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DOMINAÇÃO CULTURAL E EDUCAÇÃO

Em 06 de dezembro de 2016 foram divulgados em todo o mundo os resultados do ciclo 2015 das provas internacionais de avaliação de estudantes Pisa (do inglês Programme for International Student Assessment) promovidas e organizadas pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OCDE). Nesta edição, participaram 72 países, oito deles latino-americanos.

No Uruguai, para muitos políticos neoliberais e meios de comunicação, esse dia é uma data muito importante, pois na aceitação de que os sistemas educativos podem ser avaliados por esta prova standard de nível mundial, os discursos apocalípticos sobre educação pública nos próximos três anos se põem em jogo. A difusão das cifras dos resultados obtidos por estudantes de 15 anos nas áreas de leitura, matemática e ciências naturais abalaria a estratégia de ataque permanente a educação pública proveniente das classes dominantes, com sua plêiade de políticos, tecnocratas e grandes meios de comunicação.

É assim que a OCDE - instituição multilateral de caráter econômico - informará aos países latino americanos (tal como o ranking da Fifa) que Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Colômbia, México, Peru, República dominicana e Uruguai se encontram abaixo da média mundial, aparecendo em um mapa mundi pintados de vermelho, assinalando o perigo iminente em que se encontra a América Latina e o Caribe. Então, nos perguntamos: um organismo deste caráter pode determinar a marcha dos sistemas educativos do mundo?

O sistema capitalista em escala global faz parecer natural às sociedades questões que fazem por interesses de reprodução do próprio sistema. O poder cultural e simbólico exercido historicamente assim o determina, parece ser natural que um organismo transnacional dirigido por economistas nos diga o que fazer com nossos sistemas educativos. Mas se corrermos a cortina e tornarmos visível o invisível, poderemos começar a compreender que a dependência cultural é um axioma imposto por determinados interesses de classe, que não é algo inerente ao ser humano, e que a direção cultural não se configura a partir de causas naturais deterministas.

Pierre Bourdieu diz a respeito destes mecanismos de dominação: “Em virtude de nascermos dentro de um mundo social, aceitamos alguns postulados e axiomas, os quais não se questionam nem requerem ser inculcados. Por esta razão, as análises da aceitação dóxica do mundo, que resulta do acordo imediato das estruturas objetivas com as estruturas cognitivas, é o verdadeiro fundamento de uma teoria realista da dominação e da política. De todas as formas de ‘persuasão clandestina’, a mais implacável é a exercida simplesmente pela ordem das coisas”.

Por outro lado, as provas do Pisa (em português, Programa Internacional de Avaliação de Alunos) apresentam os graves problemas das avaliações standard. Pretender que estudantes de 15 anos de todo o mundo devam saber o mesmo constitui uma clara tentativa de homogeneização, uma tentativa de perpetuação de um sistema que põe o planeta às margens de uma crise civilizatória com inadmissíveis registros de desigualdade entre e dentro dos diferentes países. Segundo seus ideólogos, estas provas medirão a “qualidade” dos sistemas educativos. Queremos nos deter neste ponto, pois uma avaliação que não considera os contextos históricos nem territoriais, nem responde aos modelos de desenvolvimento de cada país, é uma evidente tentativa de dominação que ataca a livre autodeterminação dos povos e sua soberania.

Agora, se nossos sistemas educativos estriam – segundo seus detratores – a um passo do colapso pela falta de qualidade, deveríamos em primeira instância debater sobre os alcances deste vocábulo do qual se apropriaram os projetos educativos neoliberais. Desde nossa própria ótica, a qualidade da educação diz respeito à coerência entre planos, programas, currículos, métodos e meios educativos em geral com princípios e fins da educação, a participação docente e a seu nível de profissionalização. Além do quê, se trata da pertinência dos processos educativos com respeito aos projetos social e educativo do país, ao grau em que as aprendizagens decorram de estratégias e métodos nos quais o educando se aproprie não só do conhecimento, mas sim do processo que o conduz ao mesmo. E também ao grau em que os integrantes da comunidade educativa se sentem comprometidos com os centros educacionais de sua localidade e contribuem com suas boas condições físicas, de equipamento e manutenção. Está claro que as provas internacionais não avaliam isso.

Mas sim fincam pé na sacralização do quantitativo e o tecnocrático em uma pertinaz busca por resultados baseados na aquisição de competências supostamente necessárias para inserir-se efetivamente no mercado, levando a educação a um grave distanciamento da realidade social, e à desatenção das propostas de docentes, estudantes e familiares. Por outro lado, o Pisa é um grande mecanismo de controle, que em nível mundial incorpora a educação como um importante indicador de análises da competitividade econômica dos países. Então, é neste marco que se concebe a educação como um bem de consumo, onde empresas dedicadas ao negócio da educação, como Pearson, Educational Testing Service (ETS) ou Westat, desenham o marco teórico das áreas a avaliar, relevam as variáveis associadas aos desempenhos, elaboram as atividades relativas às provas e manejam as bases de dados com critérios mercantilistas.

Progressivamente, estes organismos internacionais vão transformando os planos, programas e grades curriculares dos países que adotam medidas para que estes se adequem às avaliações standards da OCDE e assim obter melhores resultados nas provas do Pisa.

A educação é um direito humano inalienável, pelo qual os sistemas educativos de cada país devem pretender formar cidadãos livres, críticos, solidários e capazes de transformar a sociedade em que vivem. As provas standards de caráter global nada podem nos dizer sobre como avançar a estados superiores de nossos sistemas educacionais, porque constituem instrumentos de dominação e reprodução do sistema capitalista, que põem no ranking pessoas, instituições e países. Em definitivo, o problema não é quantos pontos alcançaram os países de nossa América Latina nas provas do Pisa, pelo contrário; o ponto crucial é que nossos povos compreendam o alcance e a intenção dos instrumentos de dominação, rompendo as correntes que nos atam a eles.

Walter Fernández Val é educador e escritor uruguaio. Tradução: Micael Morassutti.

Autor: Walter Fernández Val
Fonte: Caros Amigos, ano XIX, n. 238, p.17, jan. 2017

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.