ARTIGOS E TEXTOS


PROFISSIONAL BIBLIOTECÁRIO: UM PACTO COM O EXCLUDENTE

Historicamente, as atividades e funções do profissional bibliotecário, estiveram voltadas muito mais para a preservação do que para a disseminação. Há, pois, partindo-se dessa assertiva, dois grandes pólos no fazer do bibliotecário: a preservação e a disseminação. Os pólos, na verdade, são referenciais e não excludentes, ou seja, na ação do profissional sempre será possível distinguir características tanto de preservação como de disseminação. No entanto, um dos pólos se sobressairá em relação ao outro, com mais ou menos intensidade.

No cotidiano de cada profissional – e não apenas no discurso –, suas atividades evidenciarão qual dos lados é priorizado, mesmo que ambos convivam e apareçam em todas as ações.

Apesar de presente na ação do bibliotecário, a disseminação ainda se submete à preservação.

Até o final do século XIX, o usuário era quase que desconsiderado. Esse fato ocorria por vários motivos, entre os quais a imensa quantidade de analfabetos. Lógico que estes não poderiam usufruir dos materiais preservados nos espaços informacionais da época.

Escrevendo sobre o século XX, e o contrapondo ao século XIX em relação ao analfabetismo, Emir Sader (2001, p. 12) afirma

“Foi o século em que mais se estendeu a alfabetização, o primeiro em que se pode dizer que parte significativa da humanidade está em condições de ler e escrever. É uma novidade radical, dado que os franceses contemporâneos de Balzac não eram capazes de ler sua obra, nem os russos a de Tolstoi, nem os ingleses a de Shakespeare, ou os alemães a de Goethe, ou os espanhóis a de Cervantes, ou os italianos a de Dante, ou os portugueses a de Eça ou ainda os brasileiros a de Machado de Assis. Embora seja provável que, no início do século XXI, a maioria da humanidade – como acontece com 70% dos brasileiros – seja funcionalmente analfabeta, isto é, incapaz de ler uma carta, compreender seu conteúdo e respondê-la”.

Com a maioria da população impossibilitada do uso das bibliotecas, os usuários, ou melhor, os poucos usuários eram conhecidos. Essa situação assemelha-se ao que ocorre nos Centros de Informação atuais localizados em empresas (ou, como querem alguns, nas bibliotecas empresariais). Nestas, os usuários são em pequeno número e suas necessidades informacionais, vinculadas aos interesses da empresa, determinam os eventuais serviços oferecidos.

Os Centros de Informação, os Centros de Documentação, as Bibliotecas Empresariais, são estruturados – incluindo a formação de coleções, os processamentos técnicos e a oferta de serviços – tendo como parâmetro básico o interesse da empresa e do seu público. Este último, como vimos, é formado por um pequeno número de técnicos, em especial aqueles com cargos de coordenação e supervisão. Além disso, os que formam esse público têm seus perfis de necessidades informacionais facilmente, em termos metodológicos, detectados.

Até o século XIX, os usuários das bibliotecas eram tão restritos, em número tão insignificante que, a exemplo dos Centros de Informação de hoje, também tinham seus perfis facilmente identificados. Para eles, obviamente – e com base em seus interesses e necessidades –, as bibliotecas eram estruturadas.

Pensar no usuário era desnecessário, uma vez que era ele por demais conhecido.

Voltadas para esse pequeno grupo e tendo seu acervo construído a partir de pesquisas e reflexões de autores pertencentes a esse mesmo grupo (já se disse que no final do século XIX o Brasil possuía mais autores que leitores), as bibliotecas funcionavam como reprodutoras da organização social existente.

O conhecimento preservado, mesmo que não explicitamente e a despeito da importância de que se reveste, conta a história dos vencedores, uma história entre as muitas que poderiam ser contadas. É essa a história que as bibliotecas preservaram – e preservam.

As bibliotecas cumpriam sua missão atendendo aos interesses e demandas do seu público, dos seus usuários. Como eram eles pertencentes a um determinado segmento social, exigia-se da biblioteca, indiretamente, um comprometimento com determinados e específicos interesses, necessidades e demandas.

A biblioteca, como instituição, nada mais fez do que cumprir com suas funções, embora alijando de suas ações a grande maioria da população.

