INFORMAÇÃO, UTOPIAS E DISTOPIAS


  • A coluna propõe reflexões sobre a informação no cotidiano e nas práticas profissionais em meio às utopias e às distopias da contemporaneidade, abordando temas em diálogo com diferentes áreas e linguagens.

ATUAÇÃO PROFISSIONAL E NÃO-USUÁRIO EM UNIDADES DE INFORMAÇÃO

O profissional de informação é aquele que busca mediar ou fornecer informação confiável a membros de uma comunidade. Ele trabalha numa instituição ou unidade de informação. Essa instituição pode ser uma biblioteca, um arquivo, um museu.

Assim como os demais tipos de unidade de informação, a biblioteca atenderá a determinadas necessidades de um público. Para tanto, a biblioteca oferece informações previamente selecionadas e organizadas para serem disponibilizadas. Enfim, a instituição planeja, de antemão, suas ações.

Tais informações a serem oferecidas podem estar contidas em livros, revistas, vídeos, bases de dados na internet, websites, dentre outras fontes. Uma biblioteca, por meio da atuação do profissional da informação, pode permitir o acesso crítico a diferentes formas de manifestações culturais.

Quando pensamos em acesso crítico consideramos que o sujeito que usa e se apropria da informação não será apenas alguém que vai receber o conteúdo oferecido passivamente. O filósofo e educador Paulo Freire chama a atenção para combatermos um tipo de educação ou de fornecimento de informação aos moldes “bancários”. Devemos, assim, deixar de pensar que as pessoas são simples lugares onde a gente “deposita” informação como se estivéssemos depositando dinheiro numa poupança bancária.

Essas pessoas têm história e cultura próprias. Trazem consigo vontades, anseios, preocupações, necessidades, valores. Elas devem ser abordadas como sujeitos históricos que pensam de maneira crítica sobre si e sobre a sua comunidade.

Suponhamos, agora, que estamos falando de uma biblioteca pública. Uma biblioteca pública deve, por princípio, trabalhar no sentido de tentar atender a todos os membros da comunidade a qual pertence. Ela deve respeitar a diversidade dessa comunidade. O bibliotecário deve atuar, portanto, buscando satisfazer demandas e anseios presentes na relação entre informação e comunidade.

Na literatura tradicional da Biblioteconomia e da Ciência da Informação muitas vezes o respeito à diversidade dos membros da comunidade não é atendido, mesmo que os autores e os pesquisadores da área não tenham essa intenção. Se a teoria da área influencia na formação e na atuação do profissional, quando ela não respeita a diversidade da comunidade, ela tende a influenciar, nesse sentido, no trabalho do bibliotecário. A teoria tradicional, no caso, poderá conduzir a um processo de mediação da informação de modo a fazer com que o profissional bibliotecário considere uns e desconsidere outros.

A biblioteca tradicional, quando orientada por aquela teoria, tende a invisibilizar determinadas pessoas. Podemos identificar esse problema quando a área considera apenas o denominado “público” composto por “usuários de informação” efetivos ou reais, que utilizam a biblioteca, seus serviços e as informações que a instituição dispõe; ou “usuários de informação” potenciais, que, diante de determinadas características ou atributos dos sujeitos podem se tornar usuários efetivos.

Quando pensamos em usuário de informação [...] logo projetamos a figura de um indivíduo com um ou mais atributos, um sujeito alfabetizado [...], com hábito ou familiarizado com a leitura ou a fruição de alguma linguagem ou manifestação estética “socialmente” aceita [...], com certa competência informacional em termos educacionais, científicos, técnicos, tecnológicos, dentre outras. Esse perfil ideal do usuário da informação determina, mesmo que não explicitamente, as bases para políticas de ações e serviços oferecidos nos equipamentos informacionais, somadas àquelas voltadas para o desenvolvimento de acervos, a organização, a recuperação, o acesso e a disseminação da informação. (Rabello; Almeida Junior, 2020).

A concepção de usuário de informação recorrente na literatura da Biblioteconomia e da Ciência da Informação representa uma parte da comunidade, mas não a sua totalidade. Os sujeitos esquecidos ou invisibilizados pela biblioteca tradicional receberam o nome de “não-público” por Victor Flusser. Eles são parte do segmento da comunidade que não utiliza a biblioteca, os seus serviços e as informações por ela disponibilizada. Eles, no caso, não o fazem por lhe faltar algum atributo.

Os “atributos” podem ser pensados em termos de desigualdade econômica, quando o não-público são aqueles sujeitos das classes sociais desprivilegiadas. A própria condição de classe dos sujeitos tende a influenciar na orientação do trabalho da biblioteca. O não-público, no caso, tende a não pertencer às classes privilegiadas.

A classe média, a qual os profissionais bibliotecários pertencem, seria um tipo de classe privilegiada. Os valores da classe média tendem a reproduzir aquilo que é considerado “cultura socialmente aceita”. Tais valores compõem o que Pierre Bourdieu chamou de capital cultural. Nesses termos, há a desconsideração da palavra e da cultura do não-público quando pertencentes às classes inferiores. O não-público, no caso, é invisibilizado.

