OBRAS RARAS


A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO, REVISITANDO – I

Esta é a primeira de uma série curta de colunas sobre o assunto, baseada em artigos publicados, como forma de reunir ideias.

Ao terminar a tese, em 2011, ainda trabalhando no Museu da República, comecei a me voltar para alguns conceitos da área de Museologia no que dizia respeito a patrimônio, na busca de fazer uma ponte com a área de Livros Raros.

Pouco depois, em 2013, escolhi fazer uma visita ao Museu Plantin-Moretus, na Bélgica (como sempre digo: a minha Disney), para conhecer um “santuário” que é patrimônio da humanidade e possui uma biblioteca de acervo raro ímpar, mas não apenas (alguns cômodos e livros foram mantidos como no século XVII, embora tenha se tornado museu somente no XIX). Era o lugar perfeito para me expor, com e sem expectativas, já que o livro raro, por suas características físicas, pode se transformar em peça de museu e ali havia (há) de tudo; ambiente primoroso para reflexões, sem dúvida. Retornei ao museu no dia seguinte ao da primeira visita – o que diz tudo – e ali passei mais horas ainda.

Museus, muitas vezes, são questionados quanto à sua autenticidade, pelo fato de a disposição dos objetos (e mesmo os próprios objetos) não refletir a missão institucional e o tempo retratado com total fidelidade. Isso não ocorre no Plantin: um reflexo dos séculos passados em acervo antigo, impresso e escrito, em móveis e demais objetos de época ainda no mesmo local. É um museu que ultrapassa o espaço de representação e de museu casa histórica.

Remonta ao século XIX a preocupação com a preservação de instituições e acervos, assim como de estudos de nacionalidades. Nos primeiros passos do Brasil nesse sentido, no mesmo século, tivemos a criação de algumas instituições, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que agregou historiadores e demais estudiosos voltados para a formação de uma identidade para o país. Todavia, foi somente no século seguinte que esses estudos se consolidaram.

Nem sempre, como bem registra Tamaso, patrimônio, povo e lugar podem ser agrupados automaticamente. Várias de nossas bibliotecas, por exemplo, possuem acervos patrimoniais que nem de longe podem ser associados ao local ou à história do país – e nem por isso deixam de ter livros considerados como patrimônio, daí a distinção feita entre patrimônio histórico (no caso, o brasileiro) e patrimônio bibliográfico, este abarcando os livros da imprensa artesanal e outros, no geral. Pois é no caso do patrimônio histórico, justamente, que a associação patrimônio-povo-lugar pode ser considerada verdadeira, por ser esse tipo de patrimônio representativo da nossa sociedade.

O livro raro ressignificado como peça de museu, como são os livros da Oficina Plantiniana, encontra eco nas palavras de Thomas Adams, ex-diretor da John Carter Brown Library (JCB). Em 1987, fiz um curso de História do Livro na Columbia University (NYC, USA), onde aprendi e passei a disseminar a sua ideia nos cursos e palestras que oferecia, então, na Fundação Biblioteca Nacional, antes mesmo de sonhar em trabalhar na JCB. Dizia ele:

“Assim como os museus, nós colecionamos os objetos originais a fim de melhor conhecer os seus significados. Talvez nosso lugar devesse ser algo entre bibliotecas, museus e a profissão de História. Compartilhamos algumas características comuns e adicionamos nossa própria convicção da importância de algo que se sustenta por si só, o livro” (ADAMS, 1984, p. 200).

Ele se referia aos livros da JCB – biblioteca de livros raros do período colonial das Américas -, reafirmando a importância da originalidade e da autenticidade que um livro, em sua edição princeps e nas seguintes, traz em sua fisicalidade e conteúdo. Igualmente, está presente a ideia de que o livro antigo perpassa áreas do conhecimento afins, ocupando lugares múltiplos, sem perder a sua identidade. “Conhecer os significados” talvez seja não apenas um ponto de partida (essencial), mas uma via de mão dupla. A ver.

Ao escrever o artigo para o Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (Enancib), ficou a ideia de pensar o patrimônio como um conjunto de bens, cujos valores sociais e culturais são ressignificados a partir de um processo de reconhecimento coletivo, não obrigatoriamente a partir de uma relocação.

Até a próxima!

Outros autores citados na presente coluna encontram-se no artigo:

Livro Raro-Objeto em Museu Casa Histórica: o Caso do Museu Plantin-Moretus. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (ENANCIB), 15, 2014, Belo Horizonte. Anais ... Belo Horizonte: Enancib, 2014. Disponível em: <http://eprints.rclis.org/24104/>. Acesso em 22 mar 2021.

 


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.