O GREGO DE TOLEDO
Numa manhã de janeiro, do inverno europeu, eu e meus amigos brasileiros partimos de Madrid para Toledo. Viajamos por aproximadamente 75 minutos de ônibus. Estrada tranqüila, céu nublado, chuva fininha, intermitente.
Quando chegávamos perto da cidade, a arquitetura e a paisagem não permitiram que pudéssemos ignorá-las. O coração disparou, a pulsação alterada, havia pressa em descer do ônibus e tomar aquela cidade. Na verdade é a cidade que nos tomou antes e nos impeliu para ela.
Incrustada na Comunidade Autônoma de Castilla La- Mancha, Toledo permanece no tempo, na memória e vida dos espanhóis. Para Cervantes, a cidade era a glória espanhola. Atualmente sua população gira em torno de 80 mil pessoas. A cidade, além de sua arquitetura é muito conhecida pela produção de aço, especialmente na produção de pequenas ferramentas de aço e facas.
Caminhar por ruas seculares, atravessar o rio Tajo que praticamente circunda a cidade, protegendo-a dia e noite. Esse rio é o maior da Península Ibérica, nasce Tajo na Espanha e desemboca em Lisboa, como Tejo. Em qualquer uma das duas cidades, o rio é majestoso: plácido como um mar
Na cidade, a cada passo, é como se ela fosse se apoderando do caminhante, transportando-o para eras longínquas. As ruas de Toledo são sinuosas e estreitas, mas de beleza e preservação indescritíveis.
Os rostos que encontrava em Toledo há muito povoavam meu imaginário: trajes de cor escura, rostos afilados, quase tristes. Pareciam uma pintura de El Greco.
Nem sempre o lugar onde nascemos será aquele que nos completará como homens e nos impulsionará a deixar para o mundo o registro de nossa passagem pela existência.
Às vezes é preciso caminhar muito, viajar por culturas diferentes, perder-se e, pouco a pouco, encontrar-se consigo mesmo.
Toledo é uma cidade especial e também tornou-se conhecida pela tolerância religiosa.
Caminhar por ruas onde passaram reis, rainhas, grandes artistas, gente desconhecida, gente comum e chegar à Catedral de Toledo, que demorou mais de 200 anos para ser construída, impressiona. Saímos de lá e resolvi me separar dos meus amigos.
Fazia frio. Caminhei sem me guiar pelo mapa da cidade, quando parecia que estava perdido, vi uma capela. Era simples do lado de fora. Senti-me impelido a entrar, caminhei dez
A impressão inicial continuou até que, dentro de uma das capelas, virei à direita e não pude acreditar: na parede estava a pintura de El Greco, chamada O Enterro do Conde de Orgaz. Eu, na verdade, sempre tivera a reprodução dessa pintura, mas nunca busquei saber onde ela estava, acreditava que estivesse num museu. Numa fração de segundo pensei que poderia ser uma cópia, mas o folder da igreja respondeu minha dúvida. O resto foi emoção.
O Enterro do Conde de Orgaz foi pintado em 1586 e homenageava o enterro desse fidalgo espanhol que morrera há 250 anos antes, na época que Toledo era capital da Espanha e sediava a Igreja Católica. Quando se olha para a tela de 460X360 cm não há dúvida de que é uma das obras singulares da humanidade.
A história representada na pintura é que quando o Conde morreu, dois santos desceram do céu para sepultá-lo. Quando se olha para o quadro é possível perceber dois planos: um terreno e outro divino.
O outro plano é o celestial: parece em festa com a chegada da alma do Conde de Orgaz, músicos e seus instrumentos sugerem uma sinfonia agradável, uma atmosfera de leveza envolve o anjo de cabelos louros que conduz a alma do morto ao céu. Do alto da pintura, Cristo, ladeado por sua mãe e São João, também observa a alma a caminho do céu.
O frio e a chuva naquele dia em Toledo não me impediram de ver o sol, a beleza que El Greco construiu para encantar um transeunte como eu.