OBRAS RARAS


MARGINÁLIA

O livro, na forma como o conhecemos hoje, vem de longa data. A reunião de folhas de papel em cadernos remonta ao século II da nossa era, aproximadamente. Utilizado pelos cristãos (e outras religiões e povos, posteriormente) para assimilação das ideias e ideais então recentes, com o tempo o livro serviu de suporte para que a igreja católica registrasse e reproduzisse textos manuscritos – tarefa vista como penitência por monges escribas, segundo alguns historiadores. Mais tarde, já no século XIII, com as universidades, os textos se tornaram material de estudo (nova função) e, assim, a disseminação do conhecimento por meio de livros aumentou. Com Gutenberg, a quantidade desses livros cresceu exponencialmente e, após a industrialização do papel no século XIX, houve ainda maior aceleração na confecção dos livros (assim como de outros tipos de impresso). Atualmente, mesmo com o livro eletrônico, o mercado do impresso continua crescendo, no Brasil e no mundo, apesar de oscilações pontuais.

 

Como sabemos, os livros vão além de suas palavras impressas. Em especial, quando se trata de livros antigos, consideramos tudo o que foi utilizado para a sua confecção, desde blocos de madeira e placas de cobre até objetos usados por ilustradores, assim como os diversos suportes e tipos de material para escrita e encadernação, que surgiram século após século, com suas técnicas cada vez mais aperfeiçoadas, em busca de aprimorar essa publicação tão cultuada até hoje. Também os livros modernos - menos charmosos, talvez -, mesmo com características não artesanais, existem, como os demais, para além das palavras impressas.

 

Os aspectos assinalados acima estão relacionados ao livro até o momento em que é publicado e se torna um objeto pronto para a leitura, colocado em alguma estante, preferencialmente, de onde será retirado e manuseado. Mas estará, mesmo, completamente pronto? O que mais pode ser acrescentado a esse objeto?

 

Marcas de propriedade, certamente. Selos, carimbos, assinaturas e ex libris são indicações dos caminhos trilhados pelo livro. A procedência de acervos (ou itens pertencentes ao acervo) é assunto cada vez mais estudado. Bibliotecários se voltam para esse aspecto do livro não apenas para identificar antigos proprietários mas, por vezes, para permitir que, um dia, outros livros da mesma procedência possam ser localizados, pois nem sempre um acervo é doado, na íntegra, a uma mesma instituição. Tal estudo permite, por exemplo, que tamanhos e tipos de biblioteca possam ser comparados numa determinada época (entre outras possibilidades de investigação). O levantamento da procedência de acervos é tarefa das mais relevantes e, talvez, pouco executadas em bibliotecas brasileiras.

 

Para além dos acréscimos citados, outra adição também é encontrada em muitos livros de todas as épocas: anotações manuscritas às margens, ou marginália: notas escritas, comentários, correções, explicações, datas, preços, fofocas familiares, riscos e rabiscos, índices manuscritos, ilustrações etc. Essas são marcas que podem acrescentar ao livro informações complementares (ou totalmente irrelevantes), pelo próprio autor ou por outro leitor. No passado, nos primórdios da arte da impressão de livros, podiam aparecer na forma impressa. Mesmo anteriormente, no período medieval, já eram comuns e famosas, com letras ou desenhos. Há muito são encontradas na forma manuscrita e, atualmente, em bits, nos tablets e similares. Quem tiver interesse, pode procurar a marginália medieval no Twitter também; ano passado era assunto nesse ambiente.

 

É, ainda, prática comum que, por muito tempo, desagradou colecionadores e bibliotecários, que viam nos “rabiscos” uma desvalorização do livro. No entanto, em muitos casos, essas anotações são não apenas parte da história da “vida útil” do livro, mas material para estudos dos mais diversos, inclusive sociológicos, do uso das margens, cujos comentários podem, até mesmo, alterar a história. Podem, também, gerar estudos literários, psicológicos e culturais, de pessoas públicas ou ilustres desconhecidos. Encontrar um livro com anotações manuscritas de uma personalidade pode ser encontrar um livro raro. A coluna de maio de 2005, neste InfoHome, relata o caso de um colecionador de primeiras e segundas edições do livro de Copérnico "De revolutionibus orbium coelestium" (1543), considerado um marco da história da ciência. Owen Gingerich, astrônomo em Cambridge, Massachusetts (EUA), publicou “The Book Nobody Read” (2004) sobre a marginália dos livros que coleciona, com estudo sobre como as ideias de Copérnico influenciaram seus contemporâneos.

