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SE A RDA É AGNÓSTICA, SERÁ O CATALOGADOR ATEU?

Enfim, “Habemus Papam”. Após cinco votações em dois dias de conclave no vaticano, foi escolhido o 266º papa. Aliás, habemus dois papas, um eleito e outro que renunciou ao cargo.

 

Na área bibliotecária, após alguns anos de discussões e testes, é esperado para o próximo dia 30 de março de 2013, o lançamento oficial da nova norma de catalogação. Enfim, habemus código. Aliás, duas normas de catalogação: a RDA e a AACR2 que será substituída, mas não extinta. O catalogador ficará em estado de graça ou de desgraça, dependendo do seu contexto descritivo.

 

Para se chegar a RDA, e a exemplo da escolha do Sumo pontífice, ocorreu um conclave de especialistas em catalogação. No processo, ou na sua intenção buscou-se construir um documento “moderno” que renovasse as estruturas da catalogação, trazendo-a para o universo do cosmo digital.

 

Se para a Igreja, na atualidade, é colocada dentre outros temas, questões como: aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, inseminação artificial; para catalogadores, em um contexto diferente, essas questões e outras não menos complexas, são também colocadas. Como definir os pontos de acesso destes conceitos, uniformizar as entradas, ou estabelecer as relações entre os elementos bibliográficos.

 

Se a Igreja tem lá suas posições dogmáticas, assim como todas as religiões em geral, os catalogadores têm suas posições, áreas, e pontuações que passam, agora, por uma modelagem conceitual. Uma modelagem que redefine a representação, os controles temáticos e de autoridade. Até o antigo evangelho das ISBD, se condensou. Há um novo testamento descritivo.

 

Mas, o que é a RDA que chega profética, alardeando um novo tempo, um novo futuro? Apregoada como uma norma até para os recursos futuros, não publicados ou de conteúdos inexistentes, mas consubstanciados pelos seus criadores. A seguir, lista-se algumas definições sobre a nova norma realçando seu significado, ainda que repetitivas ou genéricas.

 

No site da RDAtoolKit, http://www.rdatoolkit.org/background, têm-se que a RDA: Resource Description and Access é o novo padrão para a descrição de recursos e de acesso, projetado para o mundo digital. Construída sobre as bases estabelecidas pela AACR2, ela fornece um conjunto abrangente de orientações e de instruções sobre a descrição de recursos para todos os tipos de conteúdo e mídia. Os Benefícios da RDA incluem:

 

·                     Uma estrutura baseada em modelos conceituais dos FRBR (requisitos funcionais para dados bibliográficos) e FRAD (requisitos funcionais para dados de autoridade) para auxiliar os usuários do catálogo a encontrar as informações que eles precisam mais facilmente;

·                     Uma estrutura flexível para a descrição do conteúdo de recursos digitais que também serve as necessidades das bibliotecas, para a organização dos recursos tradicionais;

·                     Uma melhor interação com tecnologias de banco de dados, permitindo que as instituições introduzam eficiências na captura de dados e recuperação no seu armazenamento.

 

Segundo Puente (2011), as novas regras substituem a AACR2. Apresenta uma mudança de paradigma na catalogação de todos os tipos de recursos (analógicos e digitais). Estão baseadas no modelo conceitual FRBR, que por sua vez adota o modelo computacional de entidade-relação, e que engloba três tipos de componentes, as entidades bibliográficas, seus atributos e mútuos relacionamentos.

 

Picco e Repiso (2012), também destacam que a RDA é um novo código de catalogação em substituição a AACR2. Reune os conceitos catalográficos com diferentes esquemas de codificação para ambientes eletrônicos. Os catálogos bibliográficos passam a serem desenvolvidos em formato MARC (bibliográfico e autoridade); ou em metadados ou, ainda, em novas estruturas que possam surgir.

 

Oliver (2011) reforça a característica da norma de ser projetada para o ambiente digital. A sua finalidade é servir como suporte à produção de dados gerenciáveis com o emprego de tecnologias atuais, por estruturas de bases de dados de surgimento recentes, e das tecnologias futuras. A RDA é norma de “conteúdo”. Define os elementos necessários da descrição e acesso, e as instruções de como formular o dado a ser registrado nos elementos. Não está atrelada a um esquema específico de codificação ou apresentação, podendo empregar esquemas existentes como: formato MARC21, padrão Dublin Core, esquema MODS (Metadata Object Description Schema), além de poder estabelecer correspondência com outros esquemas atuais ou futuros.

 

Neste sentido, Weber e Austin (c2011) observam que a RDA pode ser descrita como um "esquema agnóstico". Além dos elementos essenciais da descrição que ajudam os usuários a encontrar, identificar, selecionar e obter outros elementos que sejam considerados necessários para distinguir um recurso de outros. Para as autoras, a RDA terá um grande impacto sobre como as bibliotecas trabalham. É um impacto previsível.

 

Mesmo nos esboços de projeção da norma, o Joint Steering Committee preconizava que a RDA seria construída sobre bases estabelecidas pelas regras de catalogação anglo-americanas. Iria fornecer orientações e instruções para a descrição de recursos e acesso a todos os tipos de conteúdo e suportes. O novo padrão estava sendo desenvolvido para uso, principalmente, em bibliotecas, mas as consultas realizadas em outras comunidades (arquivos, museus, editoras, etc.) visavam desenvolver esforços para alcançar um nível eficaz de alinhamento entre a RDA e os padrões de metadados usados por estas comunidades. A RDA é então apresentada como uma mudança na prática que irá posicionar as bibliotecas para a era digital. Não é um código exclusivo da área, servirá a outros deuses.

