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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS II: OS QUADRINHOS PROTAGONIZADOS POR CRIANÇAS

São conhecidas genericamente como kid strips e caracterizam-se por ter como protagonistas personagens infantis. Inicialmente, os protagonistas eram principalmente do sexo masculino, mas isso foi mudando com o tempo e hoje em dia pode-se dizer que tanto meninos como meninas são colocados à frente dessas histórias em quadrinhos, sem qualquer tipo de favoritismo.

Elas surgem antes mesmo do início do século 20, sendo herdeiras diretas de uma longa tradição de narrativas literárias e iconográficas européias, com histórias centradas em personagens infantis. Através delas, como teoriza o pesquisador Javier Coma, ampliam-se "as possibilidades oferecidas pelos protagonistas para transmitir, sob aparências inocentes, propostas sociopolíticas que seriam mais espinhosas se estivessem apoiadas em personagens adultos". Esse gênero de histórias em quadrinhos sempre foi grande sucesso junto ao público, leitor, podendo-se afirmar que jamais perdeu o seu atrativo.

Embora os diversos painéis humorísticos estrelados pelo Yellow Kid já apresentassem um protagonista infantil, na realidade foi a partir de The Katzenjammer Kids (Os sobrinhos do Capitão) que os quadrinhos começaram a investir maciçamente em crianças como protagonistas de suas histórias. Para fazer isso, elas foram buscar inspiração, tanto em termos gráficos como temáticos, em duas personagens criadas, no continente europeu, pelo artista germânico Wilhelm Busch, Max und Moritz (no Brasil, conhecidos como Juca e Chico, em tradução do poeta Olavo Bilac).

No caso, não se tratou exatamente de uma cópia ou mesmo de plágio, mas, sim, de uma espécie de transcrição, para a nova e recém inaugurada linguagem dos quadrinhos, de um modelo de histórias infantis - de fundo moralista e de um humor cáustico -, que havia alcançado muito sucesso entre a crianças e pais do Velho Mundo. Nem tudo é semelhança, no entanto, na transposição literal para o ambiente norte-americano dos dois famosos e terríveis personagens cantados em versos e imagens por Busch, algumas décadas antes, nas frias paisagens alemãs. Surgidos no Novo Mundo pela inventividade de Rudolf Dirks, um imigrante alemão, os Katzenjammer não abraçaram totalmente o final moralista que caracterizava muitas das criações de Busch, mas assumiram o ponto de vista infantil como o predominante na maioria dos embates com os adultos. Assim, ao mesmo tempo em que divertiam e possibilitavam válvulas de escape ao ambiente opressor de uma sociedade até então desconhecida para os novos habitantes, representavam também uma espécie de compensação às minorias étnicas frente à superioridade econômica dos norte-americanos: nas primeiras histórias de Dirks, pode-se dizer que os meninos são os imigrantes, enquanto os adultos da série ocupam o lugar dos povos locais, que sobre eles predominam.

Iniciada em dezembro de 1897, no suplemento dominical do Morning Journal, de William Randolph Hearst, a série destacou-se rapidamente pelo freqüente uso dos balões como o instrumento privilegiado para representação dos diálogos entre os personagens. Ela constituiu, talvez, a primeira produção quadrinhística a utilizá-los de forma regular. Ao mesmo tempo, a linguagem utilizada pelos personagens para se comunicarem entre si era representada como um inglês com forte sotaque germânico, reproduzindo a forma de falar de seus potenciais leitores, os membros das comunidades imigrantes.

De confecção singela, a série apresenta dois garotos gêmeos, Hans e Fritz, que infernizam a vida de sua mãe e de vários outros adultos com quem convivem. Entre estes, destacam-se duas personagens: um homem volumoso com uniforme da marinha mercante, na série referido sempre apenas como Der Captain, e um minúsculo velho de longas barbas e largo chapéu, Der Inspector. Simbolicamente, ambos poderiam ser vistos como os representantes, respectivamente, da ordem legal (o uniforme do Capitão) e da escola (o Inspetor de Alunos). Outro elemento de especial predileção dos meninos para vítima de suas artimanhas é um garoto da mesma idade, Percival, de comportamento diametralmente oposto ao dos gêmeos, ou seja, um exemplar respeitador das orientações dos mais velhos (que, por sua vez, representaria o conformismo às regras sociais, merecendo, por isso, ser totalmente execrado...).

De uma certa forma, os Katzenjammer constituem um modelo de kid strips que busca colocar as crianças como contestadoras da ordem estabelecida pelos adultos e funciona de forma catártica para os leitores, na medida em que lhes possibilita uma válvula de escape para suas inquietações e repressões. Este modelo foi reproduzido em dezenas de outras personagens dos quadrinhos, como no Buster Brown (1905), de Richard Felton Outcault, ou no Dennis The Menace (1951), produção inglesa de David Law.

Esse modelo, no entanto, não é o único existente nos quadrinhos, embora tenha neles encontrado uma grande variedade de adeptos e representantes. Em essência, as personagens desse modelo de histórias com protagonistas infantis diferem de muitos outros garotos dos quadrinhos, que, embora tragam também aos adultos uma grande variedade de aborrecimentos, parecem fazê-lo muito mais de maneira inadvertida, como verdadeiros anjos travessos, desapercebidos das conseqüências de sua inocência bem intencionada. Neste último caso enquadram-se - e a palavra é duplamente apropriada... - o outro Dennis de Menace, aqui conhecido como Pimentinha (1951), nascido da pena sempre bem humorada de Hank Ketcham, e também de uma série em quadrinho bem mais próxima dos dias atuais, o genial Calvin (1985), de Bill Watterson.

Outra variedade das kid strips surge nas histórias protagonizadas pela pequena orfã Annie, criada por Harold Gray em 1924, bem como as várias outras orfãs que surgiram nos quadrinhos nesse período, seguindo a trilha criada por Charles Dickens e Hector Malot na literatura (embora, no caso destes, os protagonistas sejam do sexo masculino...). Em outra vertente estão as histórias em quadrinhos com grupos de crianças, como as que giram em torno de Charlie Brown (1950) e suas digressões existencialistas, da hiperativa e feminista Luluzinha (Little Lulu), iniciada em 1945, ou mesmo da brasileira Mônica (1965), numa diversidade de caracterizações quase impossível de relacionar, dada a popularidade que o gênero teve, continua e provavelmente sempre irá ter junto aos leitores de histórias em quadrinhos em todas as partes do mundo, como demonstra a pequena relação abaixo:
Little Nemo in Slumberland, 1904 (Estados Unidos)
Perry Winkle, 1922 (Estados Unidos; famoso, na França como Bicot)
Just Kids, 1923 (Estados Unidos)
Zig et Puce, 1925 (França)
Little Annie Rooney, 1927 (Estados Unidos)
Pinduca (Henry), 1932 (Estados Unidos)
Jo, Zette et Jocko, 1936 (França)
Barnaby, 1942 (Estados Unidos)
Little Iodine, 1949 (Estados Unidos)
Tininha (Little Audrey), 1949 (Estados Unidos)
Brotoeja (Little Dot), 1953 (Estados Unidos)
Bolota (Little Lotta), 1955 (Estados Unidos)
Sugar and Spike, 1956 (Estados Unidos)
Chuchuquinha (Nancy), 1957 (Estados Unidos)
Boule et Bill, 1959 (Bélgica)
Riquinho (Rich Richie), 1960 (Estados Unidos)
Mafalda, 1962 (Argentina)
Matojo, 1965 (Cuba)
Bizu, 1967 (Bélgica)
Cedric, 1987 (Bélgica)
Le Petit Spirou, 1987 (Bélgica)
A Turma da Fofura, 1987 (Brasil)
Os Trapalhões, 1988 (Brasil)
O Menino Maluquinho, 1989 (Brasil)
A Turma do Arrepio, 1989 (Brasil)
Senninha, 1994 (Brasil)
Aninha, 1998 (Brasil)

Quadrinhos sobre crianças proliferaram durante todas as fases de desenvolvimento desse meio de comunicação, sempre com muito boa recepção por parte de seu público leitor. Esse sucesso é até fácil de explicar: normalmente, as crianças dos quadrinhos, embora em sua maioria defendam e fortaleçam o ambiente familiar como espaço apropriado para crescimento e formação de caráter, agem de forma pró-ativa em relação ao meio e às pessoas com quem convivem, funcionando como um catalisador para os anseios e frustrações dos pequenos leitores, muitas vezes contidos por pais, avós ou professores. Nesse sentido, seu efeito catártico é evidente, demonstrando o benefício que sua leitura pode trazer, principalmente para os leitores mais jovens.


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.