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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS III: OS QUADRINHOS DE ANIMAIS FALANTES

As chamadas animal strips, ou seja, tiras de quadrinhos que têm como protagonistas animais falantes (ou antropomorfizados), são descendentes diretas das fábulas e histórias infantis cultivadas durante séculos pelas mais diferentes civilizações. Por meio dos animais que falam e se comportam como pessoas normais, os diversos autores buscaram representar sentimentos e motivações humanos e torná-los mais assimiláveis aos leitores, num tipo de atividade que normalmente tinha evidentes funções didáticas, educacionais e até mesmo doutrinárias. De uma certa forma, os animais das fábulas atuavam como um espelho de sua sociedade, uma espécie de caricatura dos seres humanos, tendo exagerados seus defeitos e qualidades, de forma a acentuar determinado ponto ou objetivo específico que se desejava firmar na opinião dos leitores. Assim, o lobo que devora o carneiro que não havia sujado a água que ele bebia, justificando o ato como uma represália por um irmão, primo ou pai do pobre animal certamente tê-lo feito anteriormente, representa o autoritarismo dos poderosos que forjam as próprias razões para seus atos, passando uma mensagem tanto de rebeldia como de imobilidade à respeito das relações sociais dominantes (a fábula também pode ser interpretada como defendendo o ponto de vista de que os poderosos sempre têm razão e nada há a fazer a respeito disso...). Nos quadrinhos, embora a finalidade doutrinária não seja o motor principal, a sistemática de caracterização dos animais falantes funciona mais ou menos da mesma forma que nas fábulas.

As histórias em quadrinhos com animais falantes surgem logo no início da massificação do meio, com as aventuras dos Little Bears and Tigers (1896), nas quais James Swinnerton, como o próprio título da história elucida, narrava as peripécias de pequenos ursos e tigres, que acompanhavam algumas crianças em seus divertimentos. Criados para promover uma exposição na cidade de São Francisco, estes personagens se tornaram tão populares que acabaram, de uma certa forma, possibilitando o aparecimento, em anos imediatamente posteriores, de vários outros personagens animais, uma tendência que apenas se intensificou na primeira metade do século 20.

Um indicativo da popularidade dos também chamados funny animals é que eles provavelmente abrilhantaram um maior número de revistas de histórias em quadrinhos que qualquer outro gênero, à exceção dos super-heróis. Essas revistas abrangeram todos os tipos de representantes da fauna, desde patos multimilionários, porcos com problemas de gagueira e gatos ardilosos a ratos superpoderosos ou cachorros mosqueteiros, com uma enorme variação de temáticas e qualidade artística. Muitas vezes, essas revistas foram produzidas em sistema industrial, com autores trabalhando em equipe e artistas realizando os desenhos de forma compartilhada e segmentada.

Nem todas as histórias em quadrinhos com personagens animais, no entanto, caracterizam-se como obras de produção massificada. Várias delas foram resultado de um trabalho intelectual ímpar, que resultaram em uma obra digna de destaque. Nesse sentido, existe um consenso entre a maioria dos estudiosos dos quadrinhos de que a maior figura das animal strips, para não dizer das histórias em quadrinhos como um todo, é a genial criação do norte-americano George Herriman em 1910, envolvendo um triângulo amoroso virado às avessas, em que uma gata é apaixonada por um rato, enquanto é, ao mesmo tempo, adorada por um cachorro. Em Krazy Kat, como retribuição a seu amor, a gata recebe apenas tijoladas que o rato sente prazer em atirar-lhe na cabeça; ela, por outro lado, interpreta essas agressões como veladas declarações de amor e a cada tijolo recebido mais apaixonada se torna; por outro lado, ela nem se dá conta das atenções do cachorro e nem mesmo nota que este age de forma autoritária em relação ao rato, vingativamente colocando-o na cadeia a cada vez que este acerta um tijolo na cabeça da gata (pois ele, Offissa Pupp, era, literalmente, um cão policial, com uniforme e tudo...).

