ARTIGOS E TEXTOS


DA ARTE DE NÃO PARTICIPAR

Acreditam muitos ser o bibliotecário uma prova cabal da teoria da geração espontânea. No entanto, Darwin à parte, ainda admitimos a evolução entre os profissionais (se você está pensando que a evolução existe em pontos isolados e no transcorrer do período, a afirmação é sua).

O desenvolvimento é tão lento, que a gente acaba rezando por uma mutação.

Qual o por que dessa sonolenta evolução?

Falta de participação ou, no infinitivo, participar.

Plagiando um reclame, desculpe, uma propaganda: “Não basta ser bibliotecário, tem que participar”.

Participar do que, no que, em que e para que?

Participar nos destinos, no desenvolvimento e evolução da Biblioteconomia e da classe bibliotecária, através, obviamente, das Associações, buscando estar presente também como “produtor” e “administrador” da História e não apenas como mero e calado “receptor” e “espectador” dela. A influência física e intelectual nas alterações existentes no mundo, se faz através de atividades sócio-político-econômico-culturais encontradas também em nossa postura e participação como profissionais.

Todos sabem que essa participação inexiste entre nós.

O que faz um bibliotecário não participar?

Uma reflexão como esta, principalmente por ter como matéria-prima o comportamento humano e considerando-se o vasto número de variáveis não passíveis de controle, além do problema de não se conseguir, e nem se tentar, eliminar o individual, não pode pretender um final tão feliz a ponto de não deixar questões, interrogações e ampliações.

Aqui, como exemplo, cabe uma pergunta: o bibliotecário que sobrevive é aquele que se adapta ao meio? O que significa adaptar-se ao meio biblioteconômico? A definição do termo “meio” (não confundir com meio-termo) abrangeria apenas aspectos da atividade bibliotecária ou abarcaria também as condições sócio-político-econômico-culturais de cada profissional? Sobreviver profissionalmente, isto é, atuar, permanecer dentro do campo biblioteconômico e participar dos seus destinos, é condição exclusiva daqueles que se assemelham ou se aproximam de um padrão de características, quase todas embasadas na submissão, acatamento e estagnação, que aporíamos ao profissional de nossa área? Ou também podemos enquadrar nessa condição os profissionais que, lenta e persistentemente, lutam e buscam apresentar a realidade da profissão, ignorada não só pela sociedade, mas pela maioria dos próprios profissionais?

No fundo estamos tentando descobrir quem são as pessoas que atuam em nossa área. Claro está que essa não é uma tarefa fácil, além de não fazer parte dos objetivos desta reflexão.

Findo o parênteses, voltamos à nossa última questão: o que faz um bibliotecário não participar?

Gostaríamos de levantar alguns pontos que são apenas frutos de uma reflexão:

- complexo de inferioridade.

O bibliotecário considera-se inferior, enquanto profissional, a outras classes de profissionais liberais e, quem sabe, de não liberais também. Um curso com duração de, até há pouco tempo, 3 anos; a falta de tradição; a imagem deturpada etc., podem ser as causas desse sentimento, ou complexo de inferioridade.

- descrença na importância da profissão.

Parece-nos óbvio que na medida em que não se acredita na importância e no valor da Biblioteconomia, uma luta, uma participação nos seus destinos, não tem significado. Explicando melhor: não existe a participação do bibliotecário porque este não crê na importância do que faz.

- desconhecimento da real função social.

Afinal, por que o bibliotecário veio ao mundo, o que está fazendo aqui? A razão de ser da nossa profissão, o papel que apenas e tão somente ela desempenha na sociedade, não é considerada como razão para debates e discussões. Existe, realmente, uma profissão que não sabe e não procura saber o seu significado social? Poderíamos dizer que a Biblioteconomia é vista, tanto pela sociedade como pelos profissionais da área, como uma matéria vazia, absolutamente oca, revestida por uma tênue e transparente casca, prestes a se romper, deixando ainda mais invisível uma profissão que ninguém vê. Qual o motivo da participação em algo não palpável, inexistente?

- crer numa Biblioteconomia unicamente técnica.

Não há necessidade de especialização, pesquisa etc., numa área total e unicamente técnica. Até o futuro dessa área fica comprometido. A participação num ou noutro Congresso, acredita-se, é suficiente para se manter atualizado.

- não pensar em si enquanto agente de transformação.

Com base em tudo o que já foi dito até aqui, não é difícil afirmarmos que o bibliotecário não se considera um agente de transformação, ou seja, uma peça com capacidade para modificar, alterar a sociedade. Em assim sendo, o mutismo que estamos acostumados a ver no bibliotecário, faz com que em nenhum grande (ou pequeno) momento da história do país, ele esteja presente. Suas exigências, pedidos e reivindicações são ignorados. Prá que nos unirmos se nada podemos transformar?

