TEXTOS GERAIS


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A VACA POLLYANNA

Acostumado a concepções de leitura da forma mais acadêmica possível, como o ato que consiste em decifrar um texto escrito, por exemplo, um conceito impresso em um objeto artístico chamou-me a atenção: Ler – todos os verbos em um só. Tal definição está gravada em uma obra de arte da artista plástica Aline Abreu. Como não existe frase perfeita se não houver verbo, então a escrita depende do verbo, e o verbo ler sendo a conjunção de todos os outros eleva a leitura ao ponto máximo do conhecimento humano. E lembremo-nos do ditado bíblico: no início se fez o verbo, ou seja, a palavra.

        

De 23 a 29 de outubro comemora-se, mundialmente, a semana do livro e da biblioteca, ou seja, direta e indiretamente comemora-se a escrita, e com esta o verbo e a palavra, ofícios da leitura. Neste ano de 2005, em 21 países da Europa e das Américas (incluindo o Brasil) foi comemorado o Ano Ibero-Americano da Leitura, uma decisão da Unesco. No Brasil, o conjunto das atividades a serem levadas a efeito recebeu o nome de VIVALEITURA. Em São Paulo, o evento, seguindo à risca o sugerido pelo projeto internacional, teve a assinatura de empresas públicas, empresas privadas e Organizações Não Governamentais (ONGs). Assim, bancos, empresas, centros de compras, espaços culturais, galerias, museus, livrarias, hospitais, estações de metrô, parques públicos entre outros, se transformaram em locais estratégicos de divulgação da leitura por prazer. Cerca de 400 atividades marcaram a programação da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e seus parceiros não governamentais e privados.

 

Em Sergipe, mais proximamente em Aracaju, houve um único evento. Por iniciativa das bibliotecárias Cláudia Stocker, representando a Associação dos Bibliotecários de Sergipe, e Sônia Carvalho, da Biblioteca Municipal Clodomir Silva. Mais não houve. E imagino que os poderes constituídos sejam do Estado ou do Município não tinham conhecimento do Ano Ibero-Americano da Leitura. Coube a duas bibliotecárias, isoladamente, o único tento marcado em prol da leitura, ou no mínimo de um espaço para discuti-la. Sem a prerrogativa nacional do Projeto VIVALEITURA, foi idealizada uma mesa redonda a discutir a leitura, enquanto força de um hábito, com a participação de um escritor, um professor e um bibliotecário.

 

Se o proposto foi discutir Leitura enquanto força de um hábito, levanta-se de imediato uma questão: qual a importância do ato de ler? Para ser reconhecida como uma força há que ser importante. Então, qual a importância da leitura nesse período pós-moderno, em que a sociedade se espelha na tecnologia, e que não existe mais fronteira entre a informação e a comunicação? Qual o significado da discussão, em termos contributivos, quando a proposta foi discutir, ou fazer reflexões sobre a leitura enquanto força de um hábito? Eis, então, a grande questão: o hábito. Importância e hábito, independente da ordem, são questões colocadas, sempre, na esfera da ideologia, em que a “esquerda” pensava ter todos os bálsamos para as mazelas sociais. Então na questão da importância, vejo, sem floreios, que ela, a leitura, pode ser importante para intelectuais orgânicos, e para profissionais engajados, independente de representaram Aparelhos Ideológicos de Estado (AIEs) ou estarem fora dele. Mas, e, para o conjunto político? Como pensam as pessoas que comandam as Instituições e são responsáveis por políticas públicas de cultura e educação? Se algum inquérito for realizado com os mandatários da cultura e educação, dirão ser a leitura importante. Ato contínuo. Se for perguntado qual o projeto em curso na pasta do entrevistado, provavelmente será criado um constrangimento.

 

Mas é inegável que ela, a leitura, é importante, pois estimula o raciocínio e desenvolve a inteligência. Mas, sim, quais os programas oficiais hoje em Sergipe que buscam tais qualidades no cotidiano da sociedade? Na ausência de projetos conclui-se que não se vê na leitura a ‘força de um hábito’. Provavelmente, a concepção política seja a de que o melhor é que não existam ações mais concretas que estabeleçam o hábito. O hábito de ler pode ser perigoso e a força desse hábito pode questionar o poder.

 

Mas de verdade, o que significa esse hábito? Sou honesto em confessar que já há algum tempo que abdiquei do termo. Não porque não entenda que na verdade ele contempla o sentido exato da disposição duradoura adquirida pela repetição freqüente do ato, o uso, o costume. Talvez ele funcione do ponto de vista pedagógico, não é minha seara para discussão. Mas no caso da biblioteconomia é uma recorrência tal discussão e leva a questões ideológicas quando sempre associamos a questão à ausência de políticas públicas que a contemplassem. Mais por irresponsabilidade do que por incompetência. (É como que a modelagem desse hábito não deveria ser feita, pois não havia interesse em que criasse força.). Enquanto isso se procurou culpados, como sempre se viu em uma sociedade que insiste em políticas públicas que não dão certo. Assim como é recorrente esta discussão de leitura enquanto hábito, é também recorrente a promissória da culpa: escola e família. A sociedade culpa a escola, e a escola culpa a família, alternando-se nessa troca de insinuações de falha na educação formal e informal. O fato é que cada um faz a sua parte da forma mais modesta: a família com suas preocupações de ordem financeira não vê como incorporar este hábito, pois livro não faz parte da cesta básica, ou até não existe entre ela, a família, a função da leitura. Por sua vez a escola, com suas preocupações em cobrar tarefas, tem pequena margem de manobra para incorporação da leitura como tarefa sem parecer cobrança.

 

Imaginemos então como se pode formar o hábito. Como as partes envolvidas neste processo podem agir. Para se ter um hábito, há que se ter uma iniciação. Isso é ponto consensuado. Como se proceder esta iniciação? Primeiro pensando-se sempre nas três gerações que fundamentam qualquer sociedade: crianças, adolescentes e adultos.

 

Inserir a leitura na educação de uma criança é fundamental. É a fase do caráter lúdico, da não obrigatoriedade da leitura. E aqui fica uma inquietação: onde estão as bibliotecas públicas de caráter infantil em Aracaju e no Estado de Sergipe? Pesquisas realizadas dão conta da associação da prática da leitura infantil ao hábito juvenil e adulto. Quem manuseou livros na infância continuou com o hábito na adolescência. Claro que não é regra sem exceção – o que existe para confirmar a regra. Mas na idade infantil está o grande potencial do exercício da leitura. É nessa primeira geração, ou o primeiro público de bibliotecas, que reside mais possibilidade e maior probabilidade de se atingir a proposta do hábito de leitura. É um procedimento mais natural de aproximação, sem as conseqüências de leituras forçadas. É importante que a própria criança reconheça o valor da leitura. O que proporciona a leitura nesse primeiro público: curiosidade, aventura, novos conhecimentos, novas emoções.

 

As pessoas que não tiveram contato com a leitura tornaram-se leitores não-assumidos (onde não existe motivação para tal), ou leitores esforçados (a descoberta da importância do livro como instrumento informativo e/ou profissional). Nesse segmento vamos encontrar o segundo e terceiro público das bibliotecas. No segundo público, o adolescente, encontra-se o segmento mais resistente à leitura, trafega entre a naturalidade da criança e o esforço do adulto. Prefere ouvir música, ver TV, praticar vídeo game, conversar, sair, e tem como parâmetro de informação a Internet. No público adulto encontram-se os leitores habituais e os esforçados e os não-leitores. Nesta faixa fica evidente a valorização da leitura. Dois perfis são construídos: a) o do prazer que a leitura proporciona, solidificando o hábito; e b) o dos benefícios incorporados, dos que lêem por necessidade, os leitores esforçados.

 

Essa é a grande linha divisória dentro do público: entre o prazer e a necessidade. Se os esforçados descobrem o prazer na leitura eles passam aos habituados. Então, quais as preferências de leitura que podem provocar essa leitura prazerosa? No infantil: aventura e ficção; no adolescente: suspense e ficção; no adulto: romances em geral. Sobre indicação de leitura é impossível ter uma relação recomendável, pois não se pretende unanimidade em assunto tão pessoal. Cada pessoa tem um tempo, um gosto. Millor se considera um leitor esperto justamente por não seguir um padrão de leitura. Existem livros que pretendem estabelecer tudo aquilo que precisa ser lido para que se tenha conhecimento de determinadas áreas, ou da literatura que vá proporcionar um conhecimento mais geral.

 

É importante observar que os livros não estão mais sozinhos na corrida pela clientela. E os concorrentes são pesos-pesados: os meios audiovisuais. Provavelmente o rádio, a TV e o jornal, junto com o livro formam as quatro grandes fontes de informação. Mas há diferenças fundamentais entre o livro e as outras três fontes. As três primeiras criam e fortalecem atitudes comuns, as mensagens são selecionadas por um pensamento dirigente onde são encaixados os comportamentos. Já o livro firma personalidade independente, critérios próprios, possibilita atitudes e opiniões variadas.

 

Além disso, temos a sombra do livro do futuro. Hoje já temos o livro falado, muito embora, pelo tempo no mercado, já não signifique que tenha ocupado um espaço significativo, embora usado preferencialmente para obras dramáticas e poéticas. Temos o e-book, embora os preços elevados não o tenham feito ocupar espaço. Então, no futuro, em médio prazo, acredito ainda teremos o livro de papel, já que tem se pensado recorrentemente que a difusão dos múltiplos meios de comunicação provocaria a morte do livro como conseqüência do triunfo da imagem. Isso parece superado.

 

Mas estamos em um período batizado de Sociedade da Informação, onde a tecnologia toma conta do mundo. Seja em San Tomé e Príncipe ou Cingapura, para citar contrastes sociais, vive-se a “indústria da informação” e é nesse ambiente que temos que pensar a leitura. Leitura que assume importância dentro da gestão do conhecimento, pois neste novo século serão cobradas das sociedades globalizadas altas taxas de competência de leitura. E aí reside a preocupação com a sociedade brasileira que tem baixo nível de competência de leitura.

 

Em 2000, segundo dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional de Editores e Livreiros (SNEL), foram publicados 45 mil títulos de livros, com 329 milhões de exemplares impressos. Foram vendidos 334 milhões (produção do ano mais saldo do ano anterior). Quatro anos depois os números demonstram o decréscimo das atividades editorial e livreira no país. Foram publicados 34 mil títulos, com 320 milhões de exemplares impressos. Uma diminuição de 11 mil títulos e menos nove milhões de exemplares impressos. A queda na comercialização foi na ordem de seis milhões de unidades.

 

Uma observação: estamos expondo dados relativos à produção e venda por ano o que nos proporciona a relação ano/habitante. Assim, a produção em 2000 foi de 1,8 livro/habitante/ano, caindo para 1,7 no ano de 2004, com a venda caindo de 1,8 em 2000 para 1,6 livro/habitante ano em 2004.

 

Pelos dados expostos acima é de se questionar a existência do hábito e a força dele decorrente. Resta então provocar o poder institucionalizado para que através de políticas públicas de educação e cultura se envolva com a leitura, para que o livro possa ser descoberto como fonte de conhecimento, ou como prazer nos momentos de lazer. Como disse Hipólito Escolar Sobrinho, o mais importante bibliotecário espanhol, “o livro foi o mais fecundo invento do homem, a ferramenta mais maravilhosa criada por ele”.

 

Apesar do que aqui foi exposto, é possível acalentar esperanças no crescimento do índice de leitura e na existência do hábito fortalecido. Isto tomando como base alguns fatos que vêm ocorrendo. Assim, a diminuição do analfabetismo, a obrigatoriedade do ensino básico, o aumento da permanência no ensino médio, o crescimento do número de vagas no ensino superior e os programas de educação de adultos, podem influir decisiva e positivamente para o hábito de leitura.

 

Hoje, a sociedade convive com um universo multimídia caracterizado pela TV que cria o tele ver, onde a palavra é destronada pela imagem. Vivemos a sociedade da intermediação, onde tudo o que acontece é narrado ou descrito nas diversas mídias. O hábito de ler converte-se no hábito de consumo da leitura condicionada às necessidades e possibilidades.

 

É preciso também que professores, pedagogos e bibliotecários assumam posturas ousadas em relação à questão. Aos bibliotecários, área em que estou incluído, não cabe mais apenas ser curadores dos acervos, mas ampliar o papel da interface do acesso ao acervo. Envolver-se com leitores, cuja interação gera conhecimento.

 

No mais, é esperar que em 2006 possamos ter uma semana do livro e da biblioteca com a Funcaju, Sectur e Cultart/UFS envolvidos, tendo no setor privado o apoio a esta questão de tamanha importância para a competência na sociedade do conhecimento.

 

A esta altura, está o leitor a perguntar, fazendo sua conexão entre o título e o texto: onde está a Vaca Pollyanna? Pois bem, ela é o objeto de arte, citado no início do texto, suporte físico em que a artista plástica Aline Abreu definiu a leitura como a conjunção de todos os verbos em um só: ler. Pollyanna, exibida na mega-livraria FNAC, da Paulista, é uma criação que homenageia a leitura. Faz parte da Cow Parade, um projeto conhecido como o maior evento de arte de rua do mundo. As vacas em tamanho natural, espalhadas por 81 pontos de São Paulo, são esculturas de fibra de vidro coloridas e temáticas; assim Pollyanna tem como tema a leitura.

 

Servi-me da vaca Pollyanna para definir a leitura, tema deste artigo, como o mais simples e mais espetacular conceito por mim já alcançado. E que se faça o verbo. E da palavra se possa extrair a leitura enquanto prazer.

 

(Publicado originalmente no Jornal da Cidade, Cad. Especial, Opinião, domingo, 27 nov. 2005, p. B11)

Autor: Justino Alves Lima

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.