INFORMAÇÃO, UTOPIAS E DISTOPIAS


  • A coluna propõe reflexões sobre a informação no cotidiano e nas práticas profissionais em meio às utopias e às distopias da contemporaneidade, abordando temas em diálogo com diferentes áreas e linguagens.

“USURÁRIOS” DE INFORMAÇÃO: NOTAS QUASE FICCIONAIS

No conto fantástico “A dócil”, de 1876, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) apresenta os delírios e as reflexões de um narrador numa situação inusitada. Ante a sua esposa – que acabara de se suicidar –, ele faz uma genealogia dos seus atos e dos possíveis motivos da morte prematura, falando para si e para um público fantasioso – mas que o julga, para o seu desespero.

O narrador é um usurário, aquele que empresta dinheiro com usura, um agiota; no caso do conto, alguém que trabalha numa caixa de penhores. Ele ganha a vida se aproveitando dos momentos de fragilidade das pessoas. Ao penhorar os objetos, subestima primeiro o seu valor, para, posteriormente, supervalorizá-lo com juros, dificultando a retomada do bem pelo proprietário.

Sua vida teve uma reviravolta quando uma adolescente órfã e explorada por familiares passou a recorrer aos seus serviços e despertou no narrador uma atenção especial. Para além de uma situação sádica – no caso, relacionada ao poder de se praticar a usura –, o penhorista, encantado com a beleza da jovem, passou a estabelecer um jogo de dominação, até que esta sucumbisse ao seu pedido de casamento.

O jogo de poder continuou durante a vida conjugal. A autoculpabilização pelos fracassos na vida, o ressentimento e a posição de vítima do narrador (algo como: “o mundo está contra mim e, portanto, eu me vingo dele!”) são motes para a justificativa dos seus sórdidos atos. O silêncio e a indiferença à sua esposa são alguns dos recursos empregados naquilo que chamaríamos de assédio.

No conto, o penhorista tem o poder financeiro de decidir se emprestará o dinheiro para aquele que necessita. Esse poder também é simbólico; o histórico temor social à figura do usurário atesta tal poder. Ele tem ainda na autoculpabilização e na vitimização a justificativa para cometer violência simbólica. Nela, dentre outros recursos, o silêncio e a indiferença se tornam meio para a subjugação do outro.

Nesse sentido, pergunta-se: A situação narrada no conto e a figura do usurário podem ser promissoras para reflexões acerca da atuação profissional? Especificamente, tal figura pode ser prolífica para questionamentos críticos acerca da atuação de bibliotecários e profissionais de informação? Noutras palavras, permitiria caminhos fecundos para a realização de estudos de “usurários” de informação?

Como se sabe, quem detém informação detém poder. Os sujeitos utilizam e se apropriam da informação para a produção de conhecimento. Expressões contemporâneas empregadas, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, como sociedades “da informação” ou “do conhecimento”, podem causar certo estranhamento. Isso porque informação e conhecimento constituem algo característico das sociedades humanas.

Ainda assim, sujeitos diretamente implicados na produção, bem como nos meios para coleta, seleção, processamento, disseminação, acesso e recuperação da informação têm o seu poder redimensionado nesse recente cenário. Não obstante, questões antigas se somam às atuais. É possível refletir, por exemplo, sobre questões históricas que tocam a atuação de profissionais em bibliotecas.

A história das bibliotecas – também expressa em obras ficcionais – exemplifica o poder daqueles que se apresentavam como guardiões do conhecimento, num paradigma da posse e/ou da guarda.  Nessa direção e considerando o contexto medieval, um exemplo recorrente leva ao romance O nome da rosa, de autoria de Umberto Eco, publicado em 1980, com adaptação para o cinema em 1986, sob a direção de Jean-Jacques Annaud. No cenário narrado, o silêncio era uma virtude – para a não contestação do poder vigente – e o riso era um ato pecaminoso.

O poder do penhorista de Dostoiévski pode ser comparado ao da misteriosa personagem de Eco, um bibliotecário guardião de obras apócrifas, ou seja, não reconhecidas pela Igreja Católica. O guardião possuía informações as quais, para aqueles que não as detinha, poderiam representar uma sentença de morte. Esse é o caso do livro que leva ao pecado do riso – atribuído ficcionalmente a Aristóteles – e que traz a chave para as mortes ocorridas no mosteiro. Naquele romance coube ao frade franciscano Baskerville e ao seu ajudante desvendarem o mistério.

Já o paradigma do acesso, na Idade Moderna, encontra referência, de um lado, nas bibliotecas públicas – quando estas passaram a permitir, por exemplo, no período pós-Revolução Industrial, o acesso de trabalhadores a materiais bibliográficos – e, de outro lado, nas instituições especializadas no cientificismo dos oitocentos, algo que culminou, por exemplo, no movimento bibliográfico.

Nos paradigmas da posse/guarda e do acesso pode ser observado o poder do profissional responsável por intermediar recursos bibliográficos. Tais paradigmas ainda hoje representam uma concepção tradicional de bibliotecas. Em analogia, se o penhorista decide a quem emprestar o dinheiro, o bibliotecário decidirá quem terá acesso ao conhecimento. Se aquele acumula poder econômico e simbólico em tais escolhas, este o faz, simbolicamente, ao saber que detém a chave que permite o acesso ao conhecimento. Ambos, cada qual a sua maneira, definem destinos.

O poder da posse e da guarda, bem como o poder do acesso a recursos informacionais leva a uma reflexão ética sobre a figura dos profissionais “usurários” de informação. Assim como o penhorista do conto “A dócil” define se aceitará o objeto, qual o seu preço e qual o juro incidente, os profissionais de informação definem qual será o público, isto é, quem serão os usuários de informação efetivos e potenciais. Em ambas as escolhas, consideram-se ou desconsideram-se sujeitos, guardam-se ou compartilham-se recursos materiais e simbólicos.

Eis aqui uma observação a ser ponderada. O narrador penhorista, no conto de Dostoiévski, aparentemente tinha consciência da violência simbólica por ele exercida; já os profissionais “usurários” de informação nem sempre a tem.

Na ausência de consciência do poder exercido, determinadas teorias formativas podem auxiliar a desviar ou a dificultar a compreensão das consequências práticas. Adicionalmente, não menos importantes são as visões de mundo e/ou de classe social – posicionamentos ético-políticos – amparados, portanto, por determinados saberes. O “usurário” de informação, no exercício de seu poder, silencia uns e concede voz a outros. Ele próprio – o profissional – pode se silenciar frente a demandas informacionais da comunidade.

O silenciamento e a indiferença, nesse caso, nem sempre são colocados em questão. Conforme observam Rabello e Almeida Junior (2020), o profissional pode ignorar o não-público, constituído por não-usuários. O profissional pode, ainda, içar usuários efetivos ou potenciais, mesmo de classes privilegiadas, à condição de não-usuários. Ele o faz, por exemplo, quando ignora ou promove obstáculos institucionais (tocantes à acessibilidade, aos recursos inadequados etc.) ou quando age segundo preconceitos. Complementarmente, o profissional silencia sujeitos ao desconsiderar aqueles pertencentes a determinadas classes sociais.

As instituições tradicionais, nesse contexto, podem se apresentar como “caixas de penhores”. Nelas criar-se-iam e/ou manter-se-iam facilidades ou barreiras para o público (usuários efetivos ou potenciais) e/ou para o não-público (não-usuários). Neste último caso, pesam barreiras em contextos de desigualdade e de invisibilidade social, relacionadas às condições das classes menos privilegiadas.

Ao se tomar notas “quase ficcionais” para estudos da atuação do profissional na condição de um “usurário” de informação e da biblioteca e das unidades de informação como “caixas de penhores”, reitera-se o convite inicial para reflexões tocantes às Práticas informacionais em meio a utopias e distopias da contemporaneidade”.

À luz da dimensão utópica, o convite se estende para pensar práticas profissionais emancipatórias. Nessa dimensão, os espaços institucionais, segundo suas características, podem se constituir como verdadeiramente públicos para a mediação da informação e da cultura. Tais espaços podem recepcionar, por exemplo, estudos sobre “informação e comunidade” e “usuários e não-usuários”.

Referências

DOSTOIÉVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. 3. ed. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Ed.34, 2011.

ECO, U. O nome da rosa. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero F. de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 2011.

FLUSSER, V. Uma biblioteca verdadeiramente pública. R. Esc. Bibliotecon. UFMG, v. 9, n. 2, p. 131-138, set. 1980. Disponível em: <http://www.brapci.ufpr.br/documento.php?dd0=0000002888&dd1=d93b1>. Acesso em: 23 jul. 2014.

RABELLO, R.; ALMEIDA JUNIOR, O. F. Usuário de informação e ralé estrutural como não-público: reflexões sobre desigualdade e invisibilidade social em unidades de informação. Informação & Sociedade: Estudos, v. 30, p. 1, 2020. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/57350>. Acesso em: 4 abr. 2021.

 

 

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RODRIGO RABELLO

Professor da UnB. Formado em Biblioteconomia e doutor em Ciência da Informação pela UNESP, com pós-doutorados na mesma área pelo IBICT e pela UnB. Publicou recentemente, em co-organização com a Profa. Dra. Maria Nélida González de Gómez, o livro “Informação: agentes e intermediação” (http://livroaberto.ibict.br/handle/123456789/1068), coletânea editada pelo IBICT e que conta com a colaboração de autores brasileiros e espanhóis.