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HISTÓRIA DE CATALOGADOR PARA QUEM CUTTER

Durante o segundo “Encontro de RDA no Brasil”, realizado em outubro de 2021, tive a oportunidade de participar de uma mesa sobre a formação de catalogadores. Na ocasião, explorei a capacitação de algumas personalidades históricas, que não dispondo de uma formação sistêmica em biblioteca, conduziram a própria experiência na função de bibliotecário como os meios para colaborarem na construção de uma área, a Biblioteconomia e, em particular, o campo da catalogação bibliográfica.

Uma destas personalidades é Charles Ammi Cutter, de quem ouvimos a respeito da contribuição para a catalogação. Assim, aproveita-se o espaço para comentar sobre a sua figura humana e profissional. Certamente, é um modelo para as novas gerações de bibliotecários que buscam por um desempenho ativo na área. Com base em textos de Cutter, Kushiyama e Stromgren, desenvolve-se a apresentação.

Cutter faleceu em 06 de setembro de 1903, aos 66 anos, em New Hampshire (EUA), vitimado pela pneumonia. Em seu obituário, o amigo e colega, William E. Foster escreveu:

Embora a natureza do Sr. Cutter fosse essencialmente erudita, e embora se possa dizer que ele abominava uma imprecisão em cada fibra de seu ser, seria um equívoco grave concebê-lo como uma pessoa pedante ou um “Dr. Dryasdust” (Cutter, 1931, p.60, tradução nossa).

Para os bibliotecários, Cutter é uma figura histórica pelas contribuições que fixaram as bases da catalogação e do catálogo bibliográfico. Promoveu um senso de respeito e liderança por meio do desempenho ativo na gestão de bibliotecas; nas atividades acadêmicas; na educação bibliotecária; e na militância associativa.

Portador de privilegiada inteligência e refinado bom humor no relacionamento com as pessoas. Uma de suas paixões, na carreira, centrou-se no revolucionário sistema de classificação. Outro aspecto, foi seu esforço por implementar mudanças no acesso público às coleções bibliográficas por meio do catálogo.

Seus familiares, originários de Boston, tinham fortes convicções religiosas. Aspecto marcado no prenome da família, “Ammi”, derivado do significado bíblico de “meu povo”. Nascido em 14 de março de 1837, foi o segundo filho de Caleb e Hannah Bigelow Cutter. Órfão de mãe aos dois meses, foi criado pelo seu avô e tias paternas, sendo uma bibliotecária. É ela que o coloca, desde pequeno, em contato com os livros. Sendo um garoto de constituição física e saúde frágil, além de míope, preferiu a leitura ao invés da prática esportiva. Anos mais tarde, já adulto, iria desfrutar de atividades ao ar livre e da dança de salão. Graduou-se no Harvard Divinity School, em 1859, onde trabalhou como voluntário na biblioteca. Tinha como perspectiva, ingressar na vida eclesiástica. Especula-se que a mudança de objetivo para a biblioteconomia resultou da sua nomeação como bibliotecário-assistente no Harvard College, em 1860. Também influíram na decisão, os bibliotecários: Dr. Ezra Abbot (1819 – 1884) e Charlotte Cutter (sua tia). A sua escolha teve efeito duradouro sobre as bibliotecas, bibliotecários e o público usuário.

O início profissional, em Harvard College, marca a obsessão em criar um sistema de classificação universal. Além da devoção pelo aprendizado contínuo e o compromisso em fornecer ao público, acesso igualitário aos recursos da Biblioteca.

Nos oito anos seguintes, Abbott e Cutter colaboram em um novo sistema de catalogação para a biblioteca. Utilizaram cartões (fichas) de cinco por cinco polegadas, que incluía índice de autor e assunto dos mais de 100.000 volumes e panfletos da coleção. O sistema permitia maior flexibilidade na inclusão e exclusão de registros, em vez de aguardar a publicação de novas edições do catálogo. Simultaneamente, ele desenvolve um catálogo para o reverendo Thomas Prince, na Biblioteca Pública de Boston.

Saliente-se, que nesta época os catálogos eram organizados em volumes de fólio, em ordem alfabética de título (índices de assunto e autor raramente existiam). A compilação de um catálogo abrangia vários volumes, e o seu manuseio e compreensão dependia da ajuda dos atendentes da biblioteca.

Essa experiência com a catalogação, o preparou para um novo cargo como bibliotecário do Boston Athenaeum, em 1869. Em uma posição de autoridade, vislumbra a oportunidade de implementar mudanças internas por meio de uma abordagem proativa entre a gestão da biblioteca e o público usuário. Desenvolve um sistema de classificação eficiente para a biblioteca, uma das mais veneradas do país por abrigar a maior coleção de livros clássicos.

Seu predecessor, William Frederick Poole (1821 – 1894), havia sugerido criar um catálogo de assunto, uma vez que o de títulos era ineficaz para um acesso eficiente aos recursos. Surpreso com a inconsistência do sistema, devido a predecessores inexperientes, Cutter sente que o arquivo deveria ser descartado e um novo construído. Apesar do desafio em revisar todo o catálogo do Athenaeum, em 1874, ele desenvolve o novo modelo dicionário, com 3.402 páginas, para uma coleção com cerca de 90.000 itens.

É reconhecido por esse trabalho laborioso e bem-sucedido, entre os mantenedores da Instituição. Na sequência, publica suas diretrizes para um catálogo dicionário impresso, Rules for a printed Dictionary Catalog (1875). Estabelece orientações para a sua criação em uma biblioteca, por meio da estrutura adotada no Ateneu. Pouco depois, adapta a obra para elaborar catálogos em ficha, com o título: Rules for a Dictionary Catalog (1889, 1891, 1904). Ele entendia que a catalogação era uma arte que se inspira na experiência e no bom juízo do catalogador. Entretanto, para que isto possa ocorrer e gerar resultados coerentes, suas regras foram as primeiras a partirem de princípios teóricos: os objetivos do catálogo. Esses objetivos foram tão sólidos que se mantêm ainda atuais, como referência importante para a catalogação descritiva.

Ressalte-se, que a principal base das regras, além de criar padrões catalográficos, decorre da sua convicção: “a conveniência do público deve sempre ser colocada antes da facilidade do catalogador”.

A partir de sua própria experiência, determinou a conveniência para o público, e não em qualquer estudo de usuário. As regras relativas à entrada de assunto, autor e título auxiliam na formação dos cabeçalhos e de outros pontos de acesso para aumentar a acessibilidade do usuário. Mesmo o esquema de classificação de Cutter reflete a estrutura das classes para assunto, encontradas na Library of Congress Subject Headings.

Da mesma forma, as orientações sobre a escolha dos pontos de acesso e a descrição do registro formam a base do AACR (Regras de Catalogação Anglo-Americanas). A normativa criada por Cutter passou por muitas revisões e edições devido a sua popularidade de uso. Aliás, desde a primeira edição de seu código, torna-se o principal livro didático para ensino de catalogação, além de fixar a sua reputação ainda mais na área.

Ele manteve-se vigilante na persuasão de bibliotecas para catalogar registros usando um esquema de classificação, ao invés de um arranjo alfabético para o acesso aos registos. Em sua época, prevalecia esse ordenamento pela facilidade de estruturar e compreender a organização bibliográfica. Enquanto a alfabetação proporcionava simplicidade na acessibilidade para uma pequena coleção; as bibliotecas, na virada do século XIX para o XX, expandiam as suas coleções. Isto gerava problemas com grandes coleções, pela incapacidade de incluir ou manter um registro bibliográfico mal colocado no catálogo. Também, a dificuldade em encontrar obras por temas, e a forma não sistemática de localizar os materiais por ordem alfabética, com o arranjo pelo seu título ou autor.

Melvil Dewey (1851–1931) e Cutter abordaram o problema por meio da elaboração de seus próprios esquemas de classificação, estruturados em classes temáticas. Cutter nomeou o seu sistema: The Expansive Classification, em reconhecimento ao contínuo crescimento das coleções bibliográficas e da possibilidade de o seu sistema expandir-se com a adição de novas classes. No esquema, ele criou quatro divisões: Filosofia, Arte, Matemática e História. Entre os anos de 1891–1903, ele introduziu sete camadas classificatórias, representando o tamanho da coleção de uma biblioteca. Cada nível classificatório, começava com a primeira classificação e incluía legendas (notação) correspondentes a um determinado tópico. O próximo nível baseava-se no anterior e conteria mais legendas com subtópicos específicos. Por exemplo, a Primeira Classificação, adequada para uma pequena biblioteca, apresentava apenas 11 legendas, descrita em uma página; enquanto a Sexta Classificação cobria 51 páginas e mil subdivisões. Infelizmente, o melhor modelo desta obra, que foi revisado e reeditado até a Sétima Classificação não pôde ser concluído devido ao seu falecimento.

A notação do esquema de Cutter seguia uma ordem alfanumérica ou numérico-alfabética. Seus numerais entendidos como “numerais mnemônicos” caracterizavam-se em uma ordem lógica e sequencial, baseada na hierarquia subordinada de classe. Apesar de inovador para a época, o que começou como um esforço para ser simples e aumentar a eficiência, tornou-se complexo para os padrões catalográficos atuais. No entanto, seus aspectos podem ser apreciados nos cabeçalhos de assuntos desenvolvidos pela Library of Congress.

Elementos da The Expansive Classification existem na “tabela de Cutter”. Ele enfatizou a importância de padronizar nomes de autores e notações de lugares geográficos. A seu sistema ainda serve de modelo para ordenar nomes de autores. A bibliotecária, Kate Sanborn (Katherine Abbott Sanborn, 1839–1917) compilou suas próprias tabelas, modeladas em Cutter, e conhecidas como “Cutter-Sanborn”. Embora ela tenha construído um modelo melhor e mais eficiente, continha diferentes combinações alfanuméricas que não podiam ser usadas em conjunto com as dele. Assim, de 1899-1901, Cutter expandiu seu sistema em três tabelas usadas até hoje.

Além das contribuições para a catalogação, tem-se os efeitos de seu ativismo no movimento associativo. Aspecto curioso de Cutter é que ele se tornou o único participante a assistir a todas as exposições do primeiro Congresso Anual da ALA (American Library Association), em 1876, com 100 bibliotecários presentes; de acordo com Thomas Hale Williams (1814 – 1901), bibliotecário do Minneapolis Athenaeum.

Para Cutter, tais eventos se tornaram um ambiente para palestras, iniciar discussões ativas e organizar reuniões temáticas. Como coordenador da seção de catalogação, ele promoveu discussões sobre a prática da catalogação. Enquanto presidente da ALA, por dois anos (1888 e 1889), organizou reuniões, preparou relatórios de Comitês e realizou palestras relacionadas à profissão. Coordenou, ainda, grupos de trabalho sobre a gestão das operações administrativas da organização.

No encontro da ALA de 1889, ele discursou sobre o “Common Sense in Libraries”, a respeito de questões para a melhoria da gestão de biblioteca, como: práticas de contratação, desenvolvimento de coleções e catalogação. Foi editor da Library Journal (1881-1893), contribuindo com artigos sobre biblioteconomia, gestão de bibliotecas e catalogação. Apoiou a educação bibliotecária, ao participar da fundação da American Library Education (ALE), e no apoio à criação da Escola de Biblioteconomia, em Nova York, por Dewey, onde mais tarde deu aulas.

Apesar de elogiado por suas contribuições à catalogação e ao direito de acesso à informação; outros bibliotecários se tornaram seus críticos e invejosos de suas realizações.

Os sistemas de classificação concorrentes de Dewey e Cutter, geraram discussões acaloradas sobre a usabilidade no catálogo e a eficiência na indicação de assuntos. Tendo experimentado o modelo de Dewey, Cutter exclamou: “Eu não gostei (e ainda não gosto da classificação do Sr. Dewey)”. Ele preferia um sistema que utilizava as 26 letras do alfabeto, a notação “cabalística” de dez algarismos propostos por Dewey.

Cutter exerceu um rígido controle sobre a ALA, nesse período. Também sucedeu a Dewey como editor da Library Journal. Dewey se retirou da Associação, criticando a sua liderança e a necessidade de um sistema mais simples do que os existentes (leia-se modelo de Cutter) para bibliotecários. Embora tenham trabalhado juntos na constituição da ALA, agora estavam em conflito de ideias, direção e liderança, na área.

Sendo autor prolífico, ele efetuou mudanças na política e metodologia editorial, embora as mudanças não fossem um bom presságio para todos. Entre os seus artigos (Pernicious Reading in our Public Libraries), aborda o tema da censura enfrentada pelas bibliotecas, na aquisição de livros de ficção. Ele escreveu:

Primeiro há livros desagradáveis, que todos excluiriam, da mesma forma que fariam restrições conscientes para a venda de uísque com venenos e drogas; depois há os livros duvidosos, que a exemplo desde o brandy à cerveja lager, há toda uma variedade de opiniões; e, finalmente, há os inobserváveis romances, que – como natas, leite, e leite e água – o produtor pode fornecer sem qualquer escrúpulo de consciência. (Ele pode ter dúvidas sobre o último, mas acreditamos que ele encontrará estômagos infantis que não podem suportar nada mais forte). (Kushiyama, online, tradução nossa)

Em seu trabalho enfrentou problemas. Os mantenedores do Boston Athenaeum e a aristocracia da cidade resistem às mudanças na biblioteca. Cutter integrou a estrutura aos modernos padrões da catalogação, circulação, aquisição, e ao uso da coleção pelo público de todas as idades. Ele introduziu práticas ao trabalho bibliotecário, como o cartão de empréstimo incluso em envelope (bolso) colado no interior da contracapa do livro. Estabeleceu empréstimo entre bibliotecas e de entrega domiciliar para o usuário. No entanto, a Administração não apoiou as propostas. Diante das recusas, ele se demite. Muda para a pequena Biblioteca Forbes, onde sente que poderia fazer uma diferença mais positiva. Também realiza frequentes viagens à França com sua esposa, Sarah Fayerweather Appleton, a fim de escapar da cena bibliotecária na América.

Sobre a sua esposa, ele a conheceu no Harvard College. Ela foi uma das primeiras assistentes femininas em seu departamento de catalogação. Casaram-se em 21 de maio de 1863, tendo três filhos. Em sua casa residiam, além da sua família, duas das tias que o criaram, mais uma das irmãs de sua mulher e o marido desta. Era uma situação difícil para se manter com o salário de bibliotecário. Para complementar renda, Cutter assumiu atividades extras de catalogação e de revisão de textos acadêmicos. Também enfrentou grandes perdas pessoais, como a morte de dois de seus três filhos.

Antes de iniciar na Forbes, ele planeja outra viagem pela Europa. Porém, contata o novo empregador, oferecendo-se para comprar material bibliográfico (livros, fotografias, partituras e obras de arte) para formar uma coleção. Os curadores lhe concedem cerca de $50 mil dólares. Quando retorna um ano depois, assume efetivamente o cargo de bibliotecário. Com uma equipe de cinco jovens assistentes, alguns estudantes do ensino médio e do Smith College, além de um zelador. Dá início a tarefa de desembalar, separar, tratar e organizar nas estantes os mais de três mil livros comprados, e outros itens.

Suas propostas para a Forbes incluíam um novo modelo de biblioteca pública, no qual qualquer pessoa poderia emprestar todo e qualquer material, na quantidade e tempo desejado. Não deveria haver regras restritivas à circulação. As crianças eram bem-vindas. Outra mudança adotada foi o acesso aberto à coleção, permitindo aos usuários folhear livremente os materiais.

O tempo que passou na Instituição, ele experimentou novas ideias e práticas. Estabeleceu ramais e instituiu um sistema de bibliotecas itinerante (precursor do serviço móvel de livros), para atender pequenas cidades no oeste de Massachusetts. Em 1902, constituiu o Departamento de Artes e Música. E criou um setor em separado para atividades e programas infantis.

Envolveu-se em ações escolares, levando obras de arte da coleção para apresentar aos estudantes. Sua equipe trabalhava em colaboração com os professores primários da cidade, que se utilizavam dos livros para uso em aula. Serviço também prestado aos alunos do Smith College.

Na primavera de 1903, ele sofre uma crise quase fatal de pneumonia. Retorna ao trabalho, naquele verão, mas sofre uma recaída e morre. Sua herança é um legado ainda pulsante nas bibliotecas do mundo todo.

Indicações de leitura:

Cutter, W. P. Charles Ammi Cutter. Chicago: American Library Association, 1931.

Kushiyama, G. Charles Ammi Cutter. LIS 610 Historical American Biography. Disponível em: http://www2.hawaii.edu/~wertheim/Charles%20Cutter.pdf

STROMGREN, P. Charles Ammi Cutter: library systematizer extraordinaire. Forbes Library [originalmente publicado no The Daily Hampshire Gazette, 24 Jun. 2004]. Disponível em: https://forbeslibrary.org/info/library-history/charles-ammi-cutter/


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.