nenhum destes termos for apropriado, registre o nome específico do item da forma mais sucinta possível, e preferivelmente seguido pelas palavras para computador”. Mas, no contexto da própria evolução tecnológica será o procedimento ou o termo suficiente?

 

Na ISBD consolidada, não há mais a categorização dos materiais bibliográficos, por capítulos específicos. Preserva o conceito das áreas da descrição que continuam pertinentes a todos os tipos de materiais, acrescido da área 0 (zero) para determinar a forma ou formas essenciais pela qual o conteúdo se expressa. Substitui e amplia o antigo DGM (designação geral de material), no qual geraria dúvidas em determinar se o recurso convertido ao digital seria uma ilustração ou um recurso eletrônico. Em suma, a ISBD se propõe a fornecer regras para a descrição de todos os tipos de recursos publicados, uniformidade na medida do possível, assim como especificações orientadas para determinados tipos de publicações, que sejam necessários para sua descrição. No caso do pôster impresso ou digital, há subsídios para o catalogador realizar a descrição segundo o modelo da ISBD.

 

A começar pela área 0, referente a forma do conteúdo (0.1) e de tipo mídia/suporte (0.2). Composto de dois elementos que indicam para a descrição a principal forma na qual o conteúdo de um recurso se expressa e o tipo de suporte utilizado para a transmissão desse conteúdo, com a finalidade de auxiliar o usuário do catálogo bibliográfico a identificar e selecionar o recurso adequado às suas necessidades. A regra 0.1, agrega o termo referente a qualificação do conteúdo (0.1.1), que especifica o tipo, a natureza sensorial, dimensão e a presença ou ausência de movimento no recurso descrito. No caso do pôster impresso (1) e digital (2) o modelo básico poderia estar inicialmente descrito como:

 

(1)   Imagem (fixa ; bidimensional ; visual) : sem mediação

(2)   Imagem (fixa ; bidimensional ; visual) : eletrônico

 

Pode haver mudanças de acordo com as características do pôster, como o de ser tridimensional. A área da descrição física (5) indica as alterações, na extensão (5.1), para o impresso (1 cartaz), para o digital, enquanto imagem fixa (1 diapositivo ou slide).

 

A RDA segue o mesmo princípio com os três elementos: tipo de conteúdo, tipo de mídia e tipo de suporte. Tipo de conteúdo (6.9.1.1) reflete a forma de comunicação pelo qual o conteúdo é expresso, bem como o sentido no qual se pretende que esse conteúdo seja apreendido e a presença apreendida ou ausência de movimento. O pôster pode ser então uma imagem fixa. Tipo de mídia (3.2.1.1) reflete a característica do dispositivo de intermediação necessário para ver, tocar, exibir o conteúdo. No caso do pôster é computador, quando o termo eletrônico daria maior amplitude. E o tipo de suporte (3.3.1.1) que está ligada ao tipo de mídia, porém com maior objetividade. Reflete o meio de armazenamento e de invólucro de um suporte em relação com o tipo de dispositivo de intermediação necessário para ver, tocar, exibir o conteúdo. No caso do pôster há o suporte não mediado, e suporte de imagens projetadas.

 

Bom, até aqui comentou-se sobre duas situações tipológicas de um documento que se transformam e que, descritivamente, não têm uma mistura facilmente assimilável. Um pôster impresso e seu sinônimo digital, uma imagem fixa projetada.

 

Há uma outra situação documental para o pôster, não declarada na citada matéria jornalística, mas encontrada em cinemas. É o pôster impresso do filme, que agrega um monitor/display (de 30 ou 40 polegadas), e no qual é mostrado cenas do filme (o seu trailer). Como denominar este tipo de divulgação, “trailer em pôster”?

 

Como observado na figura 01, trata-se de uma peça única que envolve o pôster, o capítulo 8 no AACR2, enquanto o trailer de filme está tratado no capítulo 7 – Filmes Cinematográficos e Gravação de Vídeo. O que há em comum é o DGM que categoriza uma denominação “Se um tem gráfico contiver partes constituídas de materiais que pertençam a duas ou mais categorias e se nenhuma delas for o elemento predominante do item, use a designação multimeios ou conjunto de peças” (regras: 7.1C2; 8.1C2; 1.1C1).

 

Figura 01 – Pôster com trailer


Fonte: Foto do autor

 

 

No caso atual temos um mesmo “contexto” de documento, que se compõe de peça única, integrada. Ainda, no AACR2, há o Capítulo 13, da análise para descrição de uma parte ou partes de um item. Mas no caso apresentado na figura 01, a melhor alternativa é utilizar a milagrosa área das notas para observações extras da caraterística do item. Mesmo na ISBD e RDA, o bibliotecário deverá interpretar a situação, por vezes, pelo seu contexto de aplicação e, não necessariamente, pelo conjunto das peças da qual seja composta.

 

Há, também, outra situação encontrada envolvendo o uso do pôster agregado ao da escultura de um elemento do filme divulgado. Neste caso temos o título uniforme como elemento de relacionamento. O pôster pode ser considerado como etiqueta da peça ou a peça um elemento completar na descrição do pôster. Uma coisa é certa, pôster é pôster. A figura 02 ilustra a situação para a representação descritiva, e para o modismo dos selfies, já mencionado.

 

 

Figura 02 – Escultura de elementos do Filme


Fonte: Foto do Autor

 

 

Enfim, são situações que demonstram a complexidade e os desafios do trabalho catalográfico, não limitados a interpretar apenas as regras codificadas, como as mencionadas ao longo do texto. Importa haver reflexão sobre as mudanças estruturais dos documentos, e dos procedimentos que garantam o seu registro para a recuperação e acesso. Pensar soluções ou alternativas adequadas à compreensão, consulta, seleção, escolha pelo público usuário. Olhar seus próprios instrumentos de apoio como fonte de consulta e, também, de estudo e interpretação dos procedimentos que atendam ou se ajustem às necessidades evolutivas da informação registrada.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.