O QUE UM LIVRO INFANTIL PODE FAZER COM A GENTE...
Em colaboração com Waneska Cardoso dos Santos
O título da coluna desse mês poderia ser uma pergunta, mas vejam que não tem o ponto de interrogação. No entanto, o relato que aqui vou apresentar parte de um ponto de interrogação, mas o resultado vocês verão que é um ponto de exclamação.
Em um grupo de bibliotecários no WhatsApp, a bibliotecária Waneska pergunta:
- Alguém tem um livro infantil que aborda daltonismo?
Parei para pensar, mas não veio nada na memória.
Com a agilidade de comunicação que o WhatsApp permite a bibliotecária Priscila responde:
- Eu sugiro Um Guri daltônico.
Eita memória que me traiu! Corri na estante e estava lá o meu exemplar comprado em maio de 1988 com autógrafo de Carlos Urbim, publicado pela Editora Tchê!
Carlos Urbim é um gaúcho que foi convidado, por um grupo de alunos que cursavam Biblioteconomia na Universidade Estadual de Londrina, para participar da I Bienal do Livro de Londrina que aconteceu no Museu Histórico da cidade.
Esse livro teve várias edições e com capas diferentes, meu exemplar tem a capa do Canini que eu gosto muito. Se a memória não me falha, ele contou à época que na infância, para não comer a parte branca da melancia, sua família fazia um corte carinhoso no seu pedaço. Vejam na foto:
Empolgada pelo reencontro com esse livro, pelo whatsApp avisei Waneska que, se quisesse, poderia emprestar o livro para ela.
Waneska pegou, planejou e realizou uma ação exemplar que relatamos aqui. Uso a palavra relatamos, pois trago aqui trechos do relatório institucional dela.
Essa atividade foi pensada após a constatação de que havia crianças com daltonismo no Ensino fundamental I do SESI de Londrina, quando surgiu a dúvida de qual seria a melhor forma de acolhê-la.
A ação foi estruturada em três etapas:
Inicialmente a equipe (bibliotecária, professor regente, colaborador da biblioteca e a pedagoga do Fundamental I) leram a obra Um guri daltônico e, posteriormente, passaram a refletir a respeito da seguinte questão: Qual seu olhar para a obra?
Os três educadores apontaram como possibilidades que a obra pode: levar ao “aprendizado de que somos diferentes”; a “um olhar mais sensível a realidade do outro” e a se divertir, por exemplo, no futebol: “pensando em outras formas que o jogo poderia ser realizado para distinguir os dois times.”
No primeiro momento a bibliotecária fez a contação da história e as crianças, interagiam com a contação, tentavam solucionar as dificuldades do Dadau no momento que a contação ia desenrolando; posicionavam fatos da rotina diária em família, em especial, os alunos com Daltonismos, parece que eles queriam contar para os outros como era... Eles estavam bem empolgados e participativos e os outros prestavam atenção nas falas. Alguns relatos foram:
[...] muito legal sou igual o Dadau porque também sou muito esperto.
[...] acho que não ver as cores é difícil e enxergar só preto e branco é estranho, mas cada um pode escolher a cor que quiser para seus desenhos e pronto.
[...] legal o que o Dadau fez, na minha família tenho muitos com daltonismo primo, tio, vô e cada um enxerga de um jeito, meu vô por exemplo só vê preto e branco eu já enxergo bem mais, as vezes me confundo um pouco em uma ou outra cor, mas é mais fácil.
[...] eu gosto de melancia e ele foi bem esperto de fazer os furinhos para não comer a parte branquinha bem ruim.
[...] quando temos dúvidas temos sempre que perguntar por que é assim que aprendemos, o Dadau não precisa ter vergonha em não saber a cor.
[...] esse amigo que tirou sarro do Dadau pelo arco íris é um tonto, cada um pinta as coisas da cor que quer, e outra, né professora, era mais difícil pra ele, vai que ele não tinha um lápis da Faber Castel com o nome escrito.
No segundo momento foi apresentado para os alunos o sistema ColorAdd, criado pelo professor e designer português Miguel Neiva para diminuir as dificuldades dos daltônicos. Trata-se de uma linguagem universal com símbolos gráficos que utiliza as três cores primárias (amarelo, azul e vermelho), além do branco e preto.
As crianças acabaram comparando o criador com o Dadau pela esperteza de criar uma forma de enxergar a cor igual a que o Dadau fez, colocando o pano no braço para o jogo de futebol.
No terceiro momento foi proposta uma atividade prática aos alunos. Eles foram convidados a criar estratégias para solucionar possíveis empecilhos para os daltônicos ao jogar Uno. A proposta foi substituir as cores padrão (vermelha, verde, amarela e azul) das cartas principais e das cartas de comando, como curinga, pular, comprar etc., mas pelo que consta no Relatório eles não se limitaram a isso.
Devido à empolgação e comprometimento dos onze grupos, o prazo de entrega foi ampliado. Valeu a flexibilidade, pois as adaptações das cartas foram em variadas temáticas: monstrinhos, anime, itens preventivos a COVID, frutas, times de futebol, flores, sistema solar, carro... Enfim, esbanjaram criatividade, inovação, capricho e perspicácia.
Os Unos confeccionados ficaram expostos na biblioteca e no dia 18 de abril (Dia Nacional do Livro Infantil) foram anunciados os ganhadores.
1º lugar - Criatividade Pensamento a saúde (usaram: máscara, vírus, seringa de vacina e álcool gel).
2º lugar - Criatividade Anime (usaram: Picachu em seu casulo bola, Dragon ball, Naruto).
3º lugar - Acabamento (usaram a temática dos monstrinhos de biblioteca que sinalizam o que fazer e não fazer com os livros de forma a preservá-los e estarem acessíveis a todos: monstrinho vários braços (escondilivro), monstrinho forte (empilhalivro), dona barata (protetora do livro) e monstrinho tesoura (cortalivro).
Muita alegria ao ver a participação tão ativa dos alunos, isso me fez lembrar outro livro do Carlos Urbim que é – Uma graça de traça que na minha estante também está com autógrafo e um papel corroído que o autor colou quando esteve em Londrina. Só ficamos triste quando, por causa dessa atividade, descobrimos que Carlos Urbim não está mais entre nós. Faleceu em 2015.
Agradeço a Waneska pela partilha da experiência e a indicação de outro livro sobre a temática, cujo título é Uma cor só minha: o diário de um daltônico de Ricardo Chaves Prado que eu já quero comprar.
Para finalizar volto ao título dessa Coluna: vejam só o que um livro infantil pode fazer com a gente!
Referências:
ABBUD, Bruno. ColorAdd, o idioma das cores. Revista Veja, 21 nov. 2011. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/coloradd-o-idioma-das-cores/
SANTOS, Waneska Cardoso dos. Relatório interno biblioteca Sesi Senai Londrina: projeto recriando estratégias. Londrina: Biblioteca Sesi Senai Londrina, 2022.
URBIM, Carlos. Um guri daltônico. Porto Alegre, Tchê!, [198?].