OBRAS RARAS


CATALOGAÇÃO DE LIVROS RAROS - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Acho que concordamos todos que a catalogação de livros raros é um processo caro, aí no Brasil, ou em qualquer canto do mundo. Justificar a importância de se dedicar tanto tempo debruçado sobre um livro velho (daí se ter uma produção/estatística menor no final do mês, se comparada à estatística de livros modernos catalogados), virando páginas com cuidado cirúrgico, vendo até mesmo através da folha a direção das linhas d' água de um papel artesanal, isso só para citar alguns exemplos, não é tarefa fácil. Convencer administradores que o bibliotecário precisa de alguma especialização nessa área é mais difícil do que encontrar armas nucleares no Iraque, pelo visto.

O que torna o processo lento, mais especificamente, é que o livro raro precisa ser dissecado enquanto objecto físico. Precisa ser descrito minuciosamente; cada página precisa ser manuseada, para que se observe erros de impressão ou anotações manuscritas; o estilo de encadernação deve ser registrado, se houver; formato e assinatura (só isso daria um artiguinho, mas o comentário não é uma ameaça) devem ser determinados, e nomes de pessoas, lugares e instituições, quase sempre antigos e pouco conhecidos, precisam de padronização. Especificar o estado físico do exemplar é sempre importante. Sem falar na consulta aos códigos de catalogação. Entre registro, catalogação, classificação, etc, vai-se um bom tempo. E tempo é dinheiro em qualquer lugar.

PS: Existe distinção entre livro raro e livro antigo. Aqui, escolhi usar as palavras indistintamente.

Ok. É caro, leva tempo, e por isso os livros antigos fazem bodas nas bibliotecas sem que ninguém saiba de sua existência.

Errado. Há muitos pontos em comum entre o que se faz aí e o que se faz aqui, mas uma grande diferença talvez seja o compromisso de se colocar os livros à disposição do público quase que imediatamente. Com isso não estou dizendo que aqui tudo funciona perfeitamente; não é isso, mas como venho acompanhando esse assunto desde 87 pelo menos, noto, em várias bibliotecas, que de alguma forma os acervos são passíveis de pesquisa, ainda que precariamente, logo que entram na instituição.

Quando um acervo é doado ou comprado, o bibliotecário precisa logo colocá-lo à disposição, até porque essa demanda existe por parte de quem doou o livro ou a coleção (ou deu dinheiro para a compra) e quer ver o resultado da doação, seja através de exposição, de catálogo impresso, ou qualquer outra forma (e para ser divulgado, o livro está quase sempre já catalogado). E quando se descobre alguma raridade nas estantes de acervo geral que é transferida para o acervo raro, o estardalhaço pode ser ainda maior, pois o bibliotecário quer mostrar a novidade e captar em cima disso.

Quando cheguei à JCB (John Carter Brown Library, onde estou há 5 anos) encontrei o acervo de livros portugueses e brasileiros parcialmente catalogado na base de dados que utilizamos, RLIN, ou Research Libraries Group, Inc. O acervo em espanhol e em outras línguas se encontrava (e em parte ainda se encontra) na mesma situação. As informações básicas estavam lá, em fichas cor de abóbora (argh!), datilografadas, com uma descrição mínima, o suficiente para que se localizasse a obra na estante. Acho que não há fichas manuscritas - o que não seria vergonha nenhuma se fosse a única forma de se localizar o livro. Acervo por catalogar (o famoso backlog) não é "privilégio" da JCB, mas todos os livros podem ser encontrados aqui. O compromisso com o público e com quem dá generosas verbas para aquisição é cumprido.

Há uns dois anos atrás tivemos uma experiência curiosa com relação a esse assunto. Como já foi dito antes, a JCB tem um Conselho que praticamente mantém a biblioteca. As decisões, claro, passam pelos membros, que se reúnem periodicamente e estão sempre a par de todas as atividades. Perguntam, querem saber como tudo funciona mas, claro, não entendem determinadas minúcias da profissão. Nessa época, foram questionados o tempo que levávamos para catalogar um livro e o porquê de não utilizarmos a OCLC, Online Computer Library Center, já que esta é a maior e mais famosa base de dados. Também queriam saber porque o catálogo em fichas não era "congelado", como se diz em inglês.

Como essa coluna já está ficando grandinha, vou parar por aqui e continuar no ano que vem, pois ainda tenho é coisa pra falar.

Não posso terminar sem deixar um abraço a todos, leitores, amigos e colegas de saite (já tem no dicionário?), ateus, cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, e demais, desejando um ótimo fim de ano e um 2004 de paz e muita prosperidade em todos os aspectos. Segue, claro, um abraço especial para Oswaldo, que todos os meses me dá oportunidade de me melhorar como profissional.

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.