A imagem conservadora, retrógrada, meramente preservacionista, com a qual a biblioteca é identificada, não poderia ser diferente. Pior: a biblioteca também foi e continua sendo vista como dissociada dos interesses da maioria da sociedade; como um equipamento cultural que contribui para a perpetuação de uma estrutura em que o saber é ferramenta para ampliação das desigualdades; como uma instituição cujas ações reforçam e ampliam o fosso entre os que possuem e os que não possuem informação.

O profissional que atua na biblioteca como articulador das ações dela, também é identificado com a mesma imagem.

Atuando direcionados para um único grupo social e lidando exclusivamente com a palavra escrita, com a leitura e o livro, a biblioteca e o bibliotecário isolam o restante da população, relegando-a à condição de não-público.

Victor Flusser (1982) conceitua não-público como a parcela da população que não pode fazer uso de um equipamento cultural ou de um ramo das artes ou da cultura por não possuir ferramentas apropriadas, quer objetivas, materiais, quer subjetivas, intelectuais.

Só se apropria de um texto aquele que possui condições mínimas para isso, ou seja, que tenha sido alfabetizado. Além disso, a decodificação das letras, para que se transformem em um conteúdo lógico e permitam seu entendimento, deve ser constantemente praticada, sob pena de se perder a capacidade da leitura.

A idéia de não público pode ser estendida para o uso e acesso das informações eletrônicas, virtuais, via Internet. Outras habilidades devem ser incluídas à leitura:

“Sendo didático e simplista (embora esses dois termos não sejam, sempre, automaticamente interligados), é importante relacionar as exigências, não apenas técnicas, para que um candidato a “internauta” possa freqüentar “sites” e “home pages”: o interessado deve possuir: a) um computador; b) um “modem”; c) uma linha telefônica (que, convenhamos, com a atual estrutura da telefonia brasileira não é algo tão simples e fácil). Além disso, é necessário o vínculo a um “provedor”, que em troca do acesso à grande rede, cobra uma módica mensalidade ... As exigências acabam por aqui? Ainda não: a conexão do micro com a rede, via provedor, se faz através de um software e de determinadas configurações. Um mínimo de convivência com computadores e conhecimento básico da língua inglesa também estão implícitos entre os itens que se requerem para a utilização da Internet” (ALMEIDA JÚNIOR, 1999, p.3).

Emir Sader (2001, p.78), entre vários dados estatísticos, aponta para um dado importante e que afeta o que estamos agora discutindo: a quinta parte mais pobre da população mundial tem apenas 1,5% de todas as linhas telefônicas, em comparação aos 74% possuído pela quinta parte mais rica.

O não-usuário (evidentemente, acompanhando o conceito de não-público) se diferencia do usuário em potencial na medida em que é ele impossibilitado de fazer uso do conteúdo existente na biblioteca. Isso ocorre por não ter ele as habilidades necessárias para a apropriação das informações (estas em estado latente) acessíveis via mediação dos bibliotecários e dos produtos documentários disponíveis e disponibilizados nas bibliotecas.

É importante lembrar e enfatizar que a informação é subjetiva, intangível. Em assim sendo, não pode ela, informação, ser identificada ou assemelhada a uma mercadoria, a não ser dentro de determinadas conotações e em casos específicos. Por ser intangível, deve ela se valer de suportes para ser veiculada, comunicada. Os suportes, por sua vez, precisam se relacionar com os usuários, se adequar às formas possíveis de apropriação por parte de cada segmento de usuários, pois são estes, em última instância, os que determinam a “objetivação” de uma informação. A apropriação da informação se dá no processo de mediação. A concretização efetiva da informação só pode ser determinada pelo usuário.

A partir desse modo de pensar, a biblioteca – qualquer que seja ela – não possui acervos informacionais, mas acervos documentais, nos quais as informações estão presentes, mas de forma potencial, de forma latente.

Destas considerações, cumpre destacar que a relação informação – satisfação das necessidades (informacionais) dos usuários, deve acontecer a partir dos suportes que facilitam a comunicação, a recepção e a sua conseqüente apropriação, embora com base no perfil do usuário e não em conceitos e idéias pré-determinadas – ou veiculadas pela literatura da área como afirmações sustentadas em práticas que meramente reforçam e reproduzem uma dada metodologia.

O emprego exclusivo do material impresso, da escrita como veiculador da cultura e do conhecimento expulsa a maioria da população do espaço biblioteca.

