INFORMAÇÃO E SAÚDE


SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: ASPECTOS QUE TODO PROFISSIONAL DA INFORMAÇÃO PRECISA CONHECER

Prólogo

 

Embora os parâmetros de criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tenham sido estabelecidos na Constituição Brasileira de 1988, há ainda muito desconhecimento sobre sua forma de funcionamento e sobre seus fluxos informacionais. Dessa forma, esse texto traz alguns aspectos essenciais sobre o SUS que todo profissional da informação precisa conhecer a fim de divulgá-los à população brasileira verbalmente ou por meio de materiais de referência adequados.

 

Para apresentar esses aspectos, entrevistei, no dia 26 de setembro de 2012, a Profa. Dra. Janise Braga Barros Ferreira, docente do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Sua formação inclui: Doutorado em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo em 2007; Mestrado em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo no ano 2000; Graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Vale do Sapucaí em 1990; Especialização em Medicina Preventiva e Social em 1997; e Especialização em Anestesiologia em 1993. Atuou mais de 15 anos como gestora na saúde.

 

A entrevista

 

Cristiane: Qual são as características do Sistema de Saúde no Brasil?

Janise: O marco importante da história atual da saúde no Brasil é a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir da Constituição Brasileira de 1988, com a criação do SUS, nós saimos de uma situação de saúde vista como privilégio para alguns, e passamos a dispor de uma política que entende a saúde como um direito de todo cidadão brasileiro e como um dever do Estado. Esse ganho é enorme. Passamos a ter uma política de saúde que é universal, ou seja, todo mundo tem direito à saúde no Brasil. Outro ponto importante da Constituição de 1988 é a integralidade da assistência em saúde que se relaciona com a assistência ao paciente como um todo, no seu contexto social, não se limitando a assistência de um “órgão doente”. Em relação à integralidade ainda, o paciente passa a ter acesso a diferentes níveis da assistência. Assim, ele pode ter assistência para um problema mais simples ou para um problema mais complexo. Além da universalidade e da integralidade, outro conceito importante trazido pela Constituição de 1988 é o conceito de equidade, ou seja, o Sistema de Saúde tem que ofertar aquilo que o usuário precisa e oportunamente, na hora que esse usuário precisa. Obviamente, esses conceitos vão interferir em como organizar o Sistema de Saúde para que ele concretize seus objetivos.

 

Cristiane: E como o SUS está organizado?

Janise: O SUS trouxe uma mudança radical para a organização da saúde no Brasil. A política pública de saúde teve uma descentralização sem precedentes para a execução das ações. As ações que eram basicamente executadas pelo Ministério da Saúde, pelo Estado, se transformaram. Os municípios passam a ter um papel fundamental na execução das ações. Essa é uma grande diferença em relação ao Sistema anterior à Constituição de 1988.

 

Cristiane: Por que essa delegação de ações aos mais de 5500 municípios?

Janise: O que embasa esse fato é a tese de que quem está mais perto do problema tem melhor condição de fazer uma leitura desse problema e solucioná-lo. Dessa maneira, o município passa a ter a responsabilidade de organizar o Sistema de Saúde e executar as ações que antes eram realizadas pelo Estado, pelo Governo Federal. O município passa a ser responsável por organizar a atenção básica, secundária, terciária. É claro que isso não é de imediato. Há uma escalada a fim de que o município assuma paulatinamente essa responsabilidade. Mas, de um modo geral, a grande mudança é que o gestor da saúde local, ou seja, do município, não fará apenas a parte de controle e de campanha em saúde. Ele assumirá a assistência também.

 

Cristiane: E qual é o papel do Estado?

Janise: No processo de transição das ações para os municípios, cada parcela do Governo tem sua contrituição. O Estado assume alguns aspectos e fica no apoio logístico até que os municípios se organizem para a nova função. O Ministério da Saúde, por exemplo, fica com a função de estabelecer as grandes diretrizes para a saúde pública brasileira, apoiando estados e municípios na implantação plena do SUS. Os municípios precisam alinhar suas políticas locais, suas especificidades locais, às diretrizes nacionais.

 

Cristiane: Do ponto de vista informacional, como isso tudo funciona?

Janise: É bastante complicado. A informação é essencial para qualquer atividade humana. No caso da saúde, não é diferente. Para o gestor local organizar o seu Sistema, ele precisa de informações e o SUS trabalha com vários sistemas de informação vinculados a grandes áreas estratégicas, ou seja, áreas entendidas como essenciais para se melhorar a condição de saúde da população, tais como saúde da mulher, saúde da criança, saúde do idoso, doenças crônicas. Nesse sentido, o Brasil dispõe de vários sistemas de informação tanto da área epidemiológica, quanto da parte de organização do SUS, na parte da gestão e da gerência. De uma forma geral, a impressão que eu tenho, pela minha vivência, por leituras realizadas, e, pela produção científica que já existe sobre essa questão, os sistemas de informação são encarados por todos como necessários. Existe um zelo em se manter esses sistemas de informação. Mas, do ponto de vista do planejamento em saúde no Brasil, ainda são pouco usados. É como se fosse assim: eu tenho obrigação de manter esses sistemas de informação atualizados, porque é uma obrigação frente ao SUS – lembrando que essa alimentação dos sistemas de informação é ligada ao repasse da parte financeira – mas há uma insipiência de utilização dessa informação para o planejamento em saúde. Então, o município passa o dado para o Estado e para o Ministério, mas pouco utiliza essa informação. Um problema no uso desses sistemas de informação que os gestores costumam relatar é a falta de interoperabilidade, dificultando seu manejo e uso. Sistemas de informação que precisam trabalhar em rede precisam avançar muito nessa questão.

 

Cristiane: Por que existe essa falta de interoperabilidade nos sistemas de informação em saúde?

Janise: O problema é multissetorial. Um ponto é a cultura. A descentralização de muitas ações não se deu de forma escalonada conforme o previsto, mas de uma forma abrupta. Quer dizer, as pessoas não foram preparadas. Não existiu uma capacitação para o servidor. Diante desse diagnóstico, várias iniciativas estão ocorrendo no sentido de capacitar o gestor local. Do contrário, fica dificil. Culturalmente, sempre existiu a responsabilidade de passar a informação para os níveis superiores. A cultura da coleta da informação sempre existiu, sobretudo, na área epidemiológica.

 

Cristiane: Então, falta a cultura de uso da informação?

Janise: Sim. Uso da informação para a gestão, para a assistência. Muitas vezes, eu perguntava a colegas sobre informações específicas de uma população, pois eu sabia que eles há muitos anos prestavam assistência naquele contexto. E uma resposta comum que eu recebia deles era “não tenho ideia”. Então, o profissional da saúde coleta a informação, mas não tem nenhum feedback, um retorno, sobre a informação que coletou. Um feedback que explique os pontos que estão ruins e os pontos que estão dando certo na assistência. Ter esse feedback seria um estímulo para o profissional da saúde conhecer a importância de sua atuação em uma determinada comunidade.

 

Cristiane: Você falou muito na atenção primária, secundária e terciária. Quais são as diferenças entre estes níveis de atenção?

Janise: A política de saúde no Brasil organiza o Sistema de Saúde de forma descentralizada, hierarquizada e regionalizada. Como descentralizar? Existe na política de saúde a premissa de pontos de atenção ou níveis de atenção. A porta de entrada no SUS – daqueles casos eletivos, ou seja, que podem ser agendados, que podem ser acompanhados em um tempo maior – é a atenção primária, também chamada de atenção básica. Os casos que carecem de uma avaliação mais especializada são atendidos pela atenção secundária. Já o nível terciário da atenção atende os casos complexos e relacionados à necessidade de uso de uma tecnologia em saúde mais densa do ponto de vista de equipamentos que pode ser encontrada em hospitais. Então, na atenção primária estão as unidades básicas de saúde, unidades de saúde da família. Na atenção secundária, os ambulatórios especializados tanto em especialidades médicas, quanto não médicas. E na atenção terciária, os hospitais que atendem casos que demandam alta tecnologia, do ponto de vista de equipamentos. Dessa maneira, cada unidade de saúde tem suas funções estabelecidas. É importante destacar que cada ponto desse atende um tipo de complexidade. Há casos complexos na atenção básica.

 

Cristiane: Que significa complexidade na atenção básica? Seria, por exemplo, um paciente com uma doença grave que nunca teve a chance de ser atendido pelos outros níveis de atenção?

Janise: Não necessariamente a complexidade da atenção básica é de caráter biológico. Na verdade, o SUS foi organizado pelo conceito de saúde mais abrangente. O conceito de saúde adotado pelo SUS não é apenas a ausência de doenças. Ele considera outros determinantes sociais. Então, compete à atenção primária trabalhar com aspectos biológicos, como uma dor de estômago, mas também olhar o contexto onde o individuo está, trabalhando questões de prevenção, de promoção, de reabilitação. Às vezes, essa complexidade não vem de um problema biológico apenas. Um exemplo disso é a violência familiar na qual temos que fazer uma proposta terapêutica para essa família que nem sempre está disponível no Sistema de Saúde. Nesse caso, temos que acessar outros equipamentos sociais como infraestrutura, meio ambiente, assistência social, educação. Nos casos de caráter biológico que não podem ser resolvidos pela atenção primária, os pacientes são encaminhados a outro ponto da assistência.

 

Cristiane: Que médico é esse que se preocupa com a saúde, a educação, a moradia, o território e todos esses fatores que você mencionou?

Janise: Essa é uma questão bastante delicada que envolve todo o setor da saúde no Brasil e também o setor da educação. A saúde tem uma política extremamente avançada, bastante detalhada, bastante ousada. Em contrapartida, temos que observar quem são os profissionais que vão atuar nesse Sistema. Dessa forma, é preciso que haja uma articulação entre o setor educação e o setor saúde para formar o médico que tenha uma visão aprimorada do ser e de suas condições biológicas; que saiba como assistir às doenças, pois elas estão aí; mas também que tenha uma visão mais ampliada e que se disponha, junto à equipe multiprofissional de saúde, a fazer uma proposta de prevenção, por exemplo. Dessa forma, esse profissional precisa de uma oportunidade em sua formação acadêmica de conviver com essa situação e problemática.

 

Cristiane: É um momento de transição?

Janise: Sim, o Brasil fez sua opção pelo SUS. Por outro lado, não tem profissionais em quantidade para implantar, por exemplo, a atenção básica com foco na saúde da família em território nacional. É uma transição, mas é uma transição que sozinha o setor da saúde não vai resolver. A educação precisa caminhar junto.

 

Cristiane: Considerando sua experiência acadêmica e na gestão da saúde, como o profissional da informação se encaixaria no SUS? É viável? É possível? Vamos pensar no cenário de 2012 mesmo.

Janise: Eu penso que o SUS tem um campo muito aberto para receber o profissional da informação em todos os pontos do Sistema. Nós, que trabalhamos no SUS, conseguimos ver os nós da informação, mas temos prioridades outras. Pensando no profissional da informação e considerando minha aproximação com a ciência da informação, entendo que é preciso explicar para o futuro profissional da informação o que é o SUS para que ele consiga identificar e apresentar soluções para os problemas informacionais que nós enfrentamos. Assim, para integrar o SUS, o profissional da informação precisa minimamente conhecer a proposta do Sistema e como ele se organiza e, a partir daí, propor soluções. Ele precisa nos apontar que na atenção básica os principais problemas informacionais são “esses” e, assim, juntamente com a equipe de saúde propor soluções para os problemas encontrados. A mesma coisa vale para a atenção secundária e terciária. Paralelamente, precisamos pensar que o SUS precisa funcionar em rede. E como olhar a questão da informação no contexto da rede? Não há rede sem comunicação e sem informação. Então, o profissional da informação se aproximando do SUS, se aproximando da lógica de como o SUS se organiza, ele terá mais condição de dizer claramente “com a minha formação, eu posso colaborar nisso, nisso e nisso”.

 

Cristiane: Então, o SUS precisa de um profissional da informação pró-ativo?

Janise: Com certeza. Mesmo porque nossas questões são muito dinâmicas. Lembrando que o profissional da saúde não tem condições de atuar em muitas frentes pelo excesso de trabalho diário. Então, o profissional da informação pode propor fluxos informacionais que viabilizem e até economizem os recursos.

 

Cristiane: Sua entrevista demonstra que o SUS está em construção. Da mesma forma que o médico, o gestor e outros profissionais da saúde não foram formados para atuar no SUS e estão enfrentando esse processo de transição, o profissional da informação e o profissional da informática biomédica precisam encarar essa transição, para integrar o SUS? Não é mesmo? Por favor, apresente suas conclusões.

Janise: Apesar de toda a adversidade para a implantação do SUS, ele tem avançado. Um componente essencial para este avanço é a participação da comunidade. E aí, a informação é muito importante. Se a população não tem informação sobre o SUS como ela vai participar do SUS? Precisamos avançar muito na participação social e na disseminação da informação sobre o SUS.

 

Cristiane: Você pode citar alguns países que tenham uma proposta de sistema de saúde universal como o Brasil?

Janise: Inglaterra, Espanha, Austrália, Canadá, Cuba, Costa Rica, Portugal. São países com saúde de base universal, mas não significa que possuam a mesma sistemática de organização.

 

Cristiane: Muito obrigada pela entrevista.

Janise: Foi um prazer!

 

Como citar este texto

Galvao, M.C.B. Sistema Único de Saúde: aspectos que todo profissional da informação precisa conhecer. 29 de novembro de 2012. In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Londrina: OFAJ, 2012. Disponível em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=719


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MARIA CRISTIANE BARBOSA GALVÃO

Professora na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Sua experiência inclui estudos na Université de Montréal (Canadá), atuação na Universidad de Malaga (Espanha) e McGill University (Canadá). Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Comunicação e bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo.