LEITURAS E LEITORES


DA PRIMEIRA BIBLIOTECA, A GENTE NUNCA SE ESQUECE!

Tornar-se leitor pressupõe, antes de tudo, estabelecer laços com uma biblioteca. Parece incoerente pensar em leitura, sem cogitar a biblioteca, ou seja, um espaço estruturado que ofereça segurança, conforto e, ao mesmo tempo, dê continuidade à cumplicidade que se estabelece entre o leitor e o escrito.

É de se lamentar que aproximadamente 1/5 dos municípios do Brasil não possua sequer uma biblioteca pública. Biblioteca não pode ser elevada à categoria "luxo". Toda criança, todo adulto, se quiser, deverá encontrar no município onde mora um espaço como esse.

Dias atrás revisitei a biblioteca que considero ter sido a primeira biblioteca a me confirmar que existiam mundos além daquele que eu vivia. Era uma biblioteca inaugurada no fim da década de setenta, nesse período cursava o ginásio e nem as aulas de educação física eram tão atraentes quanto ir à biblioteca pública da cidade.

A cidade era igual a tantas outras do norte do Paraná, cuja população média era de cinco mil habitantes. Naquele tempo, a biblioteca pública estava localizada em frente à praça principal e única da cidade. Essa praça sempre foi um dos orgulhos da comunidade, nela havia uma "fonte luminosa" que jorrava águas coloridas ao som de músicas românticas para o deleite dos namorados. Existia um parquinho para as crianças: balanços, roda-que-girava, foguete- escorregador, era bom. E a porta da biblioteca pública estava de frente para tudo isso, era só atravessar a rua.

Não sei se intencional ou não, mas era uma conjunção perfeita: biblioteca, parque, brinquedos, jardins. Tudo confluía para que a expressão humana fosse a mais completa possível naquele contexto. A atmosfera conspirava, eu nem percebia, para que me tornasse assíduo freqüentador da biblioteca, de modo a fortalecer o leitor em potencial que existia em mim.

Passar manhãs e tardes ali, cujo espaço transformou-se numa região vasta de minha imaginação. Ao todo, eram aproximadamente dez prateleiras, dispostas em duas direções do prédio, mas que me pareciam veredas extensas, longínquas que, de acordo com a temática dos livros armazenados, me levavam a olhar para determinada região da natureza humana, do globo terrestre, me deixava menos só no mundo.

Ali descobri tanta coisa sobre o mundo: paisagens, doenças, poetas da Antigüidade, histórias de heroísmo, de vingança, sofrimentos, encontros e desencontros. Comecei a entender melhor o "ciclo da humanidade" e nem tinha conhecimento ainda daquilo que os antigos chamavam "roda da fortuna" e que mais tarde leria em Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez. Nisso tudo, a maior descoberta foi sobre mim mesmo.

Impossível também não recordar da recepção que havia na biblioteca: a gente era bem acolhido e levado a se sentir como parte real daquele lugar, como se os livros nos pertencessem. As atendentes, naquela época, não eram formadas em Biblioteconomia, mas tinham humanidade suficiente para perceber a importância daquele espaço em nossa formação, por isso, nos informavam: chegou o livro tal... tem revista nova... etc. Incentivavam nossos gostos.

Sem me dar conta, em 1982, passeava pelas prateleiras e abri um livro da capa vermelha, não vi o título e nem o autor, abri-o e li o seguinte trecho "pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro". Fui invadido por êxtase instantâneo, aquela frase subverteu meus conceitos. Senti que precisava ler aquele livro. Foi assim que descobri Machado de Assis.

Mais adiante, nesse mesmo ano, foi a vez de Jorge Amado. Tomei contato com o vermelho da Seara e seus retirantes. A convivência com aquelas terras distantes, paisagem tão diferente de onde morava, o drama humano me levou para um mundo mais adulto. Continuando a ler Jorge, tive outra perspectiva de nossa sociedade a partir de Luz no túnel, comecei a ser informado sobre perseguição política, prisão, comunismo, movimento operário.

Ainda assim, nos anos oitenta, passeei pela poesia de Homero e de Hilda Hilst, mas acabei fisgado para sempre pela poesia de Manuel Bandeira que para mim tornou-se Poesia para a vida inteira. Num mergulho nas contradições e sentimentos mais obscuros do ser humano, fui levado a Crime e Castigo de Dostoiévski e continuei a caminhada rumo ao Ciclo do Terror de Assis Brasil.

Visitei a França com Os Miseráveis e aprendi que existem Morangos Mofados em todas as estradas. Segui até o Mar Morto e saboreei a poesia em forma de prosa, mas foi Callado quem me ensinou a manter a crença Sempreviva.

Passaram-se os anos e muita coisa mudou. Não foi diferente com aquela biblioteca que me mostrou outros mundos. Já não está localizada no mesmo lugar, foi para a avenida principal da cidade, mas não parece ter sido prioridade no orçamento municipal durante as últimas duas décadas, pois o acervo continua praticamente o mesmo e as assinaturas de periódicos foram canceladas há tempos.

O mais lamentável é que essa poderia ser a história de grande parte das bibliotecas públicas do Brasil, uma vez que se encontram sucateadas, com acervo reduzido e instalações precárias. Negar a biblioteca em sua potencialidade às crianças é, sem dúvida, comprometer o futuro do país.

Aquela biblioteca, da minha puberdade e adolescência, contribuiu para que me tornasse melhor como ser humano, para que compreendesse um pouco mais o mundo e, principalmente, quando adulto, continue a trabalhar para que mais bibliotecas sejam criadas, para que outros meninos e meninas possam ver o mundo por mais essa vereda chamada biblioteca. É por isso que reafirmo: da primeira biblioteca, a gente nunca se esquece.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.