EXPRESSÃO PESSOAL E ARTÍSTICA DAS CARTAS
Muitos têm preconizado o "fim das cartas". Parece
que o mundo tornou-se rápido demais e não há mais tempo para arrumar papel,
envelope, caneta e um lugar mais quieto para se redigir uma mensagem a alguém a
quem consideramos. Dobrar, fechar, levar ao correio, selar e despachar. Não
parece muita coisa? Seria realmente o fim das cartas? As correspondências, de
agora em diante, estarão restritas ao meio eletrônico?
Todas essas considerações e muitas outras são
cabíveis nesse contexto; no entanto, só o tempo dirá... Mas retornemos à carta.
Muitas cartas foram tão bem escritas que sintetizaram uma época, uma visão de
mundo, ou seja, a carta passa de meio de expressão pessoal ao âmbito artístico.
O Brasil teve sua "certidão de nascimento" na Carta do Achamento do Brasil** que Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, enviou ao rei de Portugal, em 1500. Nessa carta, embora tivesse a intenção de fazer um relato sobre as terras recém-descobertas e suas potencialidades para a exploração, Caminha utiliza um estilo objetivo, descreve as principais características da terra desconhecida, no entanto, o texto é gracioso. Leva o leitor a "saborear" aquele prato exótico dos trópicos, como no trecho a seguir:
"Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros
capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta nova terra nova, que
nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta
disso...
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Neste
dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande
monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã, como grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs o nome - o Monte
Pascoal e à terra - Terra de Vera Cruz.
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De ponta a ponta é toda praia...muito chã e muito fremosa. (...) Nela até agora
não pudemos saber que haja ouro nem prata(...) Águas são muitas e
infindas.
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Dali
avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram
os navios pequenos, por chegarem
primeiro.
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Eram
pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos
traziam arcos com suas setas(...) andam muito bem curados e limpos."
Por outro lado, em Macunaíma, Mário de Andrade narra a chegada do "herói sem nenhum caráter" a São Paulo e resolve escrever para suas súditas na Amazônia, para informar sobre o "achamento" daquela cidade, bem à moda de Caminha:
"Às mui queridas súbditas nossas,
Senhoras Amazonas.
Trinta de maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São
Paulo.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a
literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linha de
saudades e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de
São Paulo - a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes - não sois
conhecidas como "icamiabas" ,voz espúria, sinão pelo apelativo de
Amazonas...
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Sabereis
mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar,
gratuitamente, senão que a chuvas do vil
metal...
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Andam
vestidas de rutilantes jóias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do
porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do
torneado do tom. São sempre alvíssimas as donas de cá..."
Em Lição do Amigo***, Mário evidencia a Carlos Drummond um pouco de sua rotina para escrever cartas aos amigos:
As cartas fascinam tanto porque são parte da expressão humana. Porque nelas estão as fraquezas, os bons augúrios e, quase sempre, espelhos da alma de quem as escreve. Quando as lemos, é como se fôssemos ouvindo o remetente em nosso ouvido a conversar conosco. É como se Mário falasse conosco."S. Paulo - 20-II-27
Carlos.
Só nos domingos que posso escrever. Tenho atualmente a vida mais deliciosamente burguesa que a gente pode imaginar. Sou homem de domingos. Só no Domingo que me divirto, visito os amigos, escrevo pros de longe visto roupa nova e descanso (...) São onze horas do dia. Tenho meia-horinha pra você..."
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*Aracy Amaral
(org.) in: Correspondência Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. São Paulo:
Edusp, 2001.
**Antônio Carlos Olivieri e Marco Antônio Villa (orgs.)
Cronistas do Brasil. São Paulo: Ática,1999.
*** Lição do Amigo: cartas de
Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1982.