 

Estando (mais ou menos) claro o significado da RDA, seus impactos previstos podem ser uma dor de cabeça para os bibliotecários brasileiros. Tome-se a questão da Igreja Católica que, segundo informações na mídia, requer reformas na sua gestão. Desafio ao novo Papa Francisco que só será primeiro, após outro papa assumir com o mesmo nome. Imagine, fosse ele um bibliotecário brasileiro, que número romano seria incluído na sua designação de catalogador papal? Seria “VIXI”. E justifica-se.

 

A começar pela consulta das orientações preconizada pela nova norma, planejada para acesso e atualização online. A forma de difusão do instrumento catalográfico é também um modelo de negócio imposto a toda comunidade bibliotecária. Aliás, visa-se mais o lucro comercial com um código proprietário do que a sua função social na organização da informação. O RDAtoolkit, além de servir a publicação dos capítulos da RDA, servirá para exibição das regras da AACR2. As instruções identificadas por etiquetas numeradas são interligadas por hiperlinks.  O catalogador, agora, terá que comprar uma licença de acesso à norma. Seu novo instrumento fica na nuvem, e se a assinatura não for renovada, ela se evapora, deixando o catálogo no purgatório.

 

A licença é feita por subscrição. Há assinatura para um único usuário individual, e/ou institucional para acessos simultâneos, compartilhados dentro de uma mesma instituição. O preço é cotado em dólares americanos, dólares canadenses, libras esterlinas, dólares australianos, euros, e dólares de Cingapura. Com base na moeda norte-americana, a assinatura individual custa US$195 dólares. A institucional começa em US$325 dólares, e sofre variações de valor conforme o número adicional de usuários, por exemplo: 2-9 usuários US$55; 10-19 usuários US$50; 20 ou mais usuários US$45 dólares. Assim, na tabela de preço, um instituição que tenha 5 usuários registrados, sua licença fica em US$435 (preço base de $325 dólares, com três licenças + 2 x $55 dólares).

 

Curiosamente, os responsáveis pela política de assinatura do RDAtoolkit parecem desconhecer a geografia da América Latina. No site é informado aos interessados em assinar o serviço, que se for residente na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guiné Equatorial, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Espanha, Uruguai e Venezuela, deve contatar para informações o Infolink Colômbia. Mas ao clicar no link indicado, o usuário é remetido para uma página sem nenhuma informação. Um verdadeiro serviço de desinformação.

 

Se desejar efetuar a aquisição da assinatura via pagamento online, as opções são: cartões de crédito, Pay pal, E-check (somente para os EUA), e transferência bancária (que parece não funcionar para países fora do eixo anglo-saxão). Assim, o bibliotecário brasileiro que vá assinar por um ano o serviço terá que pagar com o seu próprio cartão de crédito, com o acréscimo de impostos que incidem neste tipo de transação financeira (e não é pouco). A assinatura se convertida para reais é salgada, temperada com as taxas é como beber água do mar. É fora da realidade para a maioria das bibliotecas do país.

 

Na atualidade, o dólar é favorável na conversão para o real, o serviço do RDAtoolkit pode até estar acessível, mas se a economia mudar e o dólar subir?

 

A assinatura institucional para bibliotecas brasileiras também parece dificultada pela forma de pagamento. Até para os cursos de biblioteconomia prevê-se dificuldades em efetuar uma assinatura na forma proposta por cartão de crédito. Empresas públicas não fazem este procedimento. A solução é comprar a obra impressa, em inglês. Há, também, uma opção de experimentação gratuita, de 30 dias. A ferramenta não tem nenhuma excepcionalidade, pelo valor cobrado.

 

Apesar de solicitar informações sobre a situação citada, até o momento de finalização do texto não houve resposta. Se os responsáveis desconhecem a existência do Brasil, no rol de países localizados na América do Sul, o que podemos esperar de uma atenção para com os bibliotecários brasileiros.

 

Muitas bibliotecas, até por carência financeira, devem perseguir no uso da AACR2, ou implementar apenas a ISBD condensada, e o formato MARC21. Ademais, o catalogador brasileiro não é ateu, embora deixado ao leu (sem cobertura), segue esperançoso por uma solução compartilhada, e a esperança é a última que morre. E se o catalogador morrer a RDA não ficará viúva, ou perderá seu rebanho de seguidores.

 

Indicação de leitura:

Joint Steering Committee for the Revision of Anglo-American Cataloguing Rules. RDA: Resource Description and Access: Prospectus . Disponível em: http://www.collectionscanada.ca/jsc/rdaprospectus.html Acesso em: 10/09/2008.

 

Oliver, Chris. Introdução à RDA: um guia básico. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 2011.

 

Picco, Paola; Repiso, Virginia O. RDA, el nuevo código de catalogación: câmbios y desafíos para su aplicación Revista Española de Documentación Científica, 35, 1, enero-marzo, 145-173, 2012

 

Puente, Marcelo de la. Nuevo paradigma en catalogación: El modelo FRBR y las RDA. Buenos Aires: Consultora de Ciencias de la Información, 2011.

 

Weber, Mary Beth; Austin, Fay Angela. Describing electronic, digital, and other media using AACR2 and RDA: a how-to-do-it manual and CD-ROM for librarians. New York: Neal-Schuman, 2011.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.