Correndo o risco de sermos criticados por aqueles que defendem o fim das ideologias, o fim da história, o pensamento único possível como resposta às necessidades atuais da sociedade, em especial em seus aspectos políticos e econômicos, é importante afirmar que entendemos a alfabetização, a leitura e a informação como mecanismos de opressão, como formas que possibilitam a reprodução de uma determinada situação, como elementos ideológicos viabilizadores da exclusão social.

Aldo Barreto (1994), a partir do triângulo de necessidades de Maslow, utiliza a mesma figura, o triângulo – dividido em três partes, base, meio e topo –, embora invertido, para representar a oferta de informações. Afirma que as informações que atendem as necessidades primárias e básicas do ser humano têm sua oferta identificada com a parte referente ao topo do triângulo, parte essa que possui a menor área. No triângulo de Maslow, as necessidades primárias e básicas do ser humano são alocadas na parte referente à base, ou seja, a que possui a maior área.

No entanto, a ambiguidade – dentro da visão de Marilena Chaui (1986) – também se faz presente, necessariamente, nesta situação. Da mesma forma como a biblioteca, empregando ferramentas que podem levar à exclusão social, efetiva essa possibilidade, pode também, em sentido oposto, empregá-las norteadas para a transformação.

Seguindo o dado apresentado na citação de Emir Sader (2001, p. 12) reproduzido anteriormente, teríamos 70% dos brasileiros identificados como não-usuários das bibliotecas, uma vez que essa é a proporção de analfabetos funcionais no Brasil.

Com 70% de não usuários e um percentual desconhecido dos usuários efetivos entre os restantes 30% (embora, mesmo empiricamente, possamos afirmar como sendo de pequena monta), é evidente que a biblioteca direciona todas as suas ações para o público real. Melhor dizendo, a biblioteca é inteiramente direcionada para o público que a procura.

O bibliotecário, dentro dessa concepção, passa a ser um profissional voltado para um pequeno e seleto segmento social, embora hegemônico quanto aos instrumentos ideológicos de exclusão social que domina. Os espaços onde atua são concebidos e estruturados para atender a uma demanda oriunda daqueles que já têm acesso à informação.

É conveniente a inclusão de um parênteses no encaminhamento das idéias até agora arroladas, para apresentarmos, rapidamente, nosso entendimento sobre a principal diferença em relação à atuação do profissional bibliotecário nos vários tipos de bibliotecas.

Mesmo considerando a precariedade e os problemas concernentes à “classificação” tradicional das bibliotecas, a seguiremos, pois não é ela fundamental nem impeditiva ou mesmo, alterará as idéias que seguem.

Bibliotecas públicas, escolares, universitárias e especializadas. Essa é a divisão clássica, a tipologia das bibliotecas. As três primeiras têm como função básica a orientação para a obtenção da informação.

Os bibliotecários que atuam na biblioteca escolar também possuem uma responsabilidade didático pedagógica. Aliás, na visão de muitos desses profissionais, talvez seja essa a maior das suas responsabilidades. A pesquisa escolar, idealmente, não é dissociada da prática pedagógica presente nas ações tanto dos professores e de todos que têm atividades na escola. Portanto, o aluno deve ser orientado no sentido de se movimentar adequadamente no universo informacional e, mediado pelo bibliotecário, obter informações que satisfaçam suas necessidades, quer imediatas ou não, quer oriundas de demandas próprias ou ditadas por estratégias pedagógicas. A pesquisa faz parte desse processo. Oferecer para o aluno o ponto inicial de um texto relacionado ao tema da pesquisa – quase sempre o verbete de uma enciclopédia – e o ponto final dela – Tia, até onde eu copeio? (MILANESI, 1997, p. 153) não se inseri no que aqui está sendo defendido, ou seja, a orientação na obtenção da informação como um norteador da atuação do profissional bibliotecário.

A biblioteca pública deve também ter sua atuação determinada, principalmente pela orientação na obtenção das informações. Entre os vários tipos de usuários atendidos por ela, o principal, numericamente, é o aluno do ensino fundamental e médio. As mesmas considerações do parágrafo anterior, apesar de voltadas para a biblioteca escolar, valem para a biblioteca pública. Os outros tipos de usuários, que não ultrapassam, normalmente, 15% do total atendido, pode ter uma parcela que demanda a informação e não a orientação para o acesso a ela. Mas, considerado de maneira ampla, não é essa parcela significativa para alterar ou modificar o núcleo maior de usuários.

Apesar de lidar com interesses diversificados e um público com demandas especializadas, a biblioteca universitária também tem na pesquisa e no atendimento à solicitação de literatura básica presente nos programas de curso, o maior percentual de suas atividades do Serviço de Referência e Informação. Valem as considerações, ressalvados os devidos limites e adaptações vinculados a um público diferenciado, já apresentadas para as bibliotecas escolares e públicas. Também na biblioteca universitária, a orientação para obtenção de informação é a principal orientadora do fazer dos profissionais que nela atuam.

Contrapondo-se ao afirmado para os outros tipos de bibliotecas, a especializada deve fornecer a informação solicitada e não orientar seus usuários nos caminhos e formas de obtê-la. Essa é a principal distinção no fazer do profissional que trabalha com um público restrito e conhecido; com informação reservada ou direcionada para interesses especializados; atendendo usuários (ou clientes como querem muitos, apesar desse termo nos remeter a certas concepções próprias das transações comerciais) que têm necessidades informacionais vinculadas a assuntos gerais, mas que se especificam na medida em que tomam parte em projetos, etc.

Em ambos os casos – tanto na orientação para o acesso à informação, como na entrega da própria informação – o público atendido, o usuário para o qual estão voltadas todas as ações desenvolvidas pelos bibliotecários é o mesmo, ou seja, uma pequena parcela dos 30% da população brasileira que pode fazer uso dos espaços informacionais.

As atividades do bibliotecário, em muitas situações, aparentam um interesse voltado para um amplo público, em especial aqueles alijados do espaço biblioteca. Essas ações, no entanto, apenas aparentam esse interesse e são realizadas, embora inconscientemente, como forma de justificar para a sociedade e para a própria categoria profissional, uma inexistente função social. É preciso responder às críticas presentes no seio da Biblioteconomia; é preciso dar respostas aos próprios bibliotecários que cobram de seus pares um fazer voltado para as classes populares. Mais do que isso: é preciso criar a ilusão de que essa função social está sendo cumprida, aplacando e amainando a culpa decorrente da não efetivação dela.

A sociedade se vale de mecanismos que encobrem suas culpas sociais. Somos também responsáveis, todos, pelas mazelas sociais. Sabemos das condições de vida sub-humanas, dos precários atendimentos aos serviços básicos e mínimos para uma vida digna, à quase impossibilidade do exercício pleno da cidadania por parte da maioria da população brasileira.

Apesar do nosso conhecimento sobre essas situações, precisamos apaziguar, até como forma de sobrevivência psíquica, nossa imobilismo, nossa apatia, nosso quase descaso, nossa culpa, quer direta, quer indireta. Encontramos formas e mecanismos para isso, em especial, ações cujos resultados, no fundo, procuram muito mais atender às inquietações quanto a nossas responsabilidades sociais. Essas ações, assim, servem apenas como justificativa e resposta à nós mesmos, nada contribuindo para resolver ou modificar os graves problemas sociais presentes na sociedade. Ao contrário, boa parte dessas ações são comprometidas e reprodutoras de uma determinada situação social. Visão ingênua é a denominação empregada por Paulo Freire (1979) em relação à percepção dos que agem aparentemente voltados para os interesses das classes populares, mas que, em realidade, ajudam a sustentar uma estrutura de privilégios, de poder e de opressão.

A educação pode ser utilizada como exemplo para a reflexão neste momento apresentada.

Em um livro sobre educação popular, Carlos Rodrigues Brandão inclui como prefácio a transcrição de uma entrevista realizada com um lavrador do estado de Minas Gerais. Nela, o autor questionava o entrevistado sobre o conceito dele de educação.

”... Agora, o senhor chega e pergunta: “Ciço, o que que é educação?” Tá certo. Tá bom. O que que eu penso, eu digo. Então veja, o senhor fala: “Educação”; daí eu falo: “educação”. A palavra é a mesma, não é? A pronúncia, eu quero dizer. É uma só: “Educação”. Mas então eu pergunto pro senhor: “É a mesma coisa? É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?” Aí eu digo: “Não”. Eu digo pro senhor desse jeito: “Não, não é”. Eu penso que não.

“Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado: livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui.

“Porque eu vou dizer uma coisa pro senhor: pra quem é como esse povo de roça o estudo de escola é de pouca valia, porque o estudo é pouco e não serve pra fazer da gente um melhor. Serve só pra gente seguir sendo como era, com um pouquinho de leitura. (...)

“A educação que chega pro senhor é a sua, da sua gente, é pros usos do seu mundo. Agora, a minha educação é a sua. Ela tem o saber de sua gente e ela serve pra que mundo?” (SOUSA, 1982, p.7-9)

Não é preciso acrescentar comentários ou análises à fala de Antônio Cícero de Sousa, o Tonho Ciço. A visão que tem ele da escola e do ensino como hoje estruturado e aceito tacitamente por todos, o dispensa dos bancos escolares. Realmente, estes últimos nada tem para lhe oferecer. A inteligência e o conhecimento prometidos na escola, considerando a idéia de ambigüidade já mencionada, atendem a determinados objetivos, principalmente a manutenção da organização social, colocando obstáculos e condicionando, restringindo e afunilando as possibilidades de ascensão social.

Atreladas à escola e ao ensino, a biblioteca escolar, a biblioteca pública e até mesmo a biblioteca universitária, se constituem como extensões, como ramificações, como espaços de apoio e de reprodução dos mesmos conceitos e idéias veiculados pela escola, uma vez que fazem parte, com mais ou menos intensidade, da estrutura educacional.

A pesquisa escolar, como já frisado, deve ser considerada – e o é, idealmente – como integrante da prática pedagógica. O ato do aluno procurar a biblioteca para elaborar um trabalho escolar não é isolado, não é dissociado da política pedagógica implantada na escola da qual é ele oriundo. Ao contrário, a pesquisa está inserida como uma das várias ações do aluno em busca do aprendizado.

No entanto, a prática, o dia-a-dia, o cotidiano da escola parecem contradizer, parecem negar essa intenção. De maneira idêntica, a prática, o dia-a-dia, o cotidiano da biblioteca parecem contradizer, negar essa intenção.

Utilizando a biblioteca pública como exemplo, podemos perceber essa dicotomia entre discurso e prática.

Vários textos afirmam (e é desnecessário apontá-los, por ser este tema já por demais debatido, embora nunca será esgotado) que a prática do profissional bibliotecário em relação à pesquisa escolar nas bibliotecas públicas limita-se a entrega de uma e somente uma fonte de informação – na maioria das vezes, uma enciclopédia. Quase sempre, à entrega da enciclopédia segue a indicação do verbete ou no caso de outra fonte, do trecho a ser copiado para o caderno. Essa é uma prática que transforma o profissional bibliotecário em um mero “repassador” de materiais, de suportes e não um mediador da informação.

“O percentual exato da participação dos estudantes no total de usuários das bibliotecas públicas, dificilmente poderá ser obtido, embora seja possível, a partir dos textos citados, estabelecê-lo entre 80 e 90%. Esse dado, conhecido dos bibliotecários que atuam em bibliotecas públicas, leva a uma conclusão estarrecedora quando relacionado aos motivos da presença do estudante nas biblioteca públicas.

“Se 80 a 90% dos usuários das bibliotecas são estudantes e estes procuram as bibliotecas exclusivamente para pesquisa, utilizando apenas enciclopédias, pode-se concluir que 80 a 90% do trabalho desenvolvido pelos bibliotecários está restrito à simples entrega de enciclopédias, indicando qual a página ou trecho que deve ser copiado ou xerocado. (...)

“O bibliotecário dedica assim, a maior parte de seu tempo para atender alunos, para oferecer-lhes enciclopédias, para contribuir com suas pesquisas. Ora, se a pesquisa é a farsa do ensino, em nada contribuindo para o aluno, sendo apenas um novo trabalho braçal sem significado, também assim deve ser entendido e compreendido o trabalho do bibliotecário e a função da biblioteca: sem significado, sem sentido, enfim, uma farsa. 80 a 90% dos serviços prestados pela biblioteca é uma farsa” (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p.35-36).

Defendemos a atuação do bibliotecário nas bibliotecas públicas como sendo aquela em que mais claramente a função social desse profissional fica evidente. No entanto, considerando que entre 80% e 90% do trabalho realizado nesse tipo de biblioteca é uma farsa em nada contribuindo para com as classes populares, é possível afirmar, como pretendemos, que há um pacto – tácito, não explicitado, escamoteado, talvez inconsciente – entre a biblioteca e, por conseguinte, o bibliotecário, e os segmentos sociais que se utilizam do objeto de preocupação desse espaço e desse profissional como forma de exclusão social e manutenção de uma situação que lhes favorecem. A assertiva presente na citação de Almeida Júnior, corrobora, obviamente, com o que tentamos explicitar neste texto.

A pesquisa escolar, podemos afirmar, é uma ação do profissional bibliotecário que o leva a entender, erroneamente, o seu fazer como voltado para toda a população, sem nenhuma distinção, como afirma o Manifesto da Unesco sobre Bibliotecas Públicas:

“Os serviços da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social. Serviços e materiais específicos devem ser postos à disposição dos utilizadores que, por qualquer razão, não possam usar os serviços e os materiais correntes, como por exemplo minorias linguísticas, pessoas deficientes, hospitalizadas ou reclusas” (1994).

A exemplo da pesquisa escolar, o bibliotecário acredita que as atuais tecnologias propiciam, de fato, a decantada, enaltecida e propalada “democratização da informação” A todos é dado o direito, factível a partir das novas tecnologias da informação, de acesso, uso e apropriação das informações existentes no universo virtual.

A democratização da informação, na amplitude com a qual é entendida e divulgada, é uma falácia e só existe no discurso que pretende apresentar uma realidade falseada, ideologicamente falseada.

“Tirania do dinheiro e tirania da informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado” (SANTOS, 2000, p.35).

Milton Santos, um dos grandes pensadores brasileiros contemporâneos, continua com sua análise sobre o papel da informação no mundo capitalista e globalizado:

“Um dos traços marcantes do atual período histórico é, pois, o papel verdadeiramente despótico da informação. (...)

“Todavia, nas condições atuais, as técnicas da informação são principalmente utilizadas por um punhado de atores em função de seus objetivos particulares. Essas técnicas de informação (por enquanto) são apropriadas por alguns Estados e por algumas empresas, aprofundando assim os processos de criação de desigualdades. É desse modo que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle.

“O que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isso tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica e social, a informação constitui um dado essencial e imprescindível. Mas na medida em que o que chega às pessoas, como também às empresas e instituições hegemonizadas, é, já, o resultado de uma manipulação, tal; informação se apresenta como ideologia” (2000, p.38-39).

O trecho citado volta suas análises para um nível macro. O mesmo acontece na atuação do bibliotecário, em qualquer tipo de ambiente e espaço em que exerce suas atividades profissionais.

Assim, retomando, o profissional bibliotecário organiza seu espaço, emprega técnicas, prepara produtos documentários, organiza serviços, recupera e dissemina informações, transfere conhecimento, enfim, atua profissionalmente voltado prioritariamente para os segmentos sociais que determinam os destinos da humanidade buscando atender a seus próprios interesses – e tentando passar essa idéia como se fosse natural, como se fosse a única possível.

Falando aos bibliotecários espanhóis, Ortega y Gasset (1967), em um texto que se transformou em clássico dentro da área biblioteconômica, afirma que uma profissão é fruto da vontade e do interesse da sociedade. É ela, sociedade, quem determina o momento em que uma profissão deixa de existir, o momento em que uma profissão não se faz mais necessária. E esse desejo é reflexo da função social exercida por uma profissão.

A profissão, assim, é determinada, mantida e aceita pela população. Quando ela não mais se interessa ou sente que não há interesse, a profissão desaparece.

É claro que há outras interferências que influenciam na existência de uma dada profissão. Ela pode, por exemplo, atender apenas a alguns grupos, a algumas classes, a alguns setores, a alguns segmentos sociais. Estes, enquanto for ela útil para seus interesses, a manteriam viva.

O Jornal Folha de São Paulo, em seu caderno [Sinapse], publicou uma reportagem sobre as profissões que se destacam no atual mercado de trabalho. Entre elas, a biblioteconomia é citada

“Os avanços da tecnologia atingiram tanto as profissões com um longo passado como as que indicavam não ter futuro algum. Quem poderia imaginar uma sobrevida para a biblioteconomia, profissão que em nossa imaginação parecia destinada a abrigar para sempre pessoas desambiciosas, sentadas atrás de suas mesas, óculos na ponta do nariz, a cuidar dos fichários das bibliotecas? É bem verdade que as fichas saíram das gavetas e passaram a ser informações digitalizadas, mas a biblioteconomia, por mais improvável que isso soe, se modernizou mais do que a organização de livros.

“Um novo bibliotecário surgiu sob o codinome de “analista de informações de rede”, solicitado pelas grandes corporações para filtrar conteúdos na internet que possam ser úteis para elas e para poupar tempo a seus profissionais, destacadamente na área financeira” (MENEZES, 2003, p. 15)

O estereótipo do bibliotecário não foi construído, do modo como é hoje, por acaso. Ele é fruto da maneira como a maioria da sociedade vê o profissional. Cada uma das imagens que compõem o estereótipo tem um significado e uma razão. Não basta simplesmente arrolar, elencar as características atribuídas ao bibliotecário presentes no estereótipo. É preciso buscar as causas, os motivos pelos quais elas surgiram. Para os que se interessarem pelo assunto, foi ele discutido por nós em um texto publicado na coleção Ensaios APB (ALMEIDA JÚNIOR, 1995).

O bibliotecário, como se depreende do artigo da jornalista, ganhou uma sobrevida, contrariando a “imaginação” que o representava como desambicioso, sentado atrás de uma mesa, óculos na ponta do nariz, cuidando dos fichários das bibliotecas. Quem propiciou essa sobrevida? Ou foi o próprio bibliotecário que a alcançou, alterando seus objetivos, suas habilidades, sua relação com seu público? Ou será que essa sobrevida, essa nova oportunidade de se fazer presente e útil, foi dada pelo mesmo segmento para o qual sempre foi voltado o fazer bibliotecário? Com toda a certeza, apesar de não exclusivamente, esta última questão é a que se transformará em afirmação, respondendo a todos aqueles que estranham, que se surpreendem com a, ainda, existência da profissão bibliotecária.

A sociedade não sabe exatamente as funções exercidas por um bibliotecário; não pode fazer uso dos espaços em que ele atua; precisa de um mínimo de habilidades para obter algo que considere útil dentro do que é armazenado e oferecido nas unidades de informação; o conteúdo veiculado nos suportes informacionais são codificados de maneira a dificultar sua compreensão, sua apreensão (a norma culta, as referências e linguagens imagéticas, tanto fixas como em movimento, a linguagem do som); revela seu total desconhecimento do fazer bibliotecário quando elege características para descrever o profissional que são consideradas por ele como deturpadas e discrepantes em relação à verdadeira imagem.

Partindo de todos esses pontos, entre outros tantos não arrolados, como é possível que o profissional tenha sobrevivido e ainda se mantenha vivo? Como pode ser conhecido e bem conceituado, como pode ter um bom status a profissão que não atende à maioria da população nem responde à suas necessidades? Para a sociedade, para a maioria da população, o bibliotecário é um profissional desnecessário, sem função social.

É a partir disso que acreditamos que o bibliotecário apenas sobrevive por ser apoiado e sustentado por segmentos sociais que têm nesse profissional um parceiro, talvez mais um instrumento propiciador e reprodutor das estruturas que lhe possibilitam a manutenção do poder.

Como modificar isso?

Não nos propomos a apresentar respostas, pois elas demandariam um espaço muito maior do que aquele que dispomos no momento. No entanto, como sugestão básica, deve o profissional bibliotecário assumir sua condição de profissional da informação e tê-la como sua principal preocupação, embora não somente para disseminá-la entre os que possuem formas, mecanismos e habilidades para se apropriar dela. Deve o bibliotecário voltar-se para aqueles que possuem, como canais de informação, exclusivamente o rádio e a televisão e vivem sujeitos a entender o mundo apenas a partir de uma isolada explicação. A biblioteca deve ser o espaço em que as informações que se contrapõem a esse consenso hegemônico e dominador, podem ser obtidas. A biblioteca deve usar os suportes através dos quais a maioria da população possa, de fato, se apropriar da informação – e isso significa, além do acesso físico dos suportes, a compreensão e a assimilação do conteúdo deles.

Mais do que a informação, o bibliotecário deve estar preocupado com a mediação dessa informação. Hoje, nossa reflexão aponta para a mediação – muito mais do que a informação – como o objeto principal da biblioteconomia e, portanto, do fazer bibliotecário. Tendo a mediação como diretriz, como norte, como objeto, o bibliotecário pode alterar, pode transformar sua ação social, não a ideal, mas a real.

Referências

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(Publicado originalmente em: ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Profissional bibliotecário: um pacto com o excludente. In: BAPTISTA, Sofia Galvão; MUELLER, Suzana Pinheiro Machado (Orgs.). Profissional da informação: o espaço de trabalho. Brasília: Thesaurus, 2004. 241p. p.70-86. (Estudos Avançados em Ciência da Informação, v.3).

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.