OBRAS RARAS


DE ROUBOS E ROUBOS

Mês passado recebi de um colega da JCB (a biblioteca que deixa saudades em qualquer um) e-mail sobre o roubo de um mapa na Beinecke, a biblioteca de livros raros da Yale University, em New Haven, Connecticut. Com a mensagem, um alerta do FBI datado de 8 de junho de 2005 solicitava que o texto escrito por seu agente fosse publicado na nossa lista eletrônica, a Ex-Libris. O texto pedia que bibliotecários olhassem seus acervos e registros para verificação de possíveis “perdas”.

 

Semanas antes de eu receber o email, o colega recebera telefonema de uma bibliotecária da Beinecke pedindo confirmação sobre a integridade de nossa cópia do mapa conhecido por Thorn. O documento estava no lugar e completo. Verificaram, também, que a pessoa que havia roubado o mapa de Yale visitara a JCB para “comparar cópias”. Vale dizer que o bibliotecário de referência não saiu de perto um só minuto da pessoa em questão, desconfiado não da atividade, comum na área, mas do livreiro um pouco suspeito.

 

Em New Haven tudo começou quando uma bibliotecária encontrou uma lâmina no chão do salão de leitura, de acordo com relato de Kim Martineau, no jornal Hartford Courant, de 9 de julho de 2005. Ela entregou a lâmina à supervisora que, imediatamente, vasculhou a biblioteca e encontrou um homem vendo vários mapas raros. Checaram os registros. Seu nome: E. Forbes Smiley III, 49, livreiro de Manhattan especializado em mapas, e suspeito de roubo de documentos raros em outra biblioteca da mesma Yale.

 

Um segurança correu para uma das câmeras de vídeo a tempo de ver Smiley nervosamente mexendo nos bolsos. Nesse momento, chamou a polícia da universidade. O suspeito saiu da biblioteca e se dirigiu para a loja de presentes da universidade. Em seguida, ao pegar sua pasta no guarda-volume para sair, foi abordado pelo detetive Buonfiglio (que havia observado Smiley por um bom tempo), que perguntou ao já suspeitíssimo se a lâmina era de sua propriedade. Nervoso, disse que sim, e que achava que a tinha deixado cair porque estava resfriado (as bibliotecárias haviam enrolado o instrumento em um lenço de papel, ou seja, ele estava mentindo. Nada como o fator surpresa). Ao pedir para ver o conteúdo de sua pasta, o detetive encontrou sete mapas raros no valor de mais de 700 mil dólares.

 

Retornaram, então, à biblioteca, onde os livros que Smiley havia visto o esperavam abertos sobre a mesa de leitura. Um, sem o mapa, um dos mais raros da história da Nova Inglaterra, desenhado pelo capitão John Smith em 1614, o fundador de Jamestown. Esse documento tinha o retrato do autor que, por si só, valia 50 mil dólares. Após mais algumas perguntas, o livreiro acabou tirando de dentro do bolso o mapa em questão. Smiley foi processado pelo roubo desse e de outros mapas.

 

Os investigadores ainda procuram os donos dos outros mapas.

 

A mesma biblioteca sofrera outro roubo em 2001, tendo como personagem principal, dessa vez, um funcionário (isso é muito comum e mais difícil de se pegar). Estimado em um milhão e meio de dólares, os documentos continham assinaturas de Abraham Lincoln, Benjamin Franklin, Sir Isaac Newton, Thomas Jefferson, e outros.

 

Citado no artigo de Martineau, o livreiro e autor Ken Nebenzahl diz, do alto de sua longa experiência, que há certos bibliomaníacos que roubam pelo prazer de possuir, mas que a grande maioria o faz por dinheiro, mesmo.

 

Agora vamos ao que interessa, de volta à mensagem do FBI citada no início desses parágrafos. O texto do agente Steve Kelleher pedia que as bibliotecas visitadas por Smiley verificassem se o material por ele solicitado ainda se encontrava íntegro. No final, fornecia seu nome, cargo, endereço e telefones para contato.

 

Essa história me remete ao roubo de fotografias raras da Biblioteca Nacional. O material, único, parte do importante projeto Memória do Mundo, da Unesco, desapareceu de armários trancados da Divisão de Iconografia, talvez em maio deste 2005, durante greve dos funcionários por melhores condições de trabalho, aumento salarial depois de 10 ou mais anos,  aquilo que se sabe. Apesar de procurar acompanhar o caso na mídia, não tenho achado nenhuma informação relevante (hoje sei, para não “interferir nas investigações”). Não interferir onde mesmo? Quem são as pessoas responsáveis pelo caso? Quem deve-se procurar, caso alguém saiba de alguma coisa e queira relatar? Por que não tornar pública a investigação, as imagens, os detetives responsáveis, etc.?

 

O caso de Yale é bem diferente do da BN, e os Estados Unidos são bem diferentes do Brasil. Não quero fazer comparações absurdas, mas será que não se pode ao menos saber quem contatar caso haja informação relevante, que ajude na investigação? Quando se deve tornar público o caso para facilitar a investigação, faz-se o oposto. Que medidas está a Biblioteca Nacional podendo tomar numa situação de quase sigilo? Alguém já viu imagens das fotografias roubadas? Como reconhecê-las um dia, quem sabe, em algum lugar desse planeta? Sim, porque um dia elas aparecerão. Quem roubou sabia o que estava roubando. Conhecia bem o assunto. Um dia sempre aparece.

 

Sei que a catalogação do Projeto de Fotografia (Profoto) é da melhor qualidade, e espero que a descrição catalográfica possa um dia ser utilizada como identificação e comprovação de propriedade, assim como espero que a marca de cada fotografia (carimbo, ou outra) ajude uma possível recuperação. Gostaria mesmo de ver as imagens na internet, assim como gostaria de ver as coleções de livros raros do Brasil catalogadas adequadamente, as bibliotecas com segurança e, acima de tudo, gostaria de ver administradores comprometidos com a instituição e com a memória nacional.

 

Como disse ano passado: a história se repete, só mudam os personagens. Quando mudam.

 

Até a próxima!

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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.