PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: ENTIDADES REGISTRADORAS DE BIBLIOTECÁRIOS SERVEM A QUE?

Há que se apreciar coisas peculiares que existem no Brasil atual. Elas tendem a justificar a si mesmas; contém traços componentes da uma determinada cultura europeia transplantada pelos portugueses a partir da invasão do espaço físico geográfico então ocupado por populações construtoras de outras culturas. Essas populações detinham culturas imateriais e materiais consolidadas ou em diferentes estágios de complexidade. A cultura trazida pelos portugueses, continha muitos valores culturais do oriente, percebidos por Gilberto Freyre, ao caracterizar o Brasil como a “China tropical” em parte de sua produção social e antropológica. Em particular, essa cultura portuguesa transposta envolvia matrizes religiosas, militares e morais, determinantes de uma modalidade de ação e organização política e administrativa.

 

No conjunto da herança legada ao Brasil pelos portugueses está uma forma de construção legislativa de fundamentação romana. Uma de suas características é a possibilidade de impor à sociedade legislação que ainda não foi demandada pelos usos e costumes. Fazer prevalecer essa forma de fazer leis e normas é algo que funciona como um instrumental intencionalmente modelador do caráter dos indivíduos e, portanto, esperando que esse se expressaria através de uma conduta tida como desejável aos donos do poder. Donos do poder são pessoas componentes de um segmento da sociedade que por construir e deter instrumentos de posse do meios econômicos e políticos, ocupam os espaços mais centrais de tomada de decisão sobre o funcionamento dos negócios, da justiça, da tributação e coleta de recursos econômicos que decidem extrair das demais camadas e grupos sociais, visando sustentar continuamente o seu lugar na sociedade. Evidentemente, os donos do poder detém uma ideologia que lhes interessa fazer valer. Essa ideologia tende a estar impregnada nas mentes de quem fala pelos donos do poder e pensa que deve falar pelos donos do poder. Pode também ser o discurso destinado à sociedade em forma de legislação central propriamente dita (Leis, decretos) ou de uma legislação periférica (Portarias, resoluções), que se integram reunindo numa cadeia de instrumentalidade os donos do poder e aqueles que confirmam a ordem dada pelo legislado em nome dos donos do poder, contribuindo com sua parcela de envolvimento numa simulação do poder de mandar para confirmar aos donos de poder a submissão e servidão dos membros de um grupo profissional, por exemplo.

 

Esse é o constructo teórico que embasa toda a legislação constituidora dos Conselhos das Profissões em nosso país e confirma parte da herança cultural portuguesa. As profissões regulamentadas no Brasil, que dispõem de um Conselho Profissional próprio, têm com isso, a delegação do Estado para se autocomandarem no desempenho de suas atividades. Elas têm o domínio de duas facetas de poder: A primeira – A categoria profissional expede, como delegada do Estado, mediante um órgão de cadastramento, com a submissão a teste ou não de conhecimento específico pelo requente, uma carteira profissional. Essa carteira configura um passe de “pedágio” com validade determinada e vencimento geralmente anual, renovável a cada ano pelo simples pagamento da anuidade. Há nesse caso, a simples distribuição do poder arrecadatório de tributos do Estado, pelo qual é dada ao grupo profissional a responsabilidade de receber uma taxa anual pela qual é concedida a autorização do exercício da função profissional a uma pessoa no respectivo ano. A segunda faceta de poder – derivada da primeira – é a delegação para fazer a fiscalização do exercício profissional, isto é, ter a posse de instrumento para constatar desvios de conduta e punir todos os indivíduos que estão atuando como profissionais de dada profissão se ter feito no ano em que se dá a aquisição do passe de “pedágio” o respectivo pagamento da anuidade, ou seja, a compra da licença ou alvará para atuação.

 

Essas são as funções dos Órgãos, oficialmente designados como Conselho Profissional. Entretanto, cabe referir que essas funções, que pertencem ao Estado, têm na própria estrutura do Estado um setor específico que delas cuida. Não fosse isso, como ficariam todas as demais atividades, quanto à legalidade de suas práticas? Esse órgão é a Delegacia Regional do Trabalho, que faz parte do Ministério do Trabalho e do Emprego. Ela registra e fiscaliza o exercício profissional. É com isso que vários profissionais de nível superior como Arquivistas, por exemplo, podem se apresentar na categoria de profissionais de nível superior e ocuparem seu espaço com igual legalidade como nos seus respectivos campos farão os bibliotecários ou agrônomos, por exemplo. Então, vê-se que a manutenção de um Conselho Profissional é uma forma de aumentar os custos dos indivíduos no financiamento da presença do Estado em sua profissão. As suas funções, são funções delegadas do Ministério do Trabalho e do Emprego. Assim, a que servem as entidades registradoras de bibliotecários, ou seja, a que servem os Conselhos Regionais de Biblioteconomia? Servem para que se constitua dentro da profissão um núcleo de poder paraestatal, cuja existência faz uma melhor mediação entre os interesses de bibliotecários, os demais interesses sociais e o próprio estado? São perguntas que se pode fazer.

 

Sabe-se que, historicamente, os trabalhadores e demais profissionais fizeram contínuos esforços de organização de grupo. Estabeleceram Guildas, corporações de ofícios, associações, sindicatos, etc. para a sua proteção contra concorrentes desleais, contra o Estado, algumas vezes, e para a regulação interna de conduta de pares. Sabe-se que sempre foram acompanhadas de muito perto pelo Estado, em todas as épocas, para que não houvesse a tentativa dessas entidades de contrapor-se ao Estado, por quaisquer formas. Assim, essas entidades sempre procuraram atuar no sentido de contar com o máximo de poder próprio, autonomia, autoridade política em seu âmbito e liberdade de escolha para a busca do econômico, social e politicamente melhor para os seus membros. Desse ponto de vista, as profissões regulamentadas no Brasil, têm em seus Conselhos profissionais a antítese da ideia que dá existência às entidades de classe. Por serem delegados pelo Estado para cumprir uma função de Estado, eles são o Estado: emitem autorização para o exercício profissional, equivalente a uma carteira de trabalho e evitam que exerçam a atividade aqueles que não adquiriram ou renovaram a respectiva licença.

 

Por servirem ao Estado, aliás, por serem o Estado, os Conselhos não lutarão ou realizarão os benefícios que os profissionais buscam: melhores salários, mais benefícios políticos profissionais, atualização e capacitação profissional, assistência social, benefícios econômicos pela via de acordos com fornecedores de produtos e serviços, etc. Independe de quem esteja nas diretorias desses órgãos, pois eles têm missão, objetivo e funções que são de outra ordem.

 

No fundo da discussão, considerando o quadro político das cinco últimas décadas do Estado brasileiro, os Conselhos das profissões regulamentadas são agentes estatais que criam obstáculos à atuação das profissões no âmbito de políticas sociais, econômicas e morais. Evidentemente, como parte da peculiar cultura brasileira, que integra hoje além da herança portuguesa e nativa, outras fontes que a conformaram nos últimos duzentos anos, vindas com alemães, italianos, poloneses, austríacos, japoneses, etc., há eventuais quebras de postura aqui e ali com alguma subversão dessa ordem.

 

Assim, pode-se afirmar que de forma geral, no caso da profissão de bibliotecário os Conselhos regionais têm sido fator de enfraquecimento das Associações profissionais e tem surgido nos últimos dez anos um forte argumento para isso que é de ordem econômica, associado ao medo individual da punição moral e financeira, pela imposição de multas. Quer isso dizer o seguinte: o custo da anuidade do Conselho é assumido e o pagamento é feito pela maioria, porque se não o fizer o profissional poderá ser punido por exercício irregular da profissão e ter os seus dispêndios aumentados ainda mais. No caso das Associações profissionais, o vínculo a elas e o pagamento de contribuições financeiras é de caráter voluntário. Fazê-lo é equivalente a apostar-se na força de coletivos que, reunindo pessoas com objetivos comuns de luta social, põe em ação a consciência de que isso implica em custos e em voluntariado para o exercício de funções de representação. Mas não poucas vezes, no caso das Associações, surge a síndrome do consumidor. Quer dizer: várias pessoas dizem não se associarem às entidades por não verem serviços, dizem que elas nada fazem. Entretanto, algumas dessas pessoas não se autoestimulam a atuar voluntariamente, dando vigor as entidades, e também ao não financiá-las não apoiam a atuação de colegas que têm essa disposição. Assim, forma-se um círculo vicioso de autodestruição, pois é imprescindível o financiamento de seu coletivo para se dar vida as ações da entidade. Desse modo, o Conselho ao ser um competidor econômico da Associação, vai contribuir para a fraqueza dessa entidade por conta dessa síndrome do consumidor.

 

Finalizando, pode-se concluir que entidades registradoras de bibliotecários são um produto peculiar da estrutura político e administrativa brasileira, fruto da matriz legislativa que conforma o país, e servem para enfraquecer política e financeiramente o movimento associativo. Isso pode independer da vontade das pessoas que atuam nos Conselhos, mas sua gênese foi determinada por esforço dos bibliotecários brasileiros das décadas de 1950 e 1960. Creio que é um tema a ser debatido, sobretudo no escopo da definição do desenvolvimento da profissão de bibliotecário no Brasil.

 

Escrito em Faro (Algarve) – Portugal, em 02 de julho de 2012.


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB