PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: OS SENTIDOS DE DIGNIDADE

Na coluna do mês de março de 2008 afirmei que o Código de Ética do Conselho Federal de Biblioteconomia, que se apresenta também como Código de Ética Profissional do Bibliotecário, quando emprega o termo dignidade ou seus cognatos não oferece clareza quanto aos sentidos com que os utiliza. Na oportunidade, sugeri que se abrisse discussão em torno disso, posto que a dignidade representa um valor fundamental para toda a pessoa humana e, antes de quaisquer outras considerações, profissionais são pessoas humanas. Como pessoas humanas, também sofrem as implicações carregadas pelos valores sociais, por serem agentes envolvidos nas relações de sociedade. Eu perguntei em que implica para o Bibliotecário e para a sociedade brasileiros as menções feitas no mencionado Código ao valor “dignidade”, que ali se encontra sob várias formas, segundo os distintos lugares em que são apresentados na redação.

 

No artigo 2, alínea a; no artigo 3, alíneas a e e; no artigo 5, alínea e; no artigo 6, alínea b e no artigo 9 esse valor está relacionado com os deveres profissionais. No artigo 11, alienas b e d esse valor está relacionado a direitos profissionais e no artigo 12, alíneas a e d esse valor está relacionado a proibições prescritas para o “profissional de biblioteconomia”. Dizendo mais especificamente, abaixo aponto o que está em cada tópico:

 

Artigo 2, a – é dever do profissional bibliotecário dignificar a profissão;

 

Artigo 3, a – é dever do profissional bibliotecário preservar a natureza liberal e humanista da profissão, tendo por base a dignidade da pessoa humana;

 

Artigo 3, e - é dever do profissional bibliotecário realizar de maneira digna a publicidade de sua instituição ou atividade profissional;

 

Artigo 5, e - é dever do profissional bibliotecário preservar a dignidade ou os interesses da profissão ou classe;

 

Artigo 6, b - é dever do profissional bibliotecário zelar pela dignidade profissional;

 

Artigo 9 - é dever do profissional bibliotecário dignificar moral e profissionalmente, cargo função ou emprego que exerça;

 

Artigo 11, b - é direito do profissional bibliotecário apontar falhas em regulamento ou normas relativos ao seu ambiente de trabalho quando julgá-los indignos ao exercício profissional;

 

Artigo 11, d - é direito do profissional bibliotecário ser defendido pelo órgão de classe se ofendido em sua dignidade profissional;

 

Artigo 12, a - o profissional bibliotecário está proibido, no exercício das funções, de praticar atos que comprometam a dignidade e renome da profissão;

 

Artigo 12, d - o profissional bibliotecário está proibido, no exercício das funções, de assinar documentos que comprometam a dignidade da classe.

 

Feito esse destaque, e retomando o teor da coluna do mês anterior, pus em questão, pontualmente, a dubiedade do Código quanto a quem é “profissional de biblioteconomia”, uma vez que suas prescrições se aplicam para as pessoas humanas (pessoa física) que portam a profissão de bibliotecário e para as empresas (pessoas jurídicas) que vendem serviço profissional nesse campo.

 

Nesta coluna de abril quero discutir, ainda que rapidamente, sentidos de dignidade, buscando dialogar com o texto Pequeno Estudo de Ética, de Dietmar Mieth. Mieth fundou o Centro de Ética da Universidade de Tübingen, foi membro da Comissão de Ética da União Européia e ensina Ética Teológica. Talvez, por atuar com ética teológica, sua contribuição pudesse ser considerada insuficiente ou inadequada para uma discussão que envolve a ética profissional. No entanto, também deixo isso como parte da provocação que faço ao debate. O fato a assinalar, é a abordagem que o autor faz da noção de dignidade humana como a base de orientação da responsabilidade, tratada em suas várias vertentes.

 

Ora, a responsabilidade assumida pelo ser humano deve ser vista sob o pressuposto de que este é dotado de razão, é livre para agir e necessita continuamente de uma referência social. Nesses termos, pode-se interpretar que se as pessoas humanas, que portam a profissão de bibliotecário escolheram esse caminho conscientemente, a partir de sua plena razão, e o fizeram ao livre arbítrio diante de um leque de possibilidades de construir um futuro, e ao chegar a esse futuro, estabelecer diretrizes pessoais para sua participação na sociedade pelo exercício das atribuições inerentes às práticas profissionais bibliotecárias, o fizeram na medida em que os trajetos pessoais derivados se inserem no escopo de um papel social que, por si, sustenta uma referência social. Estar socialmente referenciado, por ter um papel ocupacional e intelectual, leva a pessoa humana à produção de respostas para a realidade, isto é, para um mundo de interações entre papéis múltiplos que se transformam na existência objetiva e subjetiva em que todos se inserem como produtores de sentido.

 

Mieth faz, então, uma descrição sucinta do que chama de Contexto da responsabilidade, como o ambiente no qual se dá o agir responsável. Diz: “Todo agir responsável requer não apenas a competência da pessoa responsável, mas também um contexto institucional, um conjunto de regras, a capacidade de realizar sua interpretação e um jeito pessoal sensato de lidar com sua aplicação, [devendo] ter como ponto de referência valores e bens que lhes conferem sentido” (p. 107). Nesses termos, entendo eu que é impossível ser responsável, agindo sem referências e, mais que isso, sem as referências que confiram sentido à ação. A busca desse sentido depende do modo como as referências são construídas, o que expressam e a possibilidade de, sem ambigüidades, se darem como compreensíveis ao entendimento humano. No caso da redação do Código do CFB carece de sentido o que designa como profissional em biblioteconomia, pois alcança tanto as pessoas humanas quanto as empresas que atuariam na venda de serviços bibliotecários. Cabe perguntar: essa dubiedade não afetaria o sentido último da pretendida prescrição de conduta e, assim fazendo, não enviesaria o sentido da responsabilidade do profissional bibliotecário a que se destina e, por fim, não afetaria a dignidade do portador da profissão de bibliotecário, como pessoa humana?

 

Nesse ponto, chego aos sentidos que Mieth propõe para se compreender dignidade. Em primeiro lugar, ele afirma que “Associamos com dignidade primeiramente a proibição de transformar o ser humano totalmente em instrumento, de não mais respeitar o fato de ele constituir um fim em si mesmo” (p. 114). “O segundo conceito de dignidade está vinculado à liberdade e capacidade de ação como síntese da capacidade humana de constituir uma existência moral” (p. 115).

 

Evidentemente, esses sentidos são muito amplos e permitem extensas discussões como o próprio autor o faz. Contudo, interessa-me provocar uma discussão para uma construção – o Código de Ética do Bibliotecário Brasileiro – em que, marcadamente, precedendo à sua primeira feitura, suponho, e uma pesquisa documental desse momento fundador poderia mostrar, houve esse respeito à liberdade e capacidade de ação das pessoas humanas, portadoras da profissão de bibliotecário ali envolvidas. Nos momentos seguintes, deixo aberto para discussão, creio que se tem verificado o caminho contrário, isto é, as pessoas para as quais essa prescrição se aplica sofrem uma transformação de sua dignidade humana ao serem reduzidas a instrumentos da busca de prestígio para uma classe profissional. Isso se dá, no caso do Código do CFB, pelo fato do mesmo ter tomado como diretriz, na sua origem, ser uma carta de regras que tende a se manter, a despeito de todas as transformações sociais, tecnológicas e econômicas registradas nos últimos trinta anos.

 

Para além disso, várias das expressões apresentadas em seu texto têm como sentido o que Mieth associa a uma compreensão espontânea, ainda pré-moral, de dignidade (p. 114). Diz ele: Quando falamos de “dignidade” na compreensão espontânea, ainda pré-moral [...] o uso do termo “dignidade” aproxima-se muito do uso do adjetivo “digno”. Digno é a pessoa que possui prestígio, que é reputada.

 

Em conclusão, considerada a discussão por essa vertente, o Código do CFB, pelos termos que emprega e nas circunstâncias que o faz, repousa sobre o propósito de afirmar para a “Classe” que seus membros, individualmente, devem se portar mais na busca de prestígio social do que na direção de assumir compromissos com os seus usuários, em benefício das pessoas humanas que são.

 

Referência: MIETH, Dietmar. Pequeno estudo de ética. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2007. 287 p.


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB