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AS RAÍZES DOS SUPER-HERÓIS DOS QUADRINHOS: DA MITOLOGIA AOS PULPS

A rigor, é possível encontrar na história humana uma variedade de narrativas centradas em homens ou mulheres excepcionalmente superiores a seus conterrâneos. O campo das lendas, em especial, é particularmente fértil em personagens com características extraordinárias, variando de povo para povo, de cultura para cultura. Em seu livro, The hero with a thousand faces (p. 319), Joseph Campbell afirma que "os criadores de lendas raramente ficaram satisfeitos em encarar os maiores heróis do mundo como meros seres humanos que ultrapassaram os horizontes que limitavam seus camaradas e retornaram com dons que qualquer homem com igual fé e coragem poderia ter encontrado. Ao contrário, a tendência sempre foi a de cercar o herói com poderes extraordinários desde o momento de seu nascimento, ou mesmo o momento de sua concepção. Toda a vida do herói é mostrada como sendo um espetáculo de maravilhas com a grande aventura central como seu ápice".

Os relatos legendários e mesmo os religiosos estão repletos de histórias com protagonistas de poderes sobre-humanos, englobando tanto aqueles com características divinas, como Hércules, Hórus, Thor, Buda e Sansão, como outros pouco acima dos seres humanos comuns, entre os quais se enquadram Ulisses, Siegfried, o rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, os diversos patriarcas ou juizes israelitas, os santos católicos, etc., seres que se destacaram por atributos vários, tanto físicos como intelectuais, que os diferenciaram dos demais.

Em geral, tais relatos atendem à necessidade humana de projetar tendências, aspirações e temores de uma cultura ou sociedade em uma criação simbólica específica, normalmente consubstanciada em um personagem com características humanas. Em suas épocas, estas representações simbólicas foram extensamente disseminadas entre a população, das formas mais variadas, por sacerdotes, menestréis, contadores de histórias, pintores, escultores, poetas e romancistas.

A representação mitológica, no entanto, é estática, propondo uma figura cujo desenvolvimento já está definido e é conhecido a priori, ou seja, atua no sentido de relembrar ao público uma trajetória já por ele conhecida e interiorizada. O paulatino desenvolvimento em direção a uma sociedade industrial exigiu mudanças nesse procedimento mitológico. Desta forma, principalmente a partir dos séculos 18 e 19, configura-se toda uma literatura com aventuras mirabolantes, protagonizadas por personagens carismáticos. Era a famosa literatura de folhetim, que instaurou uma técnica narrativa que jogava com peripécias variadas, inesperadas, rudes ou comoventes, dosadas de forma a manter a curiosidade e a expectativa por parte dos leitores e faze-los retornar à leitura dia após dia. Nela, colaborando para a concretização de um ambiente de consumo massivo do qual as histórias em quadrinhos se beneficiaram enormemente algumas décadas depois, brilharam personagens como Os Três Mosqueteiros, Pimpinela Escarlate, Rocambole, Pardaillan, entre outras.

As histórias em quadrinhos, principalmente as do gênero de aventura, muito devem à tradição de publicação folhetinesca estabelecida nos dois séculos precedentes ao seu aparecimento como forma narrativa de massa, ou seja, no final do século 19, com os suplementos coloridos dos jornais norte-americanos. Assim, uma vez estabelecida a linguagem dos quadrinhos como meio preferencial de entretenimento de grandes parcelas da população norte-americana e mundial, por meio da atuação dos Syndicates, foi quase natural que aos poucos a diversificação de gêneros e veículos ocorresse nos quadrinhos. Das histórias predominantemente humorísticas passou-se às familiares, destas às picarescas, depois às de aventuras em estilo caricatural, para em seguida se caminhar em direção às histórias de aventura em desenho realista, consubstanciadas na década de 30, primeiramente nos jornais norte-americanos e depois no mundo inteiro. Estas últimas retomaram o modelo narrativo dos folhetins, utilizando a cada episódio um gancho para o retorno do leitor no dia seguinte. Em paralelo, também na década de 30, firmam-se as revistas periódicas de quadrinhos - os comic books -, como veículo privilegiado de disseminação dessa linguagem, principalmente a partir do sucesso das revistas New Comics, New Fun Comics, publicadas pela National Allied Publications (que no futuro iria se transformar na DC Comics).

O novo veículo, em seu início, deixava muito a desejar em termos de qualidade de seu conteúdo. De uma maneira geral, as histórias eram fracas, com narrativas singelas, ainda buscando o seu caminho enquanto meio de comunicação de massa. Era ainda um momento de definição, a linguagem dos quadrinhos ainda engatinhava no novo veículo, buscando seus próprios caminhos. Para isso, voltou-se para os meios e linguagens de comunicação de massa então existentes, nelas buscando respostas para suas necessidades narratológicas.

De todas as influências buscadas pela então nascente indústria de revistas de histórias em quadrinhos, talvez a literatura pulp tenha sido a que mais de perto influenciou o aparecimento dos super-heróis. Esse tipo de literatura era caracterizado por histórias de ação e ritmo intensos, geralmente com temáticas policiais, suspense, horror ou espionagem; era veiculado em revistas ou livros de papel ordinário, em preços bastante módicos; o sucesso de um personagem fazia com que este retornasse em outras histórias, criando uma série de aventuras que prosseguia durante anos, cativando e criando um grupo fiel de leitores.

Com o passar do tempo, uma mesma série ou personagem podia ter vários autores; da mesma forma, um autor podia ser responsável por várias séries, seja com um único nome ou pseudônimo ou utilizando vários ao mesmo tempo. Estas histórias eram muitas vezes publicadas em revistas de grande apelo popular, produzidas em milhares de exemplares e extensamente disseminadas pela população norte-americana, como Argosy, Terror Tales, Detective Action Stories, Black Mask, Wonder Stories, Amazing Stories e Weird Tales. Estava nas personagens dessa literatura, com bastante probabilidade, a gênese dos super-heróis dos quadrinhos, entre eles se destacando The Shadow, Doc Savage e The Spider, entre outros, todos eles possuidores de identidades secretas, nomes de batalha e poderes especiais (assim como esconderijos secretos e inimigos extravagantes).

A influência dessas publicações chegava às revistas por três caminhos diferentes: muitos roteiristas de quadrinhos eram também escritores dessas histórias de aventuras e viam no novo meio de publicação uma forma de ampliar os seus ganhos; muitas editoras de revistas em quadrinhos começaram sua atividade pela publicação de pulps; e, por último, uma boa parte dos autores de histórias em quadrinhos eram também contumazes leitores de pulps. Como se vê, uma coisa levava quase que naturalmente à outra.

É relativamente fácil, assim, defender que, nos idos da década de 30 do século passado, existia um ambiente propício para o aparecimento dos super-heróis nas histórias em quadrinhos, consubstanciado por um veículo apropriado (a revista de histórias em quadrinhos ou comic book), formas narrativas que lhe forneciam modelos de histórias (as novelas radiofônicas, os seriados cinematográficos e a literatura pulp) e, finalmente e mais importante, um público ávido por viver experiências emocionais ligadas a locais, pessoas e ação a que normalmente não iriam ter acesso. Assim, eles surgiram no final da década de 1930, liderados por um personagem extraterreno mais forte que uma locomotiva...


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.