A VIRGEM DOS LÁBIOS DE MEL, JOSÉ DE ALENCAR E CHICO BUARQUE
No século XIX, principalmente na segunda metade, o país saboreava a independência política. Era grande a onda nacionalista e junto com ela houve uma busca dos valores locais, de figuras que pudessem representar o Brasil de modo a nos afastar do jugo cultural português e assim se estabelecesse a identidade nacional. Coincidiu com esse momento o período literário conhecido como Romantismo.
O movimento romântico trouxe consigo a percepção emocional do mundo e, nesse contexto, o nacionalismo e a paixão eram componentes constantes. Se o momento era propício para um mergulho na cultura local, então era hora de sedimentar alguns "símbolos" nacionais. Um deles foi o índio que, juntamente com sua cultura, apontava uma perspectiva peculiar de nosso herói.
O indianismo, como foi conhecido, teve outros precursores dentro da literatura brasileira, mas foi com José de Alencar que houve um "projeto " estético melhor acabado de mostrar índio, além de incorporar termos indígenas em seus romances.
Iracema (1865) é um romance lançado quando Alencar já havia atingido a maturidade em temas indianistas. O romance narra o encontro de Martim, português, e Iracema uma índia da nação Tabajara. A paixão entre eles foi tão intensa que Iracema abandona sua tribo e vai viver com seu amor no litoral, onde de acordo com o romance, teria surgido o Ceará. Na verdade, o subtítulo de Iracema é "Lenda do Ceará".
Iracema possui uma narrativa que nos embala, é uma mistura de prosa e poesia, como podemos observar no trecho que se segue:
"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso (...)
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu..." pág.16
A idealização acompanha a narrativa romântica, pode-se perceber que Alencar alia as características físicas da personagem à paisagem, aos elementos da natureza, que também tornaram-se símbolos do país, tais como a palmeira, a "morenice" do povo brasileiro.
Iracema, este símbolo criado por Alencar, é referência para a Arte no Brasil, pintura, poesia e música. Os grandes compositores da música popular brasileira (MPB) recorrem com freqüência a esse símbolo, como é caso de Chico Buarque com a música Iracema voou.
Na letra da música de Chico, Iracema tem outra perspectiva: é uma imigrante nos Estados Unidos:
"Iracema voou
Para a América
............................................
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
...............................................
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará"
Na perspectiva alencariana, Iracema é de estirpe nobre, filha do pajé. Em sua tribo ela é incumbida de preparar a bebida para as cerimônias dos guerreiros. Já a de Chico vive na ilegalidade, é clandestina, pois imigra e não parece dominar a cultura do estrangeiro. Embora existam divergências nesse plano 'social', as analogias não tardam a surgir.
O processo de "expatriação" acontece nas duas narrativas. Na de Alencar, Iracema foge do sertão para o litoral, sofre longe dos seus, de cultura. Em Chico, Iracema deixou o Ceará e vive nos Estados Unidos e nos remete à sua saudade da Terra.
Iracema tem as mesmas letras que América, só que dispostas em ordem diferente. Iracema é anagrama de América. Tanto Alencar como Buarque recriam em Iracema não só um símbolo, mas a representação do brasileiro e de suas raízes, de seus dilemas e capacidade de sobreviver às vicissitudes do estrangeiro.
Livro: ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1997.
CD: As cidades - Chico Buarque - BMG