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LIVROS À PROVA DE TECNOLOGIA

O futuro da biblioteca no Brasil e no mundo é discutido por intelectuais e autoridades, que se preocupam com o destino dessa tradicional provedora de conhecimento

Uma senhora carrancuda atrás de um escuro balcão de madeira maciça, resmungando para os que procuram informações. Um ambiente sombrio e poeirento, repleto de livros que não podem ser tocados pelo público. Essa imagem que a maioria das pessoas têm de uma biblioteca, atualmente só existe na memória de quem viveu a cena descrita, ou pelo menos deveria ser assim. A biblioteca utópica do século 21 é iluminada, informatizada, com os livros ao alcance das mãos. E o bibliotecário - segundo Affonso Romano de Sant'Anna, o 'profissional do futuro' - atua como intermediador entre o leitor e o conhecimento. É ele quem estuda o teor de cada tomo colocado na estante a fim de classificá-lo, e destiná-lo ao leitor certo. Na teoria, esse lugar, eixo do conhecimento, deveria seguir a cartilha da democratização da informação, mas na realidade, nem sempre acontece desta forma, ainda mais quando o mundo vive uma época de enorme disparidade socioeconômica.

Mas a briga pelo domínio do saber não constitui novidade. O aprendizado da escrita e da leitura se restringe desde o início dos tempos às mais altas classes sociais. Considerado uma arma, o livro foi refém da Idade Média, ficando sob a tutela da nobreza, do clero e da magistratura. Esse quadro só se alteraria no século 18, com a difusão de valores humanísticos. E esse primeiro movimento de democratização da informação desembocou no século 20, quando o poder da imagem colocou a leitura em xeque. No fim do século, um outro paradoxo se apresentaria: a internet, uma verdadeira biblioteca multimídia virtual, que, ao mesmo tempo democratiza e superficializa o conhecimento.

Todo esse histórico só reforça uma questão própria do século 21, discutida por teóricos do mundo todo e levantada no livro O Poder das Bibliotecas, de Marc Baratin e Christian Jacob, lançado pela Editora UFRJ: com toda sorte de parafernálias eletrônicas qual será o papel da biblioteca do terceiro milênio? Como será organizado e distribuído todo o pensamento mundial? Para o professor Antônio Olinto, 'a biblioteca, vista por muitos como um mero depósito de livros, será um espaço de convívio cultural dinâmico e interativo, voltado para democratizar o acesso à informação e ao conhecimento.' À frente do Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural do Município, Olinto vem estudando a criação de bibliotecas no subúrbio carioca e ainda a reforma das já existentes. 'Atualmente, o Rio tem 31 bibliotecas públicas, sendo nove volantes (sediadas em kombis), com um acervo de 400 mil volumes. Pretendemos criar mais 30 unidades, com a campanha Bibliotecas Populares, e para cada uma precisaremos de um acervo com no mínimo 1,5 mil exemplares, mobiliário específico, computadores e profissionais, o que deve custar cerca de R$ 60 mil', explica o professor.

Mas o futuro das bibliotecas não se resume à criação de espaços físicos. Num simpósio ocorrido em 1996, em Nova York, patrocinado pela The New York Public Library, diretores de bibliotecas do mundo todo discutiram os novos rumos desses centros de informação e apresentaram seus balanços e previsões. Segundo Affonso Romano de Sant'Anna, que representou o Brasil na qualidade então Presidente da Biblioteca Nacional, cada país apresentou uma biblioteca mais futurística do que a outra. 'Quando vi os projetos das outras nações, levantei a seguinte questão, pertinente ainda hoje: uma coisa é pensar a biblioteca em países de primeiro mundo - como a Suécia e a Dinamarca, que têm uma biblioteca em cada quarteirão, ou os Estados Unidos que destinam verba anual de US$ 200 milhões para as bibliotecas públicas -, outra é pensar na biblioteca de países como o Brasil, onde comunidades da era da pedra lascada convivem com aquelas que parecem estar na Idade Média e ainda com as que pensam estar no século 21 - o que é pura ilusão. Dos 6 mil municípios brasileiros, metade não tem biblioteca alguma e onde elas existem, são precárias', relembra o escritor.

Para Affonso, existe uma questão ainda mais séria a ser discutida: a capacitação e valorização do profissional do setor, que além de ter seu piso salarial nivelado por baixo nem sempre está capacitado para exercer a função. 'O papel do antigo bibliotecário passou, ou deveria passar, por uma transformação fundamental na sociedade de prestação de serviços em que vivemos. Esse profissional deveria ser o grande provedor da informação, ganhando um salário à altura de sua responsabilidade social. Mas se pelo menos o Brasil tivesse a sorte de ter um sociólogo no poder, essa situação seria diferente', ironiza Affonso.

A bibliotecária-chefe da Escola Israelita Eliezer Steinbarg e do colégio Max Nordau, no Rio, Anna Lúcia de Oliveira, concorda com o ex-diretor da Biblioteca Nacional: a profissão é desvalorizada no País e a maioria dos bibliotecários estão despreparados para assumir esta responsabilidade. 'Estou formada há 23 anos e, quando ainda era estudante, trabalhando na Biblioteca Nacional, imaginava como seriam as bibliotecas em 2001. Infelizmente acho que aqui no Brasil elas não mudaram muito e os leitores envelheceram com a idéia de que o bibliotecário é aquele que arruma livros na estante, quando na verdade ele é um cientista da informação', elucida a bibliotecária. Para ela, a tecnologia não invalidará o papel do bibliotecário. 'A tecnologia facilita o trabalho de catalogação e organização de livros, é funcional, mas não se emociona com uma obra. Além disso, pode até armazenar grande quantidade de informação, mas não consegue cruzá-la e avaliá-la. Por outro lado, acho que o bibliotecário vai ter mais tempo para atuar junto ao leitor e poder destinar o livro certo para cada necessidade. O livro, assim como a biblioteca, é um labirinto que pode levar a vários lugares diferentes, e é preciso que exista alguém para decifrar esses lugares e indicá-los corretamente', explica Anna Lúcia.

Affonso Romano de Sant'Anna atenta para o fato de o índice de leitura estar diretamente veiculado ao índice econômico. 'Os países desenvolvidos colocam suas bibliotecas em primeiro plano porque sabem a importância de dominar o conhecimento, e o resultado é uma população amplamente alfabetizada. No Brasil temos três tipos de analfabetos: o propriamente dito, estimado em 30 milhões de pessoas; o funcional, que é aquele que lê e mal entende o que lê, o correspondente a quase metade da população; e o tecnológico, que somos todos nós, que a cada dia temos de aprender como reabrir uma torneira, ou ligar um computador. E é essa disparidade que nos coloca bem distantes do século 21', reflete o escritor.

Autor: Priscila Fernandes
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/2/2001 - Gazeta do Rio/Rio Cultura, p. 1

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.