Em grande parte, a popularidade dos quadrinhos protagonizados por animais falantes talvez se deva à sua ligação muito freqüente com outras mídias. As animal strips constituem, talvez, o gênero dos quadrinhos que mais bebeu na fonte do cinema de animação, ao mesmo tempo em que forneceu a este último preciosos elementos para dezenas de bem sucedidas produções. Diretamente das telas cinematográficas veio para os quadrinhos, em 1923, o impagável Felix the Cat, criado em 1916 por Otto Messmer para os estúdios de Pat Sullivan. Ao faze-lo, trouxe consigo, tanto para as tiras diárias como para a página dominical, os mesmos recursos metalingüísticos que o consagraram no cinema. Também do cinema vieram os personagens Disney, liderados pelo camundongo Mickey, em 1930, ao qual se seguiu, em 1934, o Pato Donald (já outro personagem Disney, o nosso popular Zé Carioca, nos Estados Unidos conhecido como Joe Carioca, fez o caminho inverso: foi criado nos quadrinhos em 1942 e em 1943 passou às telas de cinema, no filme Alô, Amigos!, mas retornando posteriormente aos quadrinhos, onde está até hoje...). A partir deles, dezenas de outros animais fariam, então, a passagem dos desenhos animados para os quadrinhos e vice-versa, como o famoso Pica-Pau (Woody Woodpecker), e seu concorrente não menos afamado, o Pernalonga (Bugs Bunny), bem como a dupla de eternos inimigos mais conhecida do cinema e da televisão, o gato Tom e o camundongo Jerry.

Mas nem só para o público infantil viveram as animal strips. Ao público adulto foram direcionadas, por exemplo, as politicamente engajadas aventuras de Pogo, criado por Walt Kelly em 1943, atingindo grande popularidade (tanto que, nas campanhas presidenciais de 1952, 1956 e 1968 foram fabricados buttons com o slogan "I vote for Pogo"...). Também ao público adulto, embora utilizando-se de outro circuito de distribuição, o das revistas alternativas, foi direcionado Fritz the Cat, o libertino animal antropormorfizado criado por Robert Crumb; tratava-se de um gato beberrão, viciado em drogas e mulherengo (ou deveríamos dizer gatarengo?) que ao final de uma de suas aventuras é assassinado por uma de suas amantes. No entanto, a animal strip direcionada ao público adulto a ter um conteúdo mais bombástico é certamente a premiadíssima Maus, criação de Art Spiegelman, que mostra os horrores do período nazista pelos olhos e vozes de bichos falantes, personificando (ou animalizando?) cada povo como um animal diferente: os judeus são ratos; os alemães, gatos; os poloneses, porcos; os ingleses, buldogues, etc.; nessa história, Spiegelman apresenta a biografia de seus pais, que foram prisioneiros em um campo de concentração nazista, discutindo as diversas implicações da guerra para os povos envolvidos. Maus recebeu o prêmio Pulitzer e é considerada uma obra-prima do gênero, sendo cultuado por leitores de todos os países como um exemplo prático da viabilidade da utilização da linguagem dos quadrinhos para a abordagem de temas mais sérios.

Histórias em quadrinhos de todos os países enveredaram pelas trilhas das animal strips, como Fix und Fox, na Alemanha; Squeak the Mouse, na Itália; Chimpo's Circus, e Korky the Cat, na Inglaterra, entre outros. No Brasil, especificamente, os exemplos mais destacados são os animais agrupados em torno do elefante Jotalhão (originalmente criado para uma propaganda de televisão): a formiga Rita Najura, sua eterna apaixonada, e os amigos Raposão e Coelho Caolho, de Maurício de Sousa. Merecedores de destaque são também as geniais personagens da série Pererê (1959), de Ziraldo Alves Pinto, que envolve tanto animais característicos da fauna silvestre brasileira como elementos mitológicos e folclóricos.

São provavelmente incontáveis as revistas de histórias em quadrinhos com animais antropomorfizados, de tal forma que uma listagem delas ocuparia grande espaço, se ela buscasse incorporar todos os títulos da linha Disney já publicados no Brasil (além dos já mencionados, também existem ou existiram revistas protagonizadas por Pateta, Margarida, Peninha, etc.) ou da Hanna Barbera (Manda-Chuva, Zé Colméia, Dom Pixote, Maguila Gorila). Essas revistas são facilmente localizáveis e estão disponíveis com muita facilidade, a custo relativamente baixo, para colecionadores e serviços de informação, na medida em que novos títulos de publicações são regularmente lançados no mercado editorial, com maior ou menor sucesso. De uma maneira geral, essas revistas podem ser agradáveis a qualquer tipo de público, mas têm um atrativo especial para as crianças menores, que nelas encontram infindáveis momentos de encantamento e diversão.


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.