LEITURAS E LEITORES


SUBLIME: ENLACE E DESENLACE AMOROSO NA LITERATURA

A literatura é uma linguagem artística. Nela, as palavras tornam-se plurissignificativas, reinventam-se semanticamente, embelezam-se, encantam-nos. Por meio da tessitura escrita, o texto literário desvela artisticamente os sentimentos e as relações humanas. Cada obra: narrativa, poética ou dramática traz em si a existência humana transmutada em ficção e fantasia.

 

O amor medeia as relações humanas, quer seja pela sua presença ou ausência. Ao longo das épocas, o ser humano vem representando o sublime dos sentimentos, enlaces e desenlaces, em imagens, músicas e textos.

 

A cada época, como no compasso ininterrupto do coração, homens e mulheres utilizam a arte escrita para expressar o que se passa pelo coração humano. Ainda que este músculo seja apenas um símbolo do sentimento que se espalha da cabeça até o coração, como Zizi Possi nos diz na música Qualquer Hora:  

 

Já faz algum tempo
Que você saiu da minha cabeça
E invadiu meu coração

 

O namoro é uma das fases que contribuem para surgir o sentimento sublime nas pessoas.  Cada início, consciente ou não, desencadeia a sensibilidade para si mesmo e para o outro, sentimento que alegra e perturba. Para Luís de Camões, autor português do século XVI, o amor pode ser implacável, paradoxal e indissociável da vida:    

 
O amor é fogo que arde sem se ver

 

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

 

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;

 

É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

 

Um pouco mais tarde, no século XIX em Dom Casmurro, Machado de Assis imortalizou o olhar de Capitu, tornou-o símbolo da paixão que Bentinho sentia por ela. A primeira paixão, e única, de Bento despertou-lhe contentamento, amor e dúvida.  Adolescente, aos 15 anos, Bento procura respostas no olhar de Capitu e, ao olhar dentro dos olhos da amada, sente-se como se fosse arrastado pela força de uma onda que chega à praia e leva o que estiver na areia para dentro do mar:

 

“Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas.  A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer que o foram aqueles olhos de Capitu [...] Olhos de ressaca? Vá de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei o que de fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.”

 

No início, o amor tira o sossego, principalmente quando não é revelado, cresce à sombra do pensamento, protegido do mundo, como é o caso do amor de Riobaldo por Diadorim, na obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. No sertão mineiro, em meio a gestos rudes, intensos em sentimento e discrição, desenrola a história de dois jagunços. Amor proibido, que feria convenções, que tirava a paz de Riobaldo:

 

“Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso, dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar as muitas demais vezes, sempre.”

 

O amor chega sorrateiro, instala-se sem ser anunciado. Preso à sua rede, cada um de nós, foge ou se entrega a ele com os olhos vendados. No poema Teresa, de Manuel Bandeira, o sentimento não dá trégua e coopta o apaixonado, que resiste no início, mas se rende inexoravelmente ao sublime.       

 

Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

 

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

 

A força do amor desestabiliza a pessoa, a vida e a rotina têm outra dimensão. No poema Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto, o eu-lírico chamado Joaquim, assim diz do que o amar fez com ele:

 

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

 

O amante se vê completamente tragado pela paixão, não há o que fazer. O fim anuncia-se de várias formas, sem nos darmos conta disso. O amor, nem sempre, aparece concretamente no coração daquele que ama. Nem sempre se tem consciência do amor. Muitas vezes, só depois da perda é que se entende que o amor estava latente no coração. Em São Bernardo, Graciliano Ramos nos leva ao pensamento do protagonista da história, Paulo Honório.

 

Homem bruto, solitário, rico, quarentão, Paulo Honório casa-se com Madalena, professora, moça meiga, cheia de entendimento social, de ajuda ao próximo, entretanto, não resiste à vida dura, cheia de ciúmes, ao lado de Paulo. Suicida-se e, a partir daí, o protagonista vê sua vida perder o sentido:

 

Hoje não canto nem rio. Se me vejo no espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam [...] Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com minha brutalidade e o meu egoísmo [...] Sou um aleijado. Devo ter coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens.

 

O término é categórico, fere, silencia. Em Baladas, Hilda Hilst, poeticamente diz:

 

Naquele momento

o mundo parou

e das distâncias

vieram águas

e o barulho do mar

E do amor

veio o grande sofrimento.

 

E nada restou

Das infinitas coisas pressentidas

das promessas em chama.

Nada.

 

Amar faz parte de nosso existir. Mas um dia o amor pode terminar, pois ele segue o ritmo da vida: ir, vir, renovar-se. Um novo amor, a renovação, é uma das maneiras de nos sentirmos vivos e é sempre tempo para recomeçar, como sabiamente Carlos Drummond de Andrade afirma:

 

O primeiro amor passou

O segundo amor passou

O terceiro amor passou

Mas o coração continua


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.