TEXTOS TEMPORÁRIOS


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O ABECÊ DAS LÁPIDES

Graças ao avô, a pequena Giovanna Cury aprendeu a ler e a escrever nos túmulos de um cemitério.

Com apenas 2 anos, Giovanna Cury tinha o hábito de passar as tardes com o avô. Enquanto José Carlos Fernandes, zelador do cemitério Memorial da Paz, em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, trabalhava duro, a menina brincava por entre as lápides. O cemitério era o quintal da casa da menina de cabelos loiros e olhos verdes.

Depois de uns meses, quando as brincadeiras começaram a não ter a mesma graça, Giovanna começou a interessar-se pelas letrinhas de bronze, grudadas nas plaquinhas, nos jazigos. Aqueles escritos, que guardam a lembrança de quem já morreu, tornaram-se, então, os primeiros cadernos de alfabetização da menina.

Com os nomes dos túmulos ela manteve o primeiro contato com o idioma escrito, aos 2 anos e meio de idade. Um contato ainda rudimentar, é verdade – a formação de sentido mais complexa, a compreensão sintática de frases inteiras, viria mais tarde, evidentemente. Mas, naquela estação de 2003, de joelhos ao chão, com os dedinhos em cima de cada letra e o avô sempre ao lado, a menina identificou a primeira palavra, que, até hoje, não sai da sua cabeça.

- A primeira palavra que li foi “Ana” – diz a menina, hoje com 7 anos, apontando para a lápide que lhe serviu de cartilha.

José Carlos Fernandes, de gestos tímidos, olhar sereno, parou de estudar aos 11 anos. Hoje, aos 57 anos, diz ficar emocionado quando lembra a primeira vez em que a neta leu.

- Quando percebi que ela tinha essa curiosidade, comecei a ler para ela os nomes das pessoas que estão escritos nas lápides – lembra. 

O método usado pelo zelador foi simples. E aparentemente funcional. Lia as letras e revelava o som que o casamento delas significava.

- Eu falava para ela que a letra a com a letra n e com a letra a dava “Ana”. Então, eu pedia a ela que saísse pelo cemitério atrás de outro nome igual àquele. Ficava emocionado quando ela me chamava para ver outro nome igual ao que eu tinha ensinado para ela – explica o avô.

Giovanna voltou a correr por entre as lápides, agora com os olhos voltados para o chão.

- Comecei a procurar outras ‘Anas’ para mostrar ao vovô – diz.

Esse processo de alfabetização, despretensioso, quase uma brincadeira, virou um hábito na vida de ambos. O aprendizado durou cerca de dez meses, calcula José Carlos.

Chapeuzinho

Quando Giovanna nasceu, o avô já era zelador do cemitério. Ela cresceu numa casinha simples, a metros da imensidão de lápides. Hoje, mora com a mãe, o irmão e os avós.

- Todos os meus filhos e netos foram criados aqui no cemitério – diz José Carlos Fernandes.

Os desafios de linguagem surgiam para Giovanna Cury à medida que a menina perambulava entre uma lápide e outra. Desafios como o acento circunflexo, o chapeuzinho, como a menina costuma dizer.

- Meu avô me explicava o som que o chapeuzinho tinha na palavra. Aí, ficava mais fácil – afirma.

Quando, nas lápides, ela encontrou nomes com w e x, empacou.

- Meu avô me explicou o som que a letra x tem. E, quando a palavra era grande, ele falava para eu separar as sílabas – diz a menina.

O avô completa.

- Depois de um tempo, eu saía com ela pelo cemitério e ela ia lendo tudo e me chamando para escutar – diz José Carlos.

A pedagoga Melina Beatriz Carneiro Alves Rocha, então professora da Escola Municipal Padre Vita, em Pindamonhangaba, soube que sua avó e companheira de quarto morrera em 11 de outubro de 2002. Foi numa das visitas ao cemitério local que Melina conheceu Giovanna.

- Como era muito ligada a minha avó, eu ia sempre ao cemitério para visitar o túmulo dela. A Giovanna foi um presente na minha vida – recorda a professora.

A menina começou a frequentar a casa de Melina. Costumava passar os fins de semana por lá. Sempre estimulada por leitura e jogos, Giovanna surpreendeu Melina. Em março de 2007, a professora conseguiu uma vaga na pré-escola para a menina. Giovanna era a mais nova aluna de Melina. Para ela, que hoje trabalha como assessora lúdico-pedagógica na Prefeitura de Pindamonhangaba, o gesto do avô de Giovanna foi “quase único”.

- Ele foi um educador, quase sem querer. Ela começou a falar praticamente por meio da leitura escrita – diz a especialista em gestão escolar e pós-graduanda em educação.

Livro

O desempenho de Giovanna em aula chegou a outro professor, Severino Antônio Moreira Barbosa, que conseguiu bolsa de estudos para a menina na Escola Emílio Ribas, da Rede Anglo de Ensino.

- Conhecer Giovanna e sua história foi uma experiência poética – diz o autor de A Menina que Aprendeu a Ler nas Lápides, lançado pela Biscalchin Editor.

As professoras Almelice Aparecido Carneiro Alves, de português, e Kátia Tavares da Silva, que deu aulas de filosofia a Giovanna em 2008, consideram a menina uma aluna que aprende rápido e ajuda os colegas de sala. Ela concluiu o 1º ano do ensino fundamental no ano passado e sonha ser professora.

- Adoro crianças e ensinar.

A leitura virou um passatempo.

- Adoro e ninguém me manda fazer isso. Faço porque gosto – diz.

Na estante, contos de fada e histórias em quadrinhos.

- Leio jornal às vezes, mas acho muito complicado. Gosto de ler o horóscopo todo dia – diz a menina. 

Giovanna, a propósito, é do signo de peixes.

Autor: Vinicius Novaes
Fonte: Língua Portuguesa, v.3, n.41, p.14-16, mar. 2009

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.