AO PÉ DA ESTANTE... DE BRAÇO DADO COM MAIGRET
Hoje vamos conversar, não tanto a respeito de um escritor nascido na Bélgica, cuja fama, aliás merecida, há muito tempo se consolidou, mas sim, do seu personagem mais marcante. Isto porque, neste caso, a criatura sem dúvida alguma sobrepujou o criador.
O escritor é Georges Simenon (1903-1989), autor de mais de 200 romances e contos, e sua criatura é o comissário parisiense Jules Maigret - apenas Maigret, para os íntimos - protagonista de uma inigualável série de tramas policiais.
Nos 105 casos contados por Simenon em 75 romances e 30 contos policiais, o leitor tem a oportunidade de degustar histórias tristes e até mesmo trágicas, como em certos dramas familiares, mas também algumas pontuadas por humor fino e sutil. Em cada mistério desponta o comissário Maigret, ser humano sensível e discreto, de poucas palavras, perspicaz e dono de um incansável faro psicológico para rebuscar os meandros mais íntimos dos personagens.
A série vem sendo editada há mais de uma década pela L&PM, e alguns títulos também podem ser encontrados em edição da Companhia das Letras. Embora as traduções nem sempre estejam à altura da obra, não chegam a comprometer a proposta literária de Simenon. Há ainda alguns títulos que fazem parte da Colecção Vampiro, portuguesa, muito apreciada pelos amantes de Maigret.
Temos, claro, as nossas tramas preferidas, mas dentre todas pinçamos hoje apenas uma - Maigret se diverte - não só por conter quase todos os ingredientes usados por Simenon, mas também por nos brindar com um toque de humor sutil. Trata-se do único caso de sua carreira em que Maigret, de férias forçadas, vê-se obrigado a acompanhar de longe a atuação de Janvier, seu substituto na Polícia Judiciária de Paris, na resolução de um caso constrangedor de assassinato. Como um bônus, temos ainda a presença quase constante da Sra. Maigret, fato raríssimo em toda a série.
A propósito, é no mínimo instigante constatar que Simenon foi capaz de imaginar uma vida a dois tão terna, calma e harmoniosa, entre Maigret e sua mulher, quando na verdade as relações familiares do autor tenham sido tão difíceis. Talvez, por isso mesmo, ele nunca tenha dado filhos ao seu personagem mais querido.
Vale então conferir. Ali está, em Maigret se diverte, a minuciosa análise psicológica dos personagens principais e secundários. Ali estão a cumplicidade e a ternura discreta entre o comissário e sua mulher. Ali estão a inteligência, a sensibilidade, a ética, a compaixão e a humanidade de Maigret... Pura delícia!