PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: OS BIBLIOTECÁRIOS PÚBLICOS BRASILEIROS PODEM/QUEREM TIRAR LIÇÕES DAS RUAS?

A nação brasileira vivenciou durante grande parte do mês de junho de 2013, na maioria das capitais e em algumas cidades de porte médio do interior do país, a experiência de ver e/ou se envolver com uma série de manifestações deslanchada a partir de temas populares, do qual o mais forte está relacionado com o custo do transporte público. As pessoas vêm demonstrando o forte desejo de poder contar com mais eficiência nos serviços oferecidos, especialmente pelas empresas de ônibus concessionárias junto ao poder público dessa atividade, assim como metrô e serviços de barcas. O mote mais forte gira em torno da ideia do passe livre. Há quem entenda que a facilidade do cidadão em ir e vir no território de seu município e dos municípios adjacentes é um direito humano básico, razão pela qual o custo da passagem de ônibus, metrô e barcas deveria ser rateado por toda a sociedade. Não deixa de ser uma ideia mobilizadora de discussão, até para que se possa formular o entendimento de qual o percentual de impostos municipais seria dedicado a isso, da mesma forma que se tem alguma ideia sobre o quanto de imposto é repassado para pagar saúde, educação, coleta de lixo, etc.

 

Ocorre que essa discussão no nível de verticalidade necessária não se dá na medida em que o espaço aberto pelas manifestações é rapidamente tomado por um sem número de bandeiras, ideias, mesquinharias e mal entendidos que vêm, de um lado, como o aproveitamento dos holofotes das câmeras de televisão e das objetivas dos fotógrafos, e de outro lado vêm como expressão de origem menos popular de provocar o acobertamento do que realmente interessa a quem detém menos recursos. De um momento para outro, ainda que com a recusa das bandeiras dos partidos políticos, surgem bandeiras com muitos tipos de fanatismos e faixas com extravagâncias ideológicas, a demonstrar mentes colonizadas por ideário classe média, do tipo “sem noção”, expressando a mais crua desinformação sobre a própria ideia exposta.

 

Essa expressão de certa alienação não exclui o valor das pessoas vencerem as resistências individuais de se porem nas ruas, embora revele que em grande parte cada uma continua se manifestando individualizadamente e não necessariamente como parte de uma concepção mais real de coletividade. Há muito da expressão de uma potência de consumo, de pedir o melhor, o justo, o confortável pelo sentimento de que já pagou e de que foi logrado. Bom, isso é bom, se caminha no sentido de negar que haja benesses aos amigos dos partidos no poder; se demanda que o dinheiro público, seja bem aplicado e que os investimentos não se justifiquem apenas como forma de escoar a produção das firmas dos amigos para serem distribuídas de modo a não atender às finalidades previstas; se serve como denúncia de que os desvios de recursos são ultrajantes para o bem comum. Entretanto, é visível que nem tudo o que está sendo dito tem a melhor forma e a melhor explicitação. Parte disso pode vir em decorrência do fato de que há tempos que as manifestações populares desse teor não são realizadas pois sistematicamente foram sufocadas pela mediocrização, dentre outros fatores, da política partidária e da comunicação social impressa, radiofônica e televisiva.

 

Política partidária e comunicação social têm-se concertado nas últimas décadas de modo a tecerem um território de interesse comum representando os conglomerados econômicos. Esses colonizam parte substantiva do tempo de veiculação de conteúdos substituindo cultura artística e programação de lazer pela publicidade mais invasiva possível, estimulando com a maior intensidade mercadológica o desejo individualista de consumo.

 

Tomando uma perspectiva da ética pragmática e utilitária cada indivíduo está talhado na sociedade capitalista a tentar conquistar todo o dia as condições de reduzir a dor e aumentar o prazer. De outro lado, as mensagens publicitárias comerciais estão a dizer isso o tempo inteiro. É essa a educação que os meios de comunicação social de massa estão a construir no Brasil: busque a redução de sua dor e aumente o seu prazer. A transformação dessa ideia em povo na rua, desde que internalizada por milhões de pessoas como justificadora de movimento, necessita apenas de poucas condições: um sistema de comunicação rápido e confiável, que parece estar sendo dado pelas chamadas redes sociais; alguns “eventos” com dia, local e hora marcados; alguns slogans mais potentes dentre aqueles que tornam mais evidentes as dores sociais e morais de cada um; um governo (incluídos os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário) que parece funcionar como constituído de pessoas autistas, embora no caso do Executivo e do Parlamento essas mesmas pessoas usaram a publicidade para se oferecerem como “mercadorias” ou “remédios” para curar as dores e, no entanto, mais as têm acentuado.       

 

Tal “sopa” de motivações me parece é o que tem levado as pessoas a esses encontros, em geral, depois de seus expedientes de trabalho ou escolares. Mas falta algo! Embora as pessoas tenham motivos, esses motivos foram criados não por um sentimento de mudança estrutural, esses motivos foram forjados imitativamente tendo como referência um modelo imediatista da melhor eficácia do remédio; da punição dos impuros; da retomada pela classe média tradicional de seus espaços exclusivos; da ocupação pela dita “nova classe média” dos espaços que devem ser seus desde que na última década houve a dita maior ascensão social que esse país jamais imaginou, etc. Além de faltarem as respostas a esses sentimentos que vêm sendo estimulados pela ética pragmática consumista, que transvasa a partir dos meios de comunicação social de massa, falta a presença de mais canais de repasse de conhecimento e cultura, dos quais a Lei do Livro, que se comentou na coluna do mês passado, faz crer que é o livro o principal e, como seu ambiente de uso social imediato, as bibliotecas públicas e escolares.

 

Como a Lei do Livro tem muita defasagem em seu teor, essa defasagem é o acúmulo de reveses que o investimento estatal financeiro em educação e cultura nesse país sofreu ao longo dos últimos cinquenta anos; bem como dos reveses que um desinvestimento moral e civilizacional impôs na qualificação de cultura.

 

Nas últimas décadas parece ter sido cada vez mais crescente o isolamento da biblioteca pública como agência cultural, como se livro e bibliotecário não contribuíssem tanto ou mais com a cultura e a civilização cidadã quanto o cinema, a arte plástica, o teatro, o museu, etc. Nas reuniões em que o tema é a cultura, quando o bibliotecário não se faz presente e intromete-se na discussão, ele tende a não ser convidado a estar e a falar. Mas é no texto da Lei do Livro, no inciso II de seu artigo primeiro, que se vai encontrar a seguinte diretriz: “o livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida”. Eu quero pensar que essa diretriz não é um mero cinismo do legislador e por pensar assim, entendo que essa diretriz, que ultrapassa o âmbito dessa Lei, ainda não entrou ou retornou  nas cogitações cotidianas dos bibliotecários públicos deste imenso Brasil. Acredito que a partir do momento em que isso aconteça, um reflexo imediato se veria nas manifestações de luta pelas causas sociais. Creio que se retomaria seriamente, do ponto onde ficaram estancadas, deliberações como as retiradas pelos bibliotecários que participaram do V CBBD, em São Paulo, em 1965, dentre as quais, a de número 44 que recomendava:

 

“Que os Conselhos Regionais de Biblioteconomia e as Associações de Classe conscientizem os bibliotecários de que:

a) tomem consciência de sua função de “professores” da “universidade do povo”;

b) passem a fazer programas de realizações para atingir os fins a que se propõe, e que esses programas sejam organizados de tal forma que atinjam as camadas sociais da comunidade;

c) facilitem e não dificultem o acesso do leitor ao livro;

d) procurem tornar a biblioteca o “centro cultual da comunidade”;

e) promovam por todos os meios ao seu alcance a divulgação do livro, da leitura e da pesquisa bibliográfica;

f) procurem se integrar na sociedade, levando com isso a integração da biblioteca como elemento ativo da vida social da comunidade”.

 

Os bibliotecários públicos brasileiros profissionalmente pararam nos anos da década de 1960; viraram burocratas escravizados pelas técnicas; viraram sem vozes pelo medo da ditadura política e administrativa implantada no país em 1964; passaram a fazer parte de uma categoria profissional que ficou a administrar zelosamente  sua reserva de mercado dada pela Lei 4.084/62 e Decreto 56.725; ficaram junto a uma categoria profissional a se autobastar com uma normatização de conduta profissional de um Código de Ética que reflete uma realidade social dos anos 1950. Social e politicamente viram a “Banda passar” nos anos 1960 e 1970; viram “as diretas já!” troar nos anos 1980; viram os “caras pintadas” pintarem a saída de um Presidente da República de seu posto nos anos 1990; viram o CBBD se descaracterizar em todas essas últimas cinco décadas.  Que eles fizeram em todos esses momentos além do que já foi dito? Que lições tiraram e que debates realizaram para reencontrar as ideias que tinham nos anos das décadas de 1950 e 1960? E agora, em que mais uma vez o povo vai às ruas, o que os bibliotecários públicos podem aprender disso? Continuarão a “estar à toa na vida”? É lamentável!


   359 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB