ARTIGOS E TEXTOS


BIBLIOTECA PÚBLICA: AMBIGüIDADE, CONFORMISMO E AÇÃO GUERRILHEIRA DO BIBLIOTECÁRIO

"Caminhando e cantando e seguindo a canção." Esta frase, por demais conhecida, se retirada do texto e do contexto em que foi idealizada, propicia duas conotações: conformista e revolucionária. A primeira, conformista, fundamenta-se na concepção de que quem segue não possui idéias próprias, não faz história. Seguir, acompanhando a canção formulada e imposta por outros, significa alienação, conformismo e, pior, reprodução de mensagens e idéias que quase sempre não são próprias. A segunda conotação, a revolucionária, apresenta-se a partir da própria idéia de movimento, de busca, de procura. A canção seguida representa o protesto de uma maioria subjugada, quase sem possibilidades de exteriorizar sua discordância e insatisfação ante os rumos de uma história a cujos destinos não lhe é facultado interferir. Uma revolução - ou, quem sabe, apenas algumas reformas - que se utiliza de pequenas brechas, de pequenas frestas dentro de um sistema aparentemente infalível e indestrutível; uma revolução que, a primeira vista, se esgota e tem seus limites em uma faixa de protesto ou em canções e palavras de ordens de uma trupe momentânea.

Da mesma forma, longe de seu contexto, o termo Biblioteca Pública também possibilita as mesmas duas conotações: a conformista e a revolucionária. A Biblioteca Pública é normalmente entendida pela sociedade como conformista. A literatura da área de Biblioteconomia, como será apresentado e confirmado no transcorrer deste trabalho, insiste na necessidade de modificarmos a forma como o bibliotecário e a biblioteca são vistos e reconhecidos pela sociedade: verdadeiro estereótipo do profissional e da instituição. Infelizmente, no entanto, a alteração desse estereótipo não é tão simples e fácil de se concretizar, já que a atuação do profissional bibliotecário está restrita, quase que exclusivamente, à guarda e preservação de registros bibliográficos do conhecimento humano, não atendendo, assim, aos anseios, reclamos e necessidades da sociedade, nem cumprindo uma função reconhecidamente social. A observação e interesse que tivemos e temos como profissional da área, nos possibilita afirmar que o quadro apresentado acima se reproduz em grande parte ou, sendo mais enfático, talvez na maioria das bibliotecas públicas brasileiras.

O conformismo da Biblioteca Pública estaria evidenciado, assim, através dos trabalhos desenvolvidos - ou, quem sabe, dos trabalhos não desenvolvidos - pelos profissionais que nela atuam. Explicando melhor: o conformismo deve ser entendido, no caso específico da Biblioteca Pública, como a passividade de sua atuação, como o aceitar ser um mero instrumento ideológico que apenas transmite e reproduz informações de interesses destoantes aos das classes populares. Por demais conhecida é a imagem que a sociedade tem do profissional bibliotecário: uma velha senhora, de coque, óculos na ponta do nariz, livro aberto nas mãos e que, autoritariamente, aponta - dedo em riste - para os catálogos quando solicitada a atender um usuário. Parece-nos que tal imagem, repleta de símbolos, permite análises que podem corroborar com a idéia de conformismo da Biblioteca Pública. Antes, porém, é importante enfatizar que Biblioteca Pública e Bibliotecário estão estreitamente relacionados, formando um todo em que a estrutura e o profissional contribuem, cada um com sua parcela e com suas especificidades, para a formação de uma única imagem que, enfocando um ou outro, integra-os no mesmo estereótipo.

A análise da forma como o profissional é visto pela sociedade pode começar pela pessoa representada como bibliotecária: normalmente do sexo feminino e idosa. O mercado de trabalho reserva ou oferece para a mulher, espaços definidos e limitados principalmente ao comércio e aos serviços. Quando aceita nos espaços considerados produtivos, identificados com a geração e produção de mercadorias, os cargos ocupados quase sempre abrangem funções onde a decisão está excluída. Às mulheres são oferecidas ocupações onde o que prevalece é a subordinação, o auxílio, a mera cooperação. No sistema capitalista, o não-produtivo é considerado periférico, relegado a um plano secundário e, evidentemente, as pessoas que nele atuam além de receberem baixos salários, revestem-se de um status social inferior. A biblioteca representaria, então, para a sociedade, já que a mulher é considerada adequada e apta a exercer as funções demandadas por ela, como um espaço não-produtivo, um local de importância menor e cujos produtos oferecidos não fazem parte dos instrumentos concebidos como fundamentais e necessários para um desempenho que corresponda às exigências de uma sociedade capitalista.

Seguindo o mesmo raciocínio, a bibliotecária idosa, velha, também está relacionada à forma como o velho é entendido e, principalmente, tratado nesta sociedade. Ele ou ela nada produzem, pois seus corpos não estão mais aptos a exercerem as funções que a sociedade necessita. A experiência, advogada como produto de toda uma existência, é dispensável quando as tarefas necessárias para a manutenção da sociedade industrial são rotineiras, mecânicas e exaustivas, exigindo quase que exclusivamente um vigor físico e uma resistência que o velho não mais pode oferecer. Considerados como um estorvo social, os velhos apenas são motivo de preocupação e fazem parte do interesse da sociedade quando preenchem os espaços, travestidos em números, dos relatórios de uma previdência social ou quando abarrotam os guichês dos hospitais em busca da recuperação de uma saúde perdida e deixada entre o maquinário de uma sociedade que alugou sua mão de obra em troca de um mísero salário. O bibliotecário, ou melhor, a bibliotecária é concebida como uma velha, pois improdutiva; guardiå da memória e da experiência que de nada servem; fiscal de um perdido passado que não contribui para as exigências e demandas atuais; dona de um espaço frio e silencioso que antecipa um inexorável mausoléu e que interessa apenas àqueles que já convivem com o sentimento da morte. A bibliotecária seria, assim, aos olhos da sociedade, a velha professora que receita antigas lições e professa valores que o homem de hoje rejeita. Quem preconiza a manutenção e a preservação de antigos valores, deslocados das relações e dos interesses de uma sociedade em constante mudança, não deve ser entendida como útil socialmente. Pensando dessa forma, compreende-se a razão do penteado em forma de coque presente no estereótipo do bibliotecário.

O livro aberto nas mãos da bibliotecária idosa permite uma análise também vinculada à improdutividade. A leitura, principalmente durante o período de trabalho, está ligada à idéia de ociosidade. O espaço adequado para se usufruir dos prazeres da leitura é aquele dedicado ao lazer; são os pequenos intervalos que o sistema de produção oferece para que seja utilizado pelo indivíduo. Mesmo assim, a leitura enfrenta inúmeros concorrentes que disputam esses breves intervalos.

A leitura, na imagem estereotipada, está adequada ao velho, pois é considerada como uma atividade passiva, sem dinamismo, não exigindo movimentos físicos, opondo a leitura à explosão da aeróbica. É provável o uso do livro nas inúmeras academias que proliferam pelas cidades, mas utilizado como instrumento e apoio de exercícios, auxiliando àqueles que pulam, suam e esperneiam na busca ansiosa de um vistoso porte atlético. Nesses casos, vale mais o peso do livro do que seu conteúdo. Em breve, talvez, os confusos balconistas de livrarias estarão se defrontando com insólitos pedidos: livros com 2, 3, 4, 5 ou mais quilos. A exemplo da velha bibliotecária, o livro também se reveste, do ponto de vista da sociedade, de inutilidade, de coisa passada, merecedor de um espaço nas prateleiras ao lado do pó que o envolve e que atesta sua incapacidade em responder às exigências de um mundo em constante mudança. Biblioteca, livro e velho se condensam, se integram e formam uma única entidade, indissociável, além de afastada dos interesses e necessidades da sociedade capitalista.

A relação biblioteca/serviço público, também está presente na imagem do profissional bibliotecário. No estereótipo, a atenção dada ao usuário está estreitamente relacionada ao modo como os servidores públicos atendem a população. Se verdadeira ou falsa, não nos cabe questionar aqui, porém, é certo que à imagem do bibliotecário foi somado mais um componente: o funcionário público. Entendido como aquele que vive às custas do Estado, o funcionário público teria como principal atribuição, procurar formas de ampliar seu salário, através de brechas na legislação, freqüentemente encontradas por aqueles que despendem suas horas de trabalho nessa tarefa. A fonte primária para que o funcionário público desempenhe com competência essa função, é o Diário Oficial - do Município, do Estado e da União - que deve ser minuciosamente esquadrinhado, redundando na total impossibilidade de atender aos usuários - afinal, convenhamos, cada funcionário é uma única, e somente única, pessoa. Do mesmo modo, o bibliotecário ou a bibliotecária, como é retratada em outras imagens (que, em essência, pouco diferem da que apresentamos), não pode tricotar e atender os consulentes ao mesmo tempo. Tricota-se primeiro e, sobrando tempo, presta-se auxílio a quem solicita. Nada mais justo, então, do que o dedo em riste, pois é inconcebível e imperdoável que alguém possa ser tão insensível a ponto de solicitar a atenção de quem está concentrado em agulhas e linhas, num azáfama complexo. É inacreditável que os usuários de uma biblioteca não percebam a função social de quem tricota agasalhos, meias, cachecóis, toalhas de mesa e coisas parecidas. O dedo em riste é merecido pois, além de importunar os afazeres da bibliotecária, os usuários demonstram total incapacidade e despreparo para se utilizar do acervo organizado para eles com carinho, tabelas, fichinhas e dedicação.

Em resumo: o profissional bibliotecário é entendido como improdutivo, passivo, guardião do passado, ocioso, inútil, sem função social e, horror dos horrores, funcionário público.

Acrescentar a esse rol de adjetivos mais um, o de conformista, não vai piorar a imagem desse profissional que se faz presente como reprodutor da ideologia dominante, como aquele que colabora na sustentação e preservação dos valores, idéias, propostas e interesses das classes que detêm o poder. A postura e a atitude do bibliotecário parece, muitas vezes, deixar de lado o conformismo para transformar-se em apoio e afirmação deliberada de posições reconhecidamente parciais.

Como dissemos anteriormente - e vale aqui relembrar - o bibliotecário e a Biblioteca Pública mesclam-se formando um único estereótipo. A exemplo do verso extraído da canção de Geraldo Vandré, a Biblioteca Pública também pode ser entendida como revolucionária. Na verdade, não só entendida e reconhecida, mas com uma atuação revolucionária. Revolucionar quer dizer transformar de modo radical, alterar uma ordem estabelecida. Em nosso contexto social isso significa instrumentalizar a população afastada dos canais do poder, de forma a que ela possa interferir nas decisões e influenciar nos destinos da sociedade. Como a Biblioteca Pública participaria desse processo revolucionário? Alimentando a população com informações que interfiram e tornem transparentes o jogo do poder e as relações de classes; servindo de contraponto em relação aos meios de comunicação de massa; criando novas demandas e procurando satisfazê-las em detrimento de falsas necessidades introjetadas pela sociedade de consumo; abrindo espaços que permitam à população, não só consumir, mas produzir cultura; produzindo informações que veiculem as necessidades e os interesses da população; advogando e sustentando o direito das classes dominadas de se fazerem ouvir; incentivando o surgimento em cada pessoa, da consciência da cidadania através de informações que propiciem o conhecimento dos direitos de todos aos bens mínimos que proporcionam o acesso a uma vida digna; participando da vida da comunidade que atende; privilegiando os carentes de tudo, inclusive, e principalmente, de informação, etc., etc., etc.

Entre os trabalhos desenvolvidos pela maioria das Bibliotecas Públicas, no entanto, não estão presentes nenhum dos citados acima. A Biblioteca Pública não tem uma atuação revolucionária e, não seria temeroso afirmar, nem quer ou pretende ter uma atuação com esse caráter, ao contrário, a grande maioria dos profissionais bibliotecários estão inocentemente (ou nem tão inocentemente assim) imbuídos e envolvidos pela ideologia hegemônica. Basta lembrar, confirmando a afirmação, que a idéia de imparcialidade da atuação do bibliotecário, sustenta políticas e filosofias de trabalho. Acreditando ser imparcial, na medida em que, democraticamente, oferece uma gama de opções para que o usuário faça sua escolha, o bibliotecário se auto exclui do processo de pesquisa, imaginando que dessa forma isenta as informações de possíveis influências suas. Considera-se, por outro lado, um intermediário imprescindível e não descartável, dentro do processo de transferência de informações, um tradutor entre a questão e a resposta, entre a linguagem natural e a documentária. Contraditórias são, no mínimo, tais idéias, pois a concepção de imparcialidade pressupõe ser o profissional bibliotecário desnecessário na relação usuário/informação. Mero instrumento que decodifica objetivas mensagens presentes nos documentos, a principal função daquele que atua na Biblioteca Pública seria a de confeccionar, qual meias, cachecóis e toalhinhas de mesa, imensos e minuciosos fichários, envolvendo a verdade num espaço nunca maior do que 12,5 X 7,5 cm. Bastariam as gavetas repletas de fichinhas, já que o intermediário não passa de um indicador (vale o dedo também) do que existe à disposição do usuário, não fosse a função social do tricô.

Como ser revolucionário considerando-se imparcial? A imparcialidade presente no discurso biblioteconômico lembra um outro conceito: apolítico que, a exemplo daquele, inexiste. São conceitos que fazem o jogo manipulador dos dominadores; que permitem a sensação de não comprometimento, de não responsabilidade com a situação social, política, econômica, etc.

A Biblioteca Pública, ante essas considerações, nada mais seria do que o depósito de textos e informações, reunidas e organizadas a partir do ponto de vista das classes que ditam e determinam as normas e valores da sociedade. Sem interferência, o bibliotecário e a Biblioteca Pública beneficiam as regras das relações sociais em vigor, colaborando para sua reprodução. Sem interferir, a Biblioteca Pública assume o papel de aparelho ideológico de Estado.

Do mesmo modo, a passividade do bibliotecário que se traduz, entre outros, na espera de que o usuário procure seus serviços e reconheça o valor social da Biblioteca, também aponta para o seu caráter não revolucionário.

O conformismo e a identificação com uma ideologia não popular, estão encobertos pela justificativa da imparcialidade que, por sua vez, leva à passividade, à acomodação. A democracia inviabilizaria qualquer tipo de interferência. A verdade, a incontestável verdade, não só existe como tem sua morada nos livros. A Biblioteca Pública, assim, seria o templo da verdade absoluta, embora a democracia, personificação política dela, exigiria também a presença de obras que deturpam a verdade. É claro que os exageros devem ser contidos: as obras que reconhecidamente visam desestabilizar a ordem constituída, mantenedora da paz social e da tranqüilidade no convívio entre os homens, devem ser expurgadas ou, quando muito, de acesso restrito apenas àqueles que possuam uma sólida formação moral. Para os bibliotecários que assim pensam, Bastos Tigre cede lugar a Jorge de Burgos.

Os que defendem tais idéias, a grande maioria vale enfatizar, esquecem que a interferência do bibliotecário sobre o processo de pesquisa e de transferência da informação ocorre a todo momento, a cada gesto, fala postura, etc., quando de sua relação com o usuário. Inicia-se com a própria seleção dos materiais que formarão o acervo. Determinar prioridades é um ato político por excelência, refletindo identificações, concepções e redundando, necessariamente, numa interferência, já que a decantada possibilidade de opção oferecida pela Biblioteca Pública é fruto dessa seleção inicial. De igual modo, a análise de conteúdo dos documentos, pelo seu caráter subjetivo, propicia e exige a participação do profissional bibliotecário, com sua bagagem técnica mas, principalmente, com suas concepções, crenças e ideologias. A classificação/indexação de um material traz como resultado também, a exteriorização do modo de ver, entender, vivenciar e compreender o mundo, por parte daquele profissional bibliotecário que tratou tecnicamente o material. A disposição dos livros nas estantes configura um discurso único, fruto do modo de pensar dos trabalhadores da Biblioteca a que pertence aquele acervo. A estrutura física da Biblioteca, ou seja, o prédio, os móveis, a disposição das salas, seções, departamentos e divisões, o espaço concedido para o acervo e para os usuários, o lay-out, configuram-se como interferência do bibliotecário. A participação do usuário é que se faz com menor intensidade, mesmo sendo ele o fim último dos trabalhos desenvolvidos e dos serviços oferecidos pela Biblioteca Pública.

Bibliotecário e Biblioteca podem ser entendidos como conformistas e como revolucionários. No entanto, com motivos de sobra e mais próximos da realidade, a sociedade os identifica com a primeira alternativa: conformistas. Bastaria isso para que a população os considerasse inúteis socialmente. Infelizmente, há muito mais.

Poderíamos discorrer sobre vários aspectos que motivam o afastamento, o distanciamento entre população e Biblioteca Pública. 

Importa lembrar que a atual concepção de Biblioteca Pública surge no final do século passado, nos Estados Unidos e suas premissas básicas continuam em vigor até hoje. Esse modelo inicial americano foi importado e transportado para o Brasil pelas mãos e inteligência de Rubens Borba de Moraes, mas as alterações necessárias para que se adequasse às especificidades do nosso contexto social, foram poucas. Até hoje, transcorridos quase 60 anos da implantação do modelo, mesmo após sua expansão e assimilação por todo o Brasil, partindo de São Paulo e, ainda, apesar das transformações que se operaram na sociedade brasileira, a Biblioteca Pública pouco ou quase nada modificou do comportamento, postura, princípios e modo de atuar daqueles primórdios.

Alguns setores, não restritos exclusivamente à classe dos profissionais bibliotecários, identificados com os segmentos populares dos países do terceiro mundo, procuravam - e ainda procuram - formas alternativas de trabalho com a cultura popular. A biblioteca faz-se presente nas preocupações desses setores, embora descartem a Biblioteca Pública, na forma como hoje se apresenta, pois a consideram comprometida com a ideologia dominante e, portanto, inadequada para responder às necessidades e interesses das classes populares. Opta-se, então, pela criação dos Centros de Documentação Popular e das Bibliotecas Populares.

Evidentemente, as discussões e as experiência ocorridas, com ou sem a presença de bibliotecários qualificados por cursos superiores específicos, alcançam o seio da classe biblioteconômica que acaba parindo debates e questionamentos. Infelizmente, os rebentos que resultam desse doloroso parto, além de prematuros foram arrancados à forceps e acarretaram problemas no organismo bibliotecário até então possuidor de um regular, metódico e sistemático metabolismo. É preciso que se diga que o corpo biblioteconômico sobrevivia dentro de uma escorreita harmonia, às custas de amargos e poderosos remédios que o mantinham em estado de completa letargia.

Os estragos e rebuliços que poderiam ter causado tais debates e questionamentos foram sustados e amenizados, evitando-se abrir espaços para esses arautos do apocalipse. Os Congressos restringiam a participação deles e as revistas especializadas não publicavam seus artigos. Os alternativos que procurem suas negas, quer dizer, suas alternativas. Serão impedidos à todo custo, de contaminar os órgãos sadios que mantêm o equilíbrio e dão sustento a um corpo estremecido.

A resposta mais forte às pretensões dos defensores da Biblioteca Popular, foi o surgimento da idéia de Biblioteca Comunitária. Amenizava-se a concepção mais radical proveniente da proposta da Biblioteca Popular, cujo número de adeptos começava a crescer. Alguns ainda hoje teimam em afirmar, embora contestados, que o termo Biblioteca Comunitária foi engendrado nos intestinos do Centrão - grupo de Deputados Federais e Senadores, suprapartidário, que se formou por ocasião da Constituinte brasileira de 1988.

Deixando de lado seu surgimento, o certo é que a reação acabou conseguindo seu intento: hoje, o termo Biblioteca comunitária foi assimilado e aceito, enquanto Biblioteca Popular continua rejeitada e marginalizada. Entretanto, o número de Bibliotecas Populares e Centros de Documentação Popular implantados e em funcionamento é muito maior do que as experiências concretas de Bibliotecas Comunitárias.

A mesma reação também atingiu uma das noções básicas das Bibliotecas Populares: a informação social. Contra ela, e com o mesmo espírito amenizador e desarticulizador, os teóricos, como diríamos, tradicionais da Biblioteconomia, criaram o termo informação utilitária. Não é necessário muita reflexão (diríamos até que está ao alcance de qualquer bibliotecário) para se concluir que informação utilitária objetiva suavizar as propostas, mais radicais evidentemente, da informação social. Alega-se que a utilitária é mais abrangente, evitando assim, a priorização de uma classe social em detrimento das outras, ou seja, deixando tudo como está, alterando-se apenas os nomes das coisas. Não é a primeira vez que, na Biblioteconomia, os nomes são alterados sem que nada se modifique: basta lembrarmos o novo currículo mínimo implantado em 1984.

A Biblioteca Pública foi rejeitada, como vimos anteriormente, porque sua atuação, na maioria dos casos, ainda hoje, parece indicar um comprometimento com a ideologia dominante. Estaria, dessa forma, em dissonância com os interesses e as necessidades das classes populares. As Bibliotecas Populares e os Centros de Documentação Popular, ao contrário, estariam não só comprometidos com as classes populares, como também teriam participação e presença concreta entre elas. No entanto, a infra-estrutura, os serviços, os suportes, os trabalhos etc., tanto na Biblioteca Pública como na Popular, teriam poucas variações. Nossa hipótese é de que a diferença entre elas está centrada na ideologia que permeia, perpassa e fundamente cada uma delas; que o conformismo e o revolucionário, embora opostos, podem qualificar tanto a Biblioteca Pública como a Popular, ou seja, não é a denominação que acompanha uma Biblioteca que a transforma em mais ou menos comprometida com as classes populares, mas a priorizaçåo, a determinação do público para o qual está ela voltada e o direcionamento de todas as suas atividades para satisfazer as necessidades dele, além de veicular seus interesses e participar de sua história.

Quem determina o caminho, a opção da biblioteca pública (conformista ou revolucionária) é o bibliotecário. Na verdade, podemos agora afirmar que a biblioteca pública, deixando de lado maniqueísmos e antagonismos, é ao mesmo tempo revolucionária e conformista, que a biblioteca pública, a exemplo de várias outras instituições, é ambígua, é contraditória por natureza. Não há instituições puramente revolucionárias ou puramente conformistas, todas carregam e exteriorizam as duas posições. Qualquer posição assumida pela biblioteca, de forma consciente ou inconsciente, não está isenta ou imune à outra, pois não existem posturas ou ldos exclusivos. A biblioteca pública penderá para o lado determinado pelo bibliotecário. Embora parecendo nula, a profissão do bibliotecário reveste-se e extrema importância. Não de uma importância passiva, restrito ao mero trabalho de fornecer livros previamente solicitados pelos usuários, mas de uma importância ativa, reflexo e conseqüência de uma atividade que exige posicionamentos e opções a cada momento. Para cada questão formulada por um usuário, existe a necessidade de uma atividade diferenciada, de uma opção quase que única de atendimento. A estratégia de busca é diferente, em cada pesquisa, pois deve adequar o tipo de informação àquele usuário em particular. Sem uma postura, sem um posicionamento anterior, é impossível atuar sobre aquela relação com um mínimo de coerência.

Falta ao bibliotecário uma discussão consigo mesmo, um questionamento sobre sua postura, seu modo de ver, interpretar e entender o mundo, fazendo-se partícipe das decisões sobre os destinos da sociedade. Da mesma forma, deve estar preocupado em oferecer aos usuários, à comunidade, ferramentas e instrumentos que auxiliem a participação deles também na gestão dos rumos da sociedade. Hoje, o bibliotecário está alheio e excluído desse processo, o que pode ser o principal motivo pelo qual é reconhecido pela sociedade como um profissional inútil.

Talvez, como marginalizado, reste ao bibliotecário a subversão. Uma subversão que possui os instrumentos para implantá-la, uma subversão que possa ser oferecida e, quem sabe, ansiada pela sociedade.

Retomamos, porque ainda válidas, duas propostas que apresentamos e defendemos em outros momentos: para o bibliotecário passivo, descrente de sua profissão, a terapira do analista de Bagé: a terapia do joelhaço. E, como segunda proposta, acrescentarmos o adjetivo “guerrilheira” à Biblioteconomia, pois ainda necessitamos de uma biblioteconomia guerrilheira.

(Texto publicado originalmente em “Ensaios APB, número 15, fev. 1995”. A redação é a mesma da publicação original)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.