PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: DA IMPOSTURA DO MAL: O PODER DE PUNIR
Em Microfísica do poder, 25ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979, p. 8, Michel Foucault, ao dialogar com Alexandre Fontana sobre “Verdade e poder”, diz a certa altura:
“
Quero a partir dessa citação, fazer referência à atuação de significativo número de bibliotecárias e bibliotecários brasileiros, doravante designados bibliotecários brasileiros, no que diz respeito ao seu senso de justiça. E faço isso, justamente, pelo fato de que à última coluna que aqui publiquei em setembro ter recebido manifestações de que multar pelo atraso na devolução de livros é atitude justa e democrática. Aí há questões em aberto para se discutir: 1 – se a justiça advém de um sistema de regras que têm origem num fundamento ético que oferece a todos os envolvidos na situação a chance de reconhecer os princípios que orientam essas mesmas regras e 2 – se a democracia se fundamenta no poder de todos os envolvidos na situação deliberaram previamente sobre o que é o aceitável no contexto real de dada construção social, então, como uma biblioteca que não dispõe de instrumentos que fomentem e respeitem a livre manifestação de todos os seus usuários, poderia argumentar que multar pelo atraso na devolução de livros é atitude justa e democrática?
O que está cada vez mais evidente no contexto bibliotecário brasileiro é a grande maioria dos profissionais dessa área profissional ter transformado a multa financeira naquilo que ela realmente tem de finalidade: fonte de arrecadação financeira para pequenas despesas e mera punição. Em muitos casos, aparenta ser fruto de uma consciente atitude de retirada do dinheirinho da merenda ou da refeição do bolso do estudante que caiu
Todo o movimento do bibliotecário, que visava encontrar leitores conforme dito por Ortega y Gasset, ainda não chegou à mente de grande parte dos bibliotecários brasileiros. Esses que, em suas bibliotecas universitárias e escolares, deliberam que o instrumento de apropriação financeira do dinheirinho do lanche ou do almoço do estudante é o instrumento que tornará esse mesmo estudante consciente de que aquele livro, naquele ambiente, é pertencimento coletivo.
Certamente esses inúmeros bibliotecários ainda não descobriram que nos últimos trezentos anos, em particular no mundo ocidental, tem-se buscado atitudes socialmente mais civilizadas, fruto do investimento na educação e nos recursos da escolarização, pelos quais supõe-se que justiça e cidadania sejam forjadas pelo diálogo e pelo entendimento construído a partir desse.
Como se diz em linguagem de senso comum que o hábito faz o monge, inúmeros bibliotecários brasileiros, sobretudo nas escolas e universidades, parecem fazer questão de cada vez mais se identificarem com os monges guardiões da biblioteca do mosteiro idealizado por Umberto Eco em O nome da rosa.
De onde vem essa atitude? Basta ler atentamente o Código de Ética do Bibliotecário brasileiro, do CFB, que facilmente se poderá descobrir sua origem. É pena que o Código de Ética do bibliotecário brasileiro contribua para auxiliar uma grande parcela de bibliotecários brasileiros, a não ter atingido, historicamente, um pensamento que tenha chegado ao século XVII e seguintes da concepção expressa no texto de Foucault.