AO PÉ DA ESTANTE… EM VENEZA
A autora hoje escolhida, professora e escritora, nasceu nos Estados Unidos e, após cirandar pelo mundo, fixou-se em Veneza em 1981. Seu nome: Donna Leon. Escreveu 24 policiais, dos quais apenas oito foram traduzidos para o português e lançados ao longo da década de 1990. Neles, os crimes são desvendados por um detetive sui generis,: o Commissario Guido Brunetti.
Brunetti torna-se especial por se tratar de homem elegante mas absolutamente comum, muito bem casado com uma professora universitária de família veneziana nobre; eles têm dois filhos, um menino e uma menina, que vão crescendo ao longo das tramas e vivendo situações próprias à idade. O Comissário é educado e possui um invejável jogo de cintura para lidar com seu chefe Patta, entre outras personagens.
Além do suspense, essencial a esse tipo de histórias, a autora não costuma valer-se de cenas de ação com tiroteios, socos, pontapés ou palavrões; nada de sérias brigas familiares, divórcios, filhos problemáticos e tudo mais que os detetives costumam apresentar, à conta da profissão ou dos desejos profundos dos autores, principalmente na ficção noir.
A cidade de Veneza, por sua vez, perde o charme turístico e vira uma cidade comum. Seus habitantes não usam gôndola; o transporte por excelência é o vaporetto, espécie de barco ou barcaça a vapor. Existem o vaporetto ambulância, o vaporetto da polícia, o vaporetto tipo ônibus e assim por diante. Proíbem-se os automóveis e outros veículos motorizados - que alívio! As marés dominam a cidade, com seus cheiros e problemas. Anda-se muito a pé. Os belíssimos casarões, como não poderia deixar de ser, tem suas questões de enchentes, de infiltrações, de rachaduras e o que mais se encontra nas casas antigas.
Talvez por essa visão realista, de quem mora na cidade e registra seu dia-a-dia, ou por alguma peculiar idiossincrasia, Donna Leon não permita a tradução para o italiano. Para sorte nossa, temos os livros em português.
A apresentação de Brunetti se dá em Morte no teatro La Fenice, famosíssimo e verídico palco de óperas, cenário para o assassinato do Maestro Wellauer. Segue-se Morte em terra estrangeira, quando o cadáver de um desconhecido, certamente não veneziano, é encontrado boiando no canal. A trama desenvolve-se para um esquema de corrupção, conluio de máfia e governo.
Em Vestido para morrer, o assassinato de um travesti em terreno baldio acaba por envolver figuras importantes da cidade.
Já em Morte e julgamento, a vítima é um eminente advogado local, Carlo Trevisan, de clientela rica e poderosa. A trama se torna cada vez mais complexa, com outras mortes.
Em seguida, temos Acqua alta, talvez o enredo mais violento vivido por Brunetti, no qual ele desvenda os códigos internos do mercado de antiguidades e também uma complexa rede de negociações espúrias, envolvendo, claro, a máfia.
No Enquanto eles dormiam, durante a costumeira paz de uma primavera em Veneza, Brunetti é sacudido do tédio quando se defronta com os subterrâneos de misteriosa organização religiosa. Para proteger um inocente, ele vai precisar de toda a sua astúcia em lidar com os poderosos - inclusive seu chefe - que apoiam essa organização.
No sétimo volume da série - O fardo da nobreza - o íntegro Brunetti vê-se às voltas com um túmulo macabro e um cadáver humano em total decomposição, sendo um anel valioso a única pista que poderá ajudá-lo a desvendar o mistério que envolve essa morte.
No eletrizante Remédios mortais, para variar, Donna Leon resolve envolver seu detetive em problemas matrimoniais, quando o faz cumprir a sofrida tarefa de inocentar nada menos que sua mulher, Paola Brunetti, presa após um ato de vandalismo. Trata-se de uma história cujos desdobramentos e consequências imprevisíveis podem, inclusive, comprometer a carreira do detetive.
Enfim, Brunetti nos empolga e Veneza se desmistifica ao longo dessas excelentes histórias policiais, em textos que se podem considerar literários, tal a dinâmica da narrativa e a beleza de numerosos trechos.