 

Não foram poucas as personalidades que se utilizaram dessa prática de anotar nas margens para os mais variados fins. O escritor Mark Twain, por exemplo, se tornou conhecido não apenas por seu dom literário, mas por fervorosamente gostar de discutir por escrito, nas margens, com o autor do livro em mãos. O mesmo fazia Charles Darwin. A marginália de Fernando Pessoa é considerada preciosa. Essas notas refletem os pensamentos do leitor e, da mesma forma, características de sua personalidade. Revela a emoção por trás do leitor, a partir do texto original. É uma conversa que se dá entre pessoas da mesma época, amigas ou não, assim como entre pessoas separadas por séculos. Livros com anotações são revestidos de conversa, ornamentados com valor histórico, literário e científico.

 

Borba de Moraes nos conta que Mário de Andrade, ao receber um livro com dedicatória, guardava-o, adquiria um novo e, neste, fazia suas anotações, sem supor que, no futuro, o segundo exemplar serviria de base para estudo de sua personalidade de crítico. Apesar de não concordar com muitas marcações, que desvalorizam o livro, nosso bibliógrafo e bibliófilo Moraes lembra que algumas anotações - aparentemente simples e inexpressivas - podem, ao contrário, revelar a proveniência do impresso mais até do que um ex libris, como é o caso do acervo de Eduardo Prado, no qual nem todos os livros possuíam o selo de identificação, mas sim duas localizações, a lápis, numa das folhas de guarda. A anotação riscada indicava a localização que o livro tinha em sua fazenda; a outra registrava o local do livro na estante do Rio de Janeiro.

 

Na Biblioteconomia de Livros Raros, não podemos nos esquecer de que o registro das marcas de cada exemplar, na catalogação desses livros, permite que seja comprovada a sua proveniência, para devolução em caso de roubo, pois quase sempre são marcas singulares. Dentre essas marcas, nenhuma é tão única quanto uma anotação manuscrita, pois letra, tinta e firmeza de mão dificilmente podem ser reproduzidas fielmente em dois exemplares do mesmo livro ou mesmo apagadas, sem deixar vestígio. Há os que não gostam de marcar livros raros em bibliotecas com carimbo, para não os macular. A esses, desejo sorte com a Delegacia de Repressão a Crimes contra o Patrimônio e órgãos similares, caso haja roubo e seja necessário comprovar a procedência. Catalogação detalhada de livro raro nem sempre é prática corrente.

 

Recentemente, presenciei discussão a respeito do assunto “marginália”, livros e documentos de arquivo, na qual era defendida a transferência de livros com anotações manuscritas para o setor arquivístico, retirando-os da biblioteca. Conceitualmente falando, ainda não compreendo bem as bases que norteiam tais ideias. No geral, a marginália está relacionada ao assunto do impresso. Constitui, com este, um diálogo. Existe, mesmo, a partir do texto, com poucas exceções (exemplo a seguir). Dessa forma, considero não procedente pensar o “manuscrito” do livro (esteja por escrito nas margens ou em folhas soltas dentro do livro – por algum motivo estão ali; ou seja uma ilustração) como documento de arquivo a ponto de retirar o livro da biblioteca. Ao contrário, as anotações manuscritas completam o ciclo da leitura e enriquecem o nobre suporte.

 

Nos primeiros tempos dos livros impressos, quando o elevado preço do papel fazia deste um artigo de luxo, era comum encontrar anotações manuscritas de grande importância que nenhuma relação tinham com o livro. Que me lembre, já vi, em andanças por bibliotecas, em livros antigos, um testamento em folha de guarda e um registro de compra de animais no verso de uma página de rosto. Certamente, não serão os únicos casos e vocês também já devem ter visto. Como disse, os livros estavam em bibliotecas.

 

Mais discussão sobre o assunto é sempre enriquecedor. Seja como for, o estudo de marginália deve ser considerado e incentivado (assim como o de procedência). Afinal, nossos acervos podem guardar grandes e boas surpresas.

 

Até a próxima!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.