Victor Flusser diferencia a biblioteca tradicional, que desconsidera o não-público, da biblioteca verdadeiramente pública, que considera o público e o não-público. Para o autor:

  • A biblioteca tradicional é um espaço de informação e de herança cultural mediada para um público. Já a biblioteca verdadeiramente pública medeia a informação com a população fomentando uma leitura crítica.
  • Na biblioteca tradicional os livros já estão escritos. Na biblioteca verdadeiramente pública muitos dos livros estão por escrever pelo não-público.
  • A biblioteca tradicional é uma instituição para a comunidade, implantada numa dada realidade e sujeita a rejeição. A biblioteca verdadeiramente pública não é para uma comunidade, mas é da comunidade.
  • Na biblioteca tradicional, o bibliotecário está à disposição para auxiliar o público e realizar a mediação de informação e cultura. Na biblioteca verdadeiramente pública, o bibliotecário, além disso, está integrado e pertence à comunidade onde atua (Flusser, 1980).

Para além da situação da classe social inferior, a própria biblioteca tradicional pode levar pessoas de classes privilegiadas à condição de não-público. Essas barreiras institucionais podem ser motivadas por conta de preconceitos ou da não adequação institucional à diversidade de sujeitos pertencentes à comunidade.

Existem barreiras diretas e/ou indiretas para a constituição do não-público. Dentre várias barreiras, a unidade de informação pode oferecer obstáculos linguísticos ou de linguagem, afastando pessoas analfabetas, ao só disponibilizar o texto escrito [...]. A unidade de informação pode possuir, ainda, barreira arquitetônica, ao não oferecer acessibilidade às pessoas com deficiência, aos idosos. [...] ou quando não permite a entrada de pessoas trans em banheiros e/ou o acesso de pessoas com determinados trajes (Rabello, 2021).

A literatura da área de informação precisa respeitar a diversidade dos membros da comunidade, colocando no horizonte o não-público. Como sabemos, todo conceito teórico reflete um posicionamento político e ético. Como vimos, o conceito estrito de usuário de informação tende a corroborar injustiças sociais, de gênero e étnico-raciais.

A invisibilidade e a desigualdade social estão encobertas sob o véu do conceito de usuário de informação como um “tipo ideal”, um imperativo teórico. Tal conceito sintetiza os atributos materiais, ideológicos e simbólicos das classes alta e média. Nele quase não há lugar para relações ou conflitos de classe. Nesses termos, a ralé estrutural como não-público, sem dispor de tais atributos, praticamente inexiste ou, sequer, é colocada no horizonte (Rabello; Almeida Junior, 2020, p. 20).

Podemos dizer que se a teoria da área influencia na formação e na atuação do profissional, o respeito à diversidade da comunidade se faz urgente. Com esse respeito, a literatura da área passará a influenciar o trabalho do profissional de informação na condição de um agente multiplicador.

Como alternativa, não apenas a chamada Biblioteconomia social ou a Ciência da Informação crítica precisam considerar o público e o não-público. Outras áreas, que também trabalham com a mediação da informação e da cultura – como é o caso, por exemplo, da Arquivologia e da Museologia –, precisam se atentar para essa abertura, algo que já vem sendo trabalhado, por exemplo, pela perspectiva da Museologia Social.

Um exemplo pode ser pensado com a realização de estudos de “informação e comunidade” e de “usuários e não-usuários” de informação. Com isso, os pesquisadores e os profissionais poderão atender a comunidade em sua diversidade e não apenas a parcela privilegiada que, comumente, é composta por usuários efetivos ou potenciais.

Enfim, esperamos que as reflexões trazidas aqui possam ajudar a pensar sobre a formação e a atuação dos profissionais de informação, para que possam atuar orientados por valores mais democráticos e solidários.

Nota

* Adaptação do texto que serviu de base para intervenção na Semana Universitária da UnB, 27 de setembro a 1o de outubro de 2021, que homenageia “100 anos de Paulo Freire”.

Referências

FLUSSER, V. Uma biblioteca verdadeiramente pública. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte, v.9, n.2, p. 131-138, set. 1980.

RABELLO, R.; ALMEIDA JUNIOR, O. F. Usuário de informação e ralé estrutural como não-público: reflexões sobre desigualdade e invisibilidade social em unidades de informação. Informação & Sociedade: Estudos, v. 30, n. 4, p. 1-24, 2020.

RABELLO, R. Práticas informacionais, usuário e ralé estrutural como não-público: praxiologias restritiva ou receptiva. In: TANUS, G.; ROCHA, J.; BERTI, C. Práticas Informacionais em diálogo com as Ciências Sociais e Humanas. Florianópolis: Nyota, 2021. No prelo.

SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.

 

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RODRIGO RABELLO

Professor da UnB. Formado em Biblioteconomia e doutor em Ciência da Informação pela UNESP, com pós-doutorados na mesma área pelo IBICT e pela UnB. Publicou recentemente, em co-organização com a Profa. Dra. Maria Nélida González de Gómez, o livro “Informação: agentes e intermediação” (http://livroaberto.ibict.br/handle/123456789/1068), coletânea editada pelo IBICT e que conta com a colaboração de autores brasileiros e espanhóis.