- não pensar em si como trabalhador assalariado.

Este é um ponto que, invariavelmente, abordamos. Falta-nos consciência de classe (por isso, e apenas neste aspecto, concordamos com aqueles que argumentam ser o bibliotecário um amador). Para alcançarmos essa consciência é necessário, antes de mais nada, assumirmos nossa condição de trabalhadores assalariados. Sem aceitarmos essa evidência não nos será possível evoluir enquanto classe trabalhadora. Da mesma forma, a participação continuará sendo algo a se conquistar.

- as Associações de bibliotecários nada fazem.

Em muitos casos, essa é uma afirmativa verdadeira. No entanto, é preciso que se conheça os motivos para essa não atuação das Associações.

Como surge uma Associação?

Teoricamente, uma Associação, ou melhor, uma Entidade de classe, deve surgir da necessidade de união de pessoas vinculadas a uma área profissional comum, com um ou mais objetivos específicos. É bom não esquecermos que, pensando em termos ideais, uma Entidade deve ser construída a partir e com as necessidades das bases -- entendida como a totalidade ou uma parcela dos profissionais da área.

Por que as Associações não são o que deveriam ser?

Tomando como base o já exposto, podemos inferir que as Associações/Entidades de bibliotecários nada ou pouco fazem porque não contam com a participação dos profissionais. O ponto central para esse “nada fazer” é a não participação que redunda numa série de itens que, por sua vez, nos levam a um antigo e comentado círculo vicioso: as Associações nada fazem porque não existe participação -- não existe participação porque as Associações nada fazem. Tal qual o ovo e a galinha, não sabemos qual dos dois tópicos deu início ao ciclo.

Dissemos no último parágrafo que a não participação redunda numa série de itens (ou, quem sabe, é o inverso?). Quais seriam eles? Não nos esqueçamos que esta é apenas uma reflexão e, como tal, dependente de discussões e complementos.

- muitas Associações/Entidades para um número reduzido de potenciais associados.

Possuímos no Brasil uma série de Entidades de bibliotecários: o CFB, os CRBs, a FEBAB, as Associações, a ABEBD, as Comissões e Grupos de Trabalho, a Associações de Ex-Alunos e, em breve, o(s) Sindicato(s). Claro está que cada entidade possui objetivos diferentes que se interrelacionam , tornando impossível um trabalho isolado.

No entanto, possuímos muitas Associações com o mesmo objetivo, disputando os mesmos profissionais. Em São Paulo, por exemplo, existem 5 Associações: Associação Paulista de Bibliotecários, Associação Profissional dos Bibliotecários no Estado de São Paulo (desaparecerá tão logo receba a Carta Sindical), Associação dos Bibliotecários Municipais, Associação Campineira de Bibliotecários e Associação dos Bibliotecários São-Carlenses.

Da mesma forma, existem CRBs em Estados que, pelo número reduzido de profissionais, não comportam sua existência e manutenção. Isso acaba elevando de maneira absurda a anuidade de todos os profissionais brasileiros.

Será que um número tão grande de Associações irá resolver o problema da não participação, ou, de forma mais abrangente, irá resolver os problemas da classe bibliotecária?

- serviços aquém da necessidade.

O círculo vicioso é valido também para este item. Independente disso, no entanto, seria interessante colocar em xeque todos(?) os serviços prestados pelas Associações. Seriam eles, realmente, os prioritários? Com base em que levantamento de necessidades formulamos e iniciamos os trabalhos das Associações? Erros nas prioridades dos serviços ou, quem sabe, a falta desses serviços não seria obstáculo quase intransponível para atrair os profissionais?

- falta de infra-estrutura.

As diretorias das diversas Associações gastam a maior parte de seu tempo, que já não é muito, discutindo e buscando esquemas que permitam a sobrevivência das Entidades. Em outras palavras: estão sempre à cata de dinheiro que possibilite apenas a manutenção de um mínimo de estrutura. Quantas Associações conhecemos cuja sede está localizada na 2a. gaveta da mesa de trabalho do presidente? Quantas telefonam todos os meses para alguns associados, cobrando anuidades para conseguir pagar o aluguel da sede? Quantas existem que não publicam seus Boletins por absoluta falta de dinheiro? Quantas sobrevivem por teimosia de seus diretores?

O número reduzido de associados não permite às Associações uma estrutura adequada para desenvolver seus serviços de maneira satisfatória, além de sempre externar e dirigir opiniões e posições não representativas da maioria dos profissionais.

- força política e social mínima ou nula.

Qual a força política dos bibliotecários? Somos um número pequeno de profissionais, exercendo uma atividade não reconhecida; não estamos agregados, unidos; não possuímos uma estratégia clara de encaminhamento de nossas reivindicações que, por seu lado, não são fruto de discussões; nossas Associações e Entidades de classe não possuem um trabalho em comum; não estamos presentes nas alterações político-sociais e econômicas do país. Que influência podemos pretender exercer se carregamos no bojo de nossa profissão essa gama de problemas e, além do mais, nem podemos contar com a solidariedade e o apoio da sociedade já que, para ela, somos artigo supérfluo?

Podemos reverter a situação atual, bastando para isso uma participação maior do bibliotecário junto às Associações. Como conseguir isso? Bem, essa é uma outra história que fica para uma outra vez.

APB hoje

Talvez, apresentando alguns aspectos da Associação Paulista de Bibliotecários hoje, possamos tornar um pouco mais claros os caminhos e problemas enfrentados pela maioria das Associações brasileiras.

O que a APB faz pelo bibliotecário?

Essa é uma pergunta constante e vem acompanhada de uma resposta que, acredita-se, nem é necessário explicar: absolutamente nada.

O que é a APB hoje?

1 - Uma Associação que congrega 1100 associados dos quais apenas e tão somente 850 pagaram suas anuidades em 1984. Parece muito? Vejamos:

- São Paulo conta com quase 4000 profissionais registrados no CRB. Isso significa que a Associação congrega aproximadamente 20% da classe. No entanto, entre os 850 associados, constam vários estudantes (chamados sócios provisórios) que, obviamente, diminuem o percentual apresentado.

- o número de sócios “em dia” vem decrescendo a cada ano, com exceção de 1984. Este início de 1985 não está fugindo à regra, pois já recebemos vários pedidos de afastamento. É bem possível que, em função do aumento brutal da anuidade do Conselho, o número de pedidos de demissão venha a crescer mais ainda.

2 - Uma Associação que passa a maior parte do seu tempo discutindo e buscando formas para se manter, ou melhor, sobreviver. Quando da previsão orçamentária, a preocupação, a cada ano, é sempre a mesma: como igualar despesa com receita?

- a previsão de gastos para este ano gira em torno de Cr$ 72 milhões. A receita, no entanto, está orçada em Cr$ 30 milhões. Como conseguir os Cr$ 42 milhões restantes (ou faltantes)?

- as despesas acompanham a taxa inflacionária. As entradas, infelizmente, seguem o “bolso do bibliotecário” que, como todos sabem, a nível real, está cada vez mais vazio.

3 - A APB hoje, sofre da “síndrome da participação”. A repulsa à participação é algo que sempre existiu entre os nossos profissionais, sendo ela diretamente proporcional à falta de consciência de classe do bibliotecário.

- na medida em que não participo, ou melhor, acredito que a APB nada faz e por isso não me associo nem participo, não sou responsável pelo marasmo da classe; não sou obrigado a opinar e tomar posição em defesa da profissão e dos colegas; posso me trancar numa eterna passividade, sendo apenas mero espectador, sem produzir ou influenciar em nada. A APB acredita que a pergunta “O que a Associação faz por mim?” é uma mera forma de fugir das responsabilidades profissionais, culturais, sociais e políticas à que toda pessoa está sujeita.

- Embora contando hoje com uma participação maior, ela é, ainda, muito aquém do ideal.

4 - Hoje, a APB oferece a seus associados: a Palavra-Chave, Boletins bimestrais, Circulares, Histórias em Quadrinhos (com temas da área), Bolsa de Emprego, Convênios, Biblioteca, Cursos, Palestras mensais, Debates, Concursos de Textos, Seminários, Encontros, Jornadas, Grupos de Trabalhos, atendimento na sede de 2a. à 6a. das 9 às 21 horas, etc., além de uma série de outros trabalhos e serviços ainda em estudo.

Com quantas pessoas atuantes a APB conta para desenvolver todos esses serviços? Um mínimo.

Happy End?

Parece-nos equivocada e errônea a tentativa de conclusão de um trabalho que, em toda a sua extensão, lembrou a necessidade de discussões e debates sobre o tema abordado. Uma espécie de colcha de retalhos, não muito bem costurada, não pode se arvorar o direito de possuir uma conclusão definitiva. No entanto, para finalizar, convém lembrar que o ponto principal, a tônica de toda a reflexão foi, inegavelmente, a participação.

 

(Publicado originalmente em: Palavra-Chave, São Paulo, n.5, p.8-9, maio 1985.)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.