OBRAS RARAS


REVISÃO DE TEXTOS NO MUSEU PLANTIN-MORETUS: UM EXEMPLO DO SÉCULO XVI

Em 2013, tive oportunidade de fazer viagem à Bélgica e visitar várias instituições culturais, em especial o Museu Plantin-Moretus, cuja autenticidade (além da riqueza e da importância para a área de livros raros, e outras) é incomum. Para mim, única. A minha Disney.

O francês Christopher Plantin estabeleceu a editora e tipografia Plantiniana em 1555, na cidade de Antuérpia (hoje mais conhecida pelas joias que confecciona e comercializa). A Oficina teve vida útil por mais de 300 anos, graças ao seu fundador e à família Moretus. Em 1876, Edward Moretus vendeu a instituição à cidade, com a condição de que se tornasse um local de memória.

Qualquer pessoa da área do livro é inexoravelmente e para sempre afetada por locais assim, ainda que seja apenas para admirar os livros antigos como objetos de arte, por sua forma física interna e externa e, muitas vezes, somente pela beleza das encadernações. Livros raros, no geral em bibliotecas, podem eventualmente se transformar em peças de museu.

Há, na instituição, biblioteca (o espaço físico e cerca de 30 mil livros), livraria e manuscritos (retratando todo o funcionamento dessa casa comercial) e prensas originais de 1600, aproximadamente. Além disso, há um belíssimo centro de pesquisa e documentação, e também podem ser apreciadas esculturas e obras de arte (como tapetes, pinturas diversas e retratos elaborados pelo grande Rubens).

Por sua riqueza histórica, muito pode ser falado a respeito dessa oficina tipográfica. No momento, e em poucas palavras, me restringirei ao aspecto da revisão de textos – área que conheci na prática, ainda trabalhando na Biblioteca Nacional dos anos 1990 e atuei, novamente, entre 2006 e 2008.

O Plantin-Moretus evidencia como a arte da tipografia, desde o início, criou um mercado que precisava conferir qualidade à grande disseminação de livros que ocorria na Europa quinhentista. De gravadores de tipos (ou puncionistas) a tipógrafos; de ilustradores a revisores, esses profissionais dos séculos XV e XVI inovaram e passaram a entregar à sociedade letrada (então quase inexpressiva, de tão pequena), com maior rapidez, livros que pouco circulavam e, antes de 1450, somente na forma manuscrita. Para isso, os impressos eram impecavelmente revistos, pois não raro o funcionário que organizava os tipos móveis nas prensas cometia erros, de espaçamento, ortográfico ou outro. Na tipografia havia uma sala dedicada à revisão.

Os primeiros revisores contratados por Plantin eram humanistas, mas com o aumento do interesse por obras litúrgicas, padres atuaram como revisores, igualmente. Uma mesa com gavetas para colocação dos originais ficava perto da janela, a fim de que pudessem se beneficiar da claridade necessária. Muitos livros eram escritos em outras línguas; não raro, os revisores também precisavam conhecer latim e grego. Observavam erros de paginação, questões ortográficas, pontuação, abreviaturas e as marcavam com os sinais próprios, utilizando suas penas. As páginas corrigidas a mão eram, então, devolvidas para nova impressão e os erros substituídos pelas letras ou sinais corretos. Havia uma segunda prova, a prova revisada, novamente lida pelo revisor. Caso estivesse tudo certo, o profissional registrava seu “de acordo” no original. Só então o texto era impresso definitivamente. Semelhante ao que vemos atualmente, considerando os cinco séculos de diferença.

O patriarca e mais de 100 funcionários ou contratados (em épocas diferentes) imprimiram uma média de 50 livros por ano nas suas 16 ou mais prensas – estas em número maior do que as de seus concorrentes europeus. O editor foi, reconhecidamente, o mais relevante de seu tempo. Algumas de suas seis filhas trabalharam como revisoras, inclusive na mais conhecida de todas as publicações: a Bíblia Poliglota (1568-1572), em hebraico, grego, latim e caldeu*, com mais de 1.121 cópias (há controvérsias sobre o número de exemplares entre os autores), cada qual composta por oito volumes, tendo envolvido linguistas espanhóis, belgas e franceses. Sabe-se que a filha Madeleine revisou a famosa Bíblia. Sua irmã Martine se casou com Jan I Moretus (jovem aprendiz na oficina e conhecedor de mais de cinco idiomas), os quais garantiram oito gerações de editores e impressores.

Na prestigiada lista organizada pelo Programa Memória do Mundo da Unesco, o primeiro museu a receber a importante chancela foi o Plantin-Moretus, em especial pelos livros de contabilidade (documentação arquivística) preservados quase intactos. Os arquivos da Oficina são valioso recurso informacional para o estudo do comércio de livros na Europa e do consequente desenvolvimento intelectual do continente.

Quase 500 anos depois, o museu permanece com vigor invejável.

* Emanuel Araújo nos informa que Plantin utilizou oito fontes de tipos em grego, latim, hebraico, siríaco e aramaico. O impressor também publicou a primeira tradução em alemão das experiências de Hans Staden em viagens ao Brasil, em 1558.

 

Referências:

Araújo, Emanuel. A Construção do Livro: princípios da técnica de editoração. 2. ed. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital; São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2008.

Gauz, Valeria. Livro-raro objeto em Museu Casa Histórica: o caso do Museu Plantin Moretus, 2014. In Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, Belo Horizonte (MG), 27-31 Oct 2014. [Conference paper]. Disponível em: http://eprints.rclis.org/24104/

Unesco. Memory of the World. Disponível em: http://www.unesco.org/new/en/communication-and-information/memory-of-the-world/register/full-list-of-registered-heritage/registered-heritage-page-1/business-archives-of-the-officina-plantiniana/

Imagens: https://www.museumplantinmoretus.be/en e https://renaissancepolyglot.wordpress.com/2012/09/25/plantin-moretus-museum/

 

 

    

 

 


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.