PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: BIBLIOTECA SERVE PARA QUE? BIBLIOTECÁRIO FAZ O QUE?

Acredito que os bibliotecários ao final do mês de março de 2012, decorrente da divulgação de nova etapa da pesquisa (?) de opinião realizada pelo IBOPE para o Instituto Pró-Livro, intitulada Retratos da Leitura no Brasil, têm mais uma fonte para reflexão, incluindo vários aspectos aos quais chamarei de fatores: a) alto percentual de distanciamento da população desse equipamento designado biblioteca; b) afastamento progressivo daqueles que já utilizaram esse equipamento; c) concepções reducionistas da função da biblioteca na sociedade; d) falta à biblioteca atratividade e estímulo à presença do usuário: e) certo efeito de censura no processo de seleção da coleção.

 

A reflexão a partir desses fatores, que poderão se configurar como base para a  tematização de vários eventos profissionais e acadêmicos da Biblioteconomia nos próximos meses, certamente perpassa pelas questões éticas, notadamente relacionadas à responsabilidade profissional do bibliotecário diante de uma sociedade de não leitores, que é predominante no Brasil.  

 

Sabe-se, e ai não se trata de abstração, que o povo brasileiro está  predominantemente centrado no mundo da oralidade, ou seja, muitos falantes e poucos leitores. Isso é tão evidente, que mesmo entre os profissionais das bibliotecas, há aqueles que enviam comunicações eletrônicas e, em seguida, fazem comunicação telefônica ao mesmo destinatário, visando confirmar se esses receberam o “e-mail”, se entenderam a mensagem, etc. Tendo em vista situação dessa natureza, parece razoável que se submeta a questionamento a identidade do bibliotecário como profissional moralmente comprometido com que o seu trabalho produza o máximo benefício para a sociedade.

 

Entretanto, caberia também perguntar, associado à questão o que faz o bibliotecário, quem é o bibliotecário? Causa certa estranheza que durante boa parte deste mês de março de 2012, não diferente de outros meses de março de outrora, se propalou o dia do bibliotecário com uma obscuridade. Ao longo do mês, foram realizados  vários eventos comemorativos, mas se fez pouco esforço em ressaltar a fonte da homenagem, isto é,  quem é o patrono desse dia. Pouco se fez referência a Manuel Bastos Tigre. Por que? Será pelo fato de Bastos Tigre não ter tido formação acadêmica em Curso de Biblioteconomia? De ter sido publicitário? Ou pelo fato de que ele teve formação em Engenharia Civil e Engenharia Elétrica? Ou ainda pelo fato de que foi bibliotecário de órgãos estatais e universidade federal, mas nunca teve maior envolvimento com bibliotecas públicas e escolares?  

 

Aliás, por falar em bibliotecas escolares e em bibliotecas públicas, cabe destacar que efetivamente o país tem tido poucas ações consequentes de iniciativas de  bibliotecários formados academicamente como tais no sentido de tornar essas entidades  fontes marcantes na constituição da personalidade dos poucos brasileiros que a elas têm acesso. Os dados da pesquisa (?) Retratos da Leitura no Brasil, parecem ser confirmatórios dessa situação e são reforçados pelas matérias jornalísticas que foram publicadas a título de dar divulgação à tal pesquisa(?), como o texto publicado em 27 de março de 2012, no Jornal O Estado de São Paulo, de Edison Veiga e Paulo Saldana,  Cerca de 75% dos brasileiros jamais pisaram em uma biblioteca, diz estudo: Pesquisa do Instituto Pró-Livro mostra que 71% da população têm fácil acesso a uma biblioteca (http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,cerca-de-75-dos-brasileiros-jamais-pisaram-em-uma-biblioteca-diz-estudo,854168,0.htm).

 

Tome-se então a partir dos fatores elencados, o que está expresso pelos brasileiros, segundo a imprensa que trata da referida pesquisa(?). Quanto ao primeiro fator: alto percentual de distanciamento da população desse equipamento designado como biblioteca, o próprio título do artigo de jornal referido evidencia muito claramente que três de cada quatro brasileiros jamais pisou numa biblioteca. Isso aponta para o que? Que bibliotecas não fazem diferença para o cotidiano da maioria das pessoas? Que ter ou não ter biblioteca à disposição não contribui para melhorar ou piorar a vida da quase totalidade das pessoas? Por que essa expressão de indiferença? E isso, pode-se perguntar por fim, tanto faz quanto tanto fez para os bibliotecários?

 

Não dá para afirmar peremptoriamente que um ou outro bibliotecário em uma ou outra instituição  não está preocupado com uma questão de tal magnitude; mas talvez dê para dizer que o coletivo brasileiro de bibliotecários, que deveria ser representado pela Federação de Associações, não expressa uma atitude e uma autodeterminação moral positiva em torno disso. Onde está uma proposição consolidada dos bibliotecários brasileiros em torno disso? Quando uma proposição como essa foi debatida? Se debatida como foi encaminhada e acompanhada? O que esta proposição continha? Quais os resultados que se obteve ao longo das décadas em que a profissão de bibliotecário passou a ter a sua regulamentação (desde 1962) e que essa regulamentação passou a ter efeito (a partir de 1965)? Quais as proposições corretivas, que se acrescentaram à inicial ao longo do tempo? Quem se envolveu na feitura dessa proposição, representando a sociedade civil, o estado, as forças produtivas, os sindicatos, etc.

 

Penso que bibliotecas podem fazer diferença para o cotidiano da maioria das pessoas se as pessoas podem ver nelas ambiente de construção coletiva. Há várias iniciativas comunitárias no país que mostram isso, como igualmente há a percepção pela população de que a maioria das ditas bibliotecas públicas não passam de meras repartições públicas mal geridas, mal supridas de recursos, com funcionários distantes da população e para onde ir é quase uma punição. Isso vale igualmente para o que se chama de biblioteca escolar, que existe em pouquíssimas escolas, pois na grande maioria o que há são as malditas “salas de leitura”, compostas de coleções semi  abandonadas, mal cuidadas por muita gente sem a menor noção do que pode ser um espaço para o estímulo ao aprendizado e à construção de saber. Também sobre essas, falta uma posição de moral profissional do bibliotecário brasileiro. Onde está uma proposição consolidada dos bibliotecários brasileiros em torno da biblioteca escolar? Quando uma proposição como essa foi debatida? Se debatida como foi encaminhada e acompanhada? O que esta proposição continha? Quais os resultados que se obteve ao longo das décadas em que a profissão de bibliotecário passou a ter a sua regulamentação (desde 1962) e que essa regulamentação passou a ter efeito (a partir de 1965)? Quais as proposições corretivas que se acrescentaram à inicial ao longo do tempo? Quem se envolveu na feitura dessa proposição, representando a sociedade civil, o estado, as forças produtivas, os sindicatos de docentes e de servidores escolares, etc. O máximo a que se chegou, e que pode ser tido apenas como um retalho disso, foi a dita Lei da Biblioteca Escolar, número 12.244, de 24 de maio de  2010, que dispõe sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do País, cujo sentido cai muito bem sob aquela velha expressão do século XIX, “é para inglês ver”!

 

Quanto ao segundo fator:  afastamento progressivo daqueles que já utilizaram esse equipamento, não seria extremamente problemático se tal atitude ocorresse por opção consciente dos leitores. Mas o que se evidencia é que o uso da biblioteca tem sido relacionado ao utilitarismo escolar, querendo isto dizer que enquanto o sujeito era estudante, enquanto estava em formação, a biblioteca se lhe impunha como infraestrutura, boa ou não. As respostas da pesquisa (?) também falam por si: 71% dos participantes responderam que biblioteca é local "para estudar", é "lugar para pesquisa", é "lugar para estudantes". E isso vale, sobretudo, quando se fala da famigerada biblioteca pública. Chama a atenção o fato de que biblioteca, nesta pesquisa (?), é um lugar que pode ser interpretado como para trabalho ou como balcão de empréstimo e isto remete para o terceiro fator: pré-concepções reducionistas da função da biblioteca. Para mais de 70% das pessoas a biblioteca, ainda se fala de biblioteca pública, tendo como função ser um local de trabalho para o usuário. Para 16% das pessoas a biblioteca existe "para emprestar livros de literatura", ou seja, é um balcão, operacionalmente indiferente de uma padaria ou de uma farmácia, etc. Apenas para 12% das pessoas a biblioteca é "Um lugar para lazer". Aqui caberia perguntar quem faz da biblioteca um lugar que produz essas expressões de representação social? Certamente, não é o bibliotecário formado como tal que produz as condições para a biblioteca ser vista assim. Entretanto, não caberia a ele trabalhar efetivamente para contribuir na mudança dessas representações? Novamente, cabe perguntar se há uma atitude de um coletivo brasileiro de bibliotecários acerca desse tipo de circunstância, pois isso  está diretamente implicado em sua moralidade profissional. Onde está uma proposta, aberta para discussão e inserção na formação dos estudantes de Biblioteconomia, de uma Filosofia das práticas profissionais dos bibliotecários brasileiros? Quando tal filosofia começou a ser formulada e em que épocas e com quais resultados vem sendo debatida? Quais seus fundamentos ontológicos, éticos e epistemológicos? Quais os principais debatedores desse processo de formulação que também é identitária, etc. A falta desse tipo de contribuição para a sociedade, pelo coletivo de um grupo profissional nela estabelecido, supostamente não apenas para enfiar livros em estantes, mas para alertá-la sobre humanidade, civilidade e progresso humano, não qualifica esse grupo para colocar a biblioteca em condições de igualdade fenomenológica com os outros meios que essa sociedade constitui. Com isso, descrédito político e moral é a consequência imediata. Isso vai contribuir para o reforço e permanência do quarto fator: falta de atratividade e de estímulo à presença do usuário na biblioteca. Por que ir à biblioteca se ela é tão elementarmente insubstanciosa, se as pessoas que nela atendem são insossas ou desatenciosas, despreparadas ou desinteressadas? A pesquisa (?) aponta que vão à biblioteca frequentemente apenas 8% dos brasileiros, enquanto 17% o fazem de vez em quando. Não deixa de ser preocupante (Para quem? Para os bibliotecários?) que o uso da biblioteca vem caindo, ou seja, o uso frequente desse espaço (que é a biblioteca pública) caiu de 11% para 7% entre 2007 e 2011.

 

Pensando em apontar contribuições para o debate profissional a ser feito, lembro  que em 2011 foi apresentada no Curso de Mestrado em Ciência da Informação da UFSC uma dissertação em que os dados empíricos foram coletados junto a líderes criadores de bibliotecas comunitárias. Para a maioria dos informantes ouvidos pela autora a repartição pública chamada Biblioteca Pública é uma caricatura do que se poderia querer de um serviço atualizado, dinâmico, estimulante, respeitoso, etc. E, nesse sentido, mesmo que a maioria dos entrevistados não seja totalmente acusadora quanto ao papel exercido pelo Bibliotecário formado como tal, também não desvincula desse, e aí entra em jogo o coletivo bibliotecário, parte da responsabilidade que nele há em relação a esse quadro. (Silva, Ana Claudia Perpétuo de Oliveira da. É preciso estar atento: a ética no pensamento expresso dos líderes de bibliotecas comunitárias. (http://pgcin.paginas.ufsc.br/files/2010/10/SILVA-Ana-Claudia-P-de-O.pdf). Isso tudo que foi dito até agora tem a ver, direta ou indiretamente, com o quinto fator: efeito da censura no processo de seleção da coleção. Nas bibliotecas brasileiras, e isso é feito também pela iniciativa de bibliotecários,  ocorrem processos positivos (isto é, tendo por base  critérios claramente dados em uma política de formação e desenvolvimento que prevêem deliberações colegiadas) ou negativos (isto é, em que não há critérios claramente dados em uma política de formação e desenvolvimento e quando existem ficam sujeitos à interpretação de uma ou poucas pessoas, sem a qualidade formal de colegiado) de seleção dos materiais que compõem a coleção. Evidentemente, os usuários não são tolos e muitos têm uma clara sensação dessa circunstância, que se evidencia a partir da pesquisa (?) quando afirmam na matéria jornalística citada: "Nem pensei em procurar uma biblioteca. Nas livrarias há muita coisa, café, facilidades. E a biblioteca, onde ela está?"; ou “A livraria acaba mais atualizada", para um leitor que revela ler só obras cristãs, fica visível o sentido de sua observação: "Acho que nem tem esse tipo de livro nas bibliotecas."

 

É relevante, cada vez mais, que os bibliotecários façam mais que cuidar do dia a dia de suas quatro ou quatrocentas paredes, na medida em que antes dos muros há pessoas. E são essas pessoas que assegurarão ou não a permanência social de um grupo bibliotecário formado academicamente como tal. Queixas sobre a qualidade da atuação das bibliotecas em uma sociedade que sanciona a formação acadêmica de bibliotecários são queixas para os bibliotecários, para a escola de biblioteconomia, para associações e sindicatos de bibliotecários. São reclamações que devem ser lidas como uma contribuição política que a sociedade está oferecendo para esse grupo profissional.

 

Quando uma grande parte das pessoas representa a biblioteca, especialmente a pública, como lugar de trabalho e pouquíssimas a representam como lugar de lazer ou quando certo número de pessoas admitem que nessa biblioteca podem não encontrar determinado tipo de conteúdo, há aí um alerta para que o bibliotecário comece a se ver como estando em desvantagem política e moral.

 

Evidentemente, não deve haver qualquer desprestígio para os bibliotecários que  o patrono da profissão de bibliotecário no Brasil seja um bibliotecário provisionado que fora Engenheiro, Publicitário, etc. Entretanto, o coletivo bibliotecário brasileiro deve ser múltiplo ainda que academicamente formado para tal e, por isso mesmo, capaz de tornar real e perceptível a serventia da biblioteca seja qual for a natureza desta: pública, escolar, universitária, empresarial ou governamental e tornar mais evidente o que faz o bibliotecário. Isto é um imperativo ético!


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB