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AS ENTIDADES BIBLIOGRÁFICAS NO PENSAMENTO DE SVENONIUS

Processos catalográficos resultam em construção de registros bibliográficos. Entretanto, mudanças de normas, protocolos e o estabelecimentos dos requisitos funcionais provocaram questionamentos sobre o significado, na atualidade, dos registros bibliográficos: O que descrevem e como são usados?

Eles são essenciais aos catálogos de bibliotecas. Precisam ser precisos e detalhados para a comunicação com o público. Em contrário, o público ficará inseguro na tarefa de encontrar, identificar e selecionar o que desejam da coleção bibliográfica. E a coleção estará fragilizada se os seus recursos não puderem ser explorados.

Sobreposto aos questionamentos, há a dúvida dos dados que pertencem ao registro. Porém, esclarecer começa pela definição. Tradicionalmente, é um termo substituto para “entidade bibliográfica”. É a descrição desta, por incluir como dados, os atributos que a caracterizam. Além da utilidade para recuperar, identificar e acessar aos recursos informacionais. Assim, é preciso compreender: 1) o que se entende por entidade bibliográfica? 2) quais dos seus atributos são úteis?

Neste sentido, apresenta-se abordagem ao pensamento de Elaine Svenonius para a temática. Segundo a autora, o modelo das entidades consiste da materialização do recurso exemplificado no item (exemplar da manifestação); no conjunto de itens (impressões, edições, obras); e as suas relações (cronológica, hierárquica, derivada, temática). O item é a menor entidade. Contudo, pode-se tomar como menor entidade cada manifestação de uma obra, como no caso do livro (volume) contendo vários ensaios. Além disso, é de pouca utilidade centrar discussão apenas nos usuários de bibliotecas, com interesse em obras; e não dar igual atenção aos editores, livreiros, e os próprios bibliotecários, com interesse na produção, localização e obtenção dos itens.

Ao aceitar o item como menor entidade bibliográfica, como caracterizá-lo? Ressalte-se que o universo bibliográfico inclui todo tipo de material, até realia. Neste aspecto, definir o que de fato as bibliotecas coletam para suas coleções, é necessário. A pertinência da definição decorre do que considerar como recursos sujeitos à descrição bibliográfica. O campo da catalogação sempre coletou, descreveu e classificou itens em categorias não exaustivas ou mutuamente exclusivas. A classificação cruzada gerou problemas de categorizações, como seriados, cartográficos ou arquivos de computador. O modelo das entidades requer delinear os tipos de materiais que os códigos de catalogação descrevem.

Em determinados tipos de material, por exemplo, recursos similares ao livro podem ser agregados em um conjunto de tipologias. Isso inclui: (1) impressões (itens provenientes de uma composição tipográfica única, e publicado por uma ou mais editora, com ou sem data); (2) edições (conjunto de itens (manifestações) que emanam de uma “única composição tipográfica”; (3) textos (manifestações que expressam o mesmo conteúdo); (4) obras (conjunto de manifestações de um texto original e das versões desse original por tradução ou revisão); e (5) superobras (todas as manifestações da obra original e das manifestações derivadas).

Essas agregações representam a hierarquia de entidades bibliográficas. Cada uma equivale a um agrupamento de itens semelhantes. Cada uma pode corresponder a uma visão do usuário. Essa visão das entidades pode estar na perspectiva do recurso individual e/ou do conjunto de recursos.

Assim, a descrição de uma entidade bibliográfica se constitui em registro. Porém, resta saber que trata a descrição de uma impressão, uma edição, uma obra ou algo a mais? A importância para a descrição é prática, por afetar a decisão de quando elaborar um registro. E, isso envolve considerar, por exemplo, a questão das múltiplas versões existente de uma obra em variados suportes, como: texto, gravação sonora em fita ou disco. Neste sentido, elabora-se um registro único ou vários em separado?

No caso do livro, o nível de agregação para o qual a informação bibliográfica pode ser compartilhada local, nacional e internacionalmente é o da edição (manifestação). Mas, a definição de “edição” não é estável. Nos Estados Unidos, a definição varia conforme se operacionaliza as interpretações das regras da Library of Congress, nos padrões de entrada das utilidades bibliográficas e pelos diferentes algoritmos usados para monitorar o controle de qualidade das bases bibliográficas.

A situação dos materiais não-livros é mais problemática. Embora o conceito de edição exista para alguns, não se reflete no nível de interesse pela informação bibliográfica. Para a comunidade museal, o nível de compartilhamento da informação é o do item individual. Assim, para que registros bibliográficos funcionem em ambiente cooperativo, necessita-se definições claras para as entidades descritas. Elas são, portanto, um conjunto de itens. Contudo, a sua descrição em um registro, não é literalmente a descrição do conjunto, mas apenas de um item. Este é considerado emblemático de cada item do conjunto. Os seus atributos são os mesmos da entidade bibliográfica à qual pertence. Ao indicar-se a responsabilidade ou o título de uma edição (manifestação); o responsável e o título são inseridos como dados do registro desta entidade.

Cada entidade possui atributos. Assim, ela participa de uma variedade de relacionamentos “entidade-atributo”. Cada atributo é um dado separado no registro. Todavia, o atributo que caracteriza a entidade pode ser também uma entidade e tornar-se objeto de descrição. É o caso de descrever uma publicação que inclui dados do seu autor. A descrição pode incluir seus atributos, como: nome, afiliação, idioma, profissão. Na base bibliográfica, o atributo da entidade pode ser marcado por uma ligação de hipertexto (linked data). Assim, é possível saltar de um dado em um registro para a descrição de uma entidade em outro registro.

Por exemplo, ao visualizar um registro bibliográfico descrevendo a ilustração de Cândido Portinari para a tradução, em português, de Dom Quixote, pode-se inserir um linked data ao nome de Portinari. A ação nos leva ao seu registro de autoridade ou a uma fonte biográfica positiva, na web. Os dados que o descreve formam os registros usados para designar entidades contidas nos recursos e coletadas pelas bibliotecas.

Assim, os dados podem ser classificados em duas categorias: (1) os que descrevem a entidade; e (2) os que relacionam entidades entre si. Os primeiros, denominam-se dados descritivos e são retirados do item, como: autor, título etc. Os segundos, são dados de organização, não retirados do item, mas fornecidos pelo catalogador. Consistem da normalização de nomes e títulos (títulos uniformes, entradas autorizadas etc.). A finalidade é comunicar as relações bibliográficas e tornar organizado o catálogo.

Para Svenonius, o problema de alguns estudos sobre o uso do catálogo, é a tentativa de determinar quais os dados necessários aos registros, sem olhar para os habitantes do universo bibliográfico enquanto parte de um ecossistema galáctico interconectado. A consequência é não considerar a função principal dos dados que é organizar o catálogo, fornecendo-lhe estrutura. Organizá-lo representa proceder na estruturação do universo bibliográfico. Sem esses dados, o catálogo torna-se naquilo que Antony Panizzi (citado por Svenonius), denominou de “uma massa feita às pressas, mal digerida, vergonhosa e imperfeita de mais ou menos obras que formam a coleção de uma biblioteca”.

Pode-se imaginar uma cadeia bibliográfica que vai do criador da entidade bibliográfica até o seu editor, distribuidor, livreiro, comprador, bibliotecário, usuário e reciclador. Cada elo da cadeia representa um grupo de usuários, e é elaborado um tipo de registro. Embora os registros variem de acordo com o uso, pode-se crer na existência de semelhanças entre os criados para uma entidade, com implicações significativas.

Ao longo da história bibliográfica, eliminar redundância de esforços tem sido considerada como uma forma de reduzir custos. No âmbito das bibliotecas, a economia efetuou-se pela consolidação dos registros, de modo que um único atendesse as várias operações bibliográficas. Assim, o esqueleto de um registro é criado na encomenda do material; ao ser recebido ele é atualizado para uso no catálogo. Ele ainda serve como repositório de informações para processamentos associados ao material. Entre as diferentes bibliotecas, a economia de custo realizara-se pelo estabelecimento de redes cooperativas de catalogação. Idealmente, apenas um registro deveria ser elaborado para um item, podendo ser integrado aos catálogos de bibliotecas, em todo o mundo.

Observa-se com a informática e as redes digitais, que esse ideal pode ser ousado, como compartilhar registros não só entre bibliotecas, mas entre os usuários representados na cadeia bibliográfica. Por exemplo, os registros de uma editora podem formar a base dos registros de uma biblioteca. Os esforços cooperativos poderiam ser ampliados para além da comunidade bibliotecária, ao incluir dados oriundos de outros setores. É questão intrigante e complexa. Depende de fatores políticos, sociais e econômicos; condicionado aos empreendimentos cooperativos de controle; bem como, do grau de sobreposição das informações bibliográficas exigidas por distintos usuários.

Neste sentido, indaga-se o quanto de sobreposição há nos dados dos registros, utilizados pelos grupos da cadeia bibliográfica? Para ilustrar, toma-se um caso particular, um possível compartilhamento entre bibliotecas e editoras. Os usos para essas agências diferem de várias maneiras, até pelos objetivos distintos.

Enquanto a biblioteca existe para fornecer informação, a editora visa o lucro com suas entidades bibliográficas. A preocupação da editora é o custo e a receita da produção. Informações e registros utilizados servem a esse propósito. Por outro lado, a biblioteca e o seu catálogo buscam auxiliar o usuário a encontrar, identificar e selecionar, entre as entidades bibliográficas, o item de seu interesse.

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Em geral, as funções suportadas pelo sistema das editoras, são: (1) editoração: inclui a seleção e preparação do manuscrito, escolha dos materiais, tipografia, impressão e encadernação; (2) comercialização: requer divulgação; e (3) distribuição: envolve estoque e controle contábil. Esses registros são mantidos para as entidades bibliográficas em várias etapas de agregação (manuscrito, produção, ISBN, impressão, marketing etc.). Os dados registrados em cada etapa têm uso potencial para as bibliotecas.

Certamente, há dados codificáveis em formato MARC, como: autor, título, ISBN, editora e data. Também dados não padronizados, como os atributos que distinguem as entidades no nível da edição (manifestação). Podem ser úteis para bibliógrafos ou à atividade de conservação/preservação (atributos do papel, tinta e encadernação). Há, ainda, dados dos editores de uso marginal para bibliotecários, como: pedidos, vendas e detalhes de produção.

As funções suportadas pelos sistemas de gestão de bibliotecas incluem a aquisição, catalogação, recuperação, circulação e descarte de entidades bibliográficas. Para tanto, o catálogo precisa distinguir as diferentes entidades. Na função de recuperação, deve reuni-las por semelhanças. Ao considerar a sobreposição dos dados entre biblioteca e editora, a questão se refere àqueles necessários para atingir os objetivos do catálogo. Bem como, a incapacidade de realizar a distinção de entidades, o que é considerada falha de precisão. No registro bibliográfico, não basta inquirir se determinado dado é necessário, no sentido de que ele representa um atributo de interesse potencial ao usuário. Deve-se investigar se o seu conjunto, que forma a descrição da entidade, é suficiente para distingui-la de outras semelhantes.

Neste sentido, qual é a entidade a destacar? A resposta seria cada uma delas. Em materiais similares a livro, cada entidade (item, edição/manifestação, expressão, obras e superobras (termo adotado por Svenonius)), corresponde a visão convencional do usuário.

Um graduando que precisa realizar um trabalho sobre o pensamento de Hume, ficaria satisfeito com qualquer manifestação de “Essays Moral, Political and Literary” (Ensaios Morais, Políticos e Literários), desde que fosse em sua língua nativa. Para ele, qualquer exemplar do conjunto de textos seria essencial. Para um pesquisador que estuda o emprego do termo “simpatia” (sympathy), seria necessária uma edição o mais próximo do pensamento de Hume. Para ele, pode importar distinguir entre a segunda edição da obra corrigida e publicada em 1742 e a primeira edição, publicada um ano antes. Assim, um agrupamento adequado dos registros deveria auxiliar no discernimento destas variações.

Para um bibliógrafo haveria necessidade de mais distinções. Ele pode estar interessado em cada impressão da obra, com objetivo de anotar as variações (editoriais ou acidental) na encadernação ou papel. Assim, no registro tanto a publicação, quanto as distinções textuais, teriam que ser reconhecidas.

Já, o bibliotecário tem foco na prestação de serviço, necessita reconhecer as distinções significativas para o seu público e, também, para fins de aquisição, inventário, circulação e preservação.

Assim, para cada um desses usuários o objeto de interesse bibliográfico difere: para o estudante é a obra, para o pesquisador é a edição, para o bibliógrafo é a impressão, e para o bibliotecário o estado do item.

Os catálogos devem possibilitar distinguir entidades bibliográficas em uma variedade de registros. Segundo Svenonius a descrição completa varia com o tipo de usuário e, também, com o tipo de biblioteca. Certamente, uma pequena biblioteca necessitará de poucas informações bibliográficas, para distinguir os recursos em sua coleção. Ao contrário, estruturas globais, como no caso do Worldcat da OCLC (Online Computer Library Center), uma única obra, por exemplo, “Humphry Clinker”, pode ser representada por mais de cem edições.

O catálogo, além de distinguir, deve relacionar entidades semelhantes. Afinal, no universo bibliográfico, ela não é uma ilha em si mesma, mas ponto de conexão para outras entidades compondo uma variedade de constelações e relacionamentos. Para que um usuário navegue neste universo ao destino desejado, é necessário um mapa que apresente os agrupamentos e relacionamentos entre as entidades. Esse mapa descritivo das relações bibliográficas (verticais, cronológicas e derivadas) é um dos objetivos do catálogo. Neste intento, são os dados organizadores em um registro que executam funções de mapeamento. Assim, os catálogos não são só ferramentas de busca, mas ferramentas bibliográficas.

Em geral, o terceiro objetivo de Charles Ammi Cutter é negligenciado nas discussões sobre dados necessários ao registro bibliográfico. Esse objetivo afirma que o catálogo deve auxiliar o usuário na escolha de um livro, quanto à sua edição e o seu caráter (literário ou tópico). Certamente, os tempos de Cutter eram mais simples. Na atualidade, a escolha de uma entidade bibliográfica está condicionada por fatores complicados. Cita-se como atributo importante para certos tipos de materiais não-livros, o dispositivo necessário para sua execução: qual o sistema computacional necessário para processar o arquivo de dados? Que equipamento é necessário para visualizar um filme em videocassete ou em formato digital? Que infraestrutura de armazenamento são necessárias para um filme à base de nitrato?

Na distinção dos dois tipos de dados: descritivos e organizadores; os dados descritivos dividem-se entre os necessários para identificação e os úteis para a seleção. Pela complexidade do universo bibliográfico, os atributos das entidades que podem torná-las úteis na seleção são ilimitados.

Um pesquisador usando um recurso contendo o registro histórico e oral de um evento político pode estar interessado no tom de voz da pessoa entrevistada. Um historiador de arte pode estar interessado em todos os afrescos do século XVI que retratam certos elementos iconográficos. Claramente, se fosse viável, seria adequado incluir em um registro todos os atributos de uma entidade de interesse potencial a um usuário.

Para Svenonius, o universo bibliográfico é até certo ponto auto-organizado. Há ferramentas, além dos catálogos, que ajudam na navegação, por exemplo, índices, resumos, bibliografias etc. O catálogo tem o objetivo idealista do controle bibliográfico universal, mas nunca será o único guia para os habitantes deste universo. O problema é onde estabelecer a linha de seu pertencimento, neste contexto.

Sobre o grau de sobreposição dos dados utilizados nos registros por editoras e bibliotecas, apesar de serem utilizados para distintos fins, há os comuns e que descrevem os mesmos objetos. Dos que são usados por editores referentes a direitos autorais, edição, publicação, impressão, publicidade e distribuição do recurso, não seriam de utilidade para os bibliotecários. Por outro lado, dos dados usados em biblioteca, também não seriam de interesse às editoras.

Os editores estão limitados a uma ou duas galáxias do universo bibliográfico, não precisam se preocupar com a organização dos dados usados em estruturas bibliográficas globais. Evidências indicam que os poucos dados comuns aos propósitos de editoras e bibliotecas são do tipo descritivo: autor, título, edição, data, editor, ISBN etc. São facilmente determináveis e transcritos direto do item descrito.

Svenonius questiona a viabilidade de constituir esforços cooperativos entre editoras e bibliotecas para compartilhar dados. Especula sobre quanto as bibliotecas economizariam se os editores fornecessem dados aos seus registros. Se esses forem descritivos, a economia de custo não seria muita. A identificação deles tende a aparecer em lugares óbvios no item bibliográfico, como a página de rosto ou o verso. A inclusão nos registros bibliográficos é uma tarefa simples e partes de sua execução podem ser realizadas por computador.

Em contraste, fornecer dados organizadores em registros é atividade intelectual, na medida em que o estabelecimento de conexões bibliográficas requer pesquisa. A tarefa de controle de autoridade é demorada e cara. É neste ponto, que os esforços cooperativos devem ser direcionados. Entretanto, é também, no fornecimento de dados organizadores, que os editores pouco podem ajudar as bibliotecas. O mesmo pode ser dito sobre outros usuários destas informações, como os livreiros.

Indicação de leitura:

Svenonius, Elaine. Bibliographic Entities and their Uses. Cataloging & Classification Quarterly, vol.56, n.8, p. 711-724, 2018. https://doi.org/10.1080/01639374.2018.1524284

D. Quixote: Cervantes, Portinari, Drummond / 21 desenhos de Cândido Portinari; glosas